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CAPÍTULO 3 O CAMPO DA PESQUISA

3.1 OS LOCAIS DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

3.1.1 O Quartier Mineur M* e suas idiossincrasias

Inicialmente, é importante informar que as duas casas pesquisadas na França são diferentes entre si. Conforme expusemos anteriormente, a França conta com alguns estabelecimentos de privação de liberdade. São eles: Os Quartiers Mineurs dentro das prisões francesas53, os Estabelecimentos Penitenciários para Menores54 e os Centros Educativos Fechados55.

53 Les quartiers pour mineurs dans les maisons d'arrêt. 54 Les Etablissements Pénitentiaires pour Mineurs.

55 Les centres éducatifs fermés. Este último tipo de centro não foi estudado. Contudo, é importante

mencionar que esses centros não são estabelecimentos penitenciários, mas educativos, alternativos à privação de liberdade tradicional. Foram criados em 2002 e dispõem de espaço para até 12 adolescentes que cometem reiterados delitos de menor potencial ofensivo. São somente 51 (cinquenta e um) em todo o território francês. Embora os adolescentes tenham que ficar confinados lá dentro, o aspecto de cárcere é bem diminuto, e um exemplo disso é o fato de que as grades e muros são substituídos por paredes e portas.

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O primeiro centro estudado foi o Quartier Mineur56 M57. Esse centro se

diferencia dos demais principalmente por se encontrar dentro de um complexo penitenciário. No caso concreto, o complexo abriga cerca de 3 mil pessoas. O complexo comporta três blocos construídos de forma hexagonal, sendo um para homens maiores, um para mulheres e adolescentes e um que mistura homens maiores com perfil menos agravados58 e adolescentes. Todas as células do complexo foram arquitetadas para serem individuais e conterem um banheiro individual. Contudo, em razão da superpopulação que assola o local desde meados dos anos 2000, muitas vezes as células são divididas entre prisioneiros.

Assim, como já fora demonstrado, dentro desse complexo é possível encontrar um “bairro” (quartier) destinado ao cumprimento de pena de menores de idade, sendo que as regras destinadas a eles são menos rígidas que aquelas reservadas aos/às adultos/as. Além disso, é possível encontrar, de acordo com as estatísticas francesas, de 70 a cem menores em privação de liberdade nesses centros59. Quando a pesquisa foi realizada, foi-nos informado de que havia 65 (sessenta e cinco) adolescentes lá dentro. O máximo de adolescentes presos no Quartier Mineur M* foram 93 (noventa e três) durante o verão60, e os casos que mais aparecem são de adolescentes que cometem roubo com violência, tráfico, homicídio e tentativa de homicídio.

Os responsáveis pela gestão daquele local são ligados ao Ministério da Justiça, notadamente o Departamento de Administração Penitenciária e a Proteção Judiciária da Juventude61.

56 Estão lá adolescentes aguardando julgamento ou que já foram condenados por crimes graves (mais de

dois anos) e que, em regra, devem ter mais de 16 anos de idade, mesmo que tenhamos realizado uma entrevista com um adolescente de 15 anos (que será chamado de Omar para os fins deste trabalho).

57 Conforme informamos anteriormente, não serão identificados os centros de internação, em respeito ao

sigilo e ao compromisso firmado com o Ministério da Justiça francês.

58 Não concordamos com o termo de “perfil agravado”, contudo é a expressão utilizada pelos próprios

documentos que explicitam a história do complexo. Assim, entendemos que seria melhor apresentar dessa forma.

59 Por ser uma das prisões mais seguras da França, recebe normalmente casos de adolescentes famosos.

P* nos disse que tem dois adolescentes “jihadistas” ali, ou seja, menores que cometerem crimes de grande repercussão social também são enviados para o Quartier Mineur M*.

60 Foi-nos explicado que uma das possíveis justificativas para a apreensão de uma quantidade como essa

de adolescentes era o fato de que o procurador-geral de Justiça parisiense resolveu isolar os menores de origem estrangeira para tentar desmontar as redes mafiosas da Europa do Leste Europeu (especialmente da Romênia e da Sérvia). O Diretor da Proteção Judiciária da Juventude dentro do Quartier Mineur M* nos demonstra isso através de notícias jornalísticas que revelam que uma das maiores gangues romenas que agia em Paris foi desmantelada e seus membros foram presos. Ver, a esse respeito: <http://www.lefigaro.fr/actualite-france/2015/05/25/01016-20150525ARTFIG00150-les-pickpockets-a-l- assaut-du-paris-touristique.php>. Acesso em: 13 dez. 2017.

61 A Proteção Judiciária da Juventude tem como funcionários: 18 (dezoito) educadores, um psicólogo,

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Quando se entra no Complexo Penitenciário para ter acesso ao bairro de menores, vê-se, diretamente, o gigantismo que existe por trás da construção. Não é uma casa isolada ou um prédio para o cumprimento de uma pena. É um verdadeiro complexo, cheio de edificações grandes e robustas, também extremamente degradado e escuro. Além disso, é possível enxergar quadras para a prática de esportes completamente preenchidas com dejetos e lixos.

A primeira coisa que nos chamou atenção quando da entrada no complexo foi o que, depois, aprenderíamos a chamar de ioiô62. Tratava-se de cordas penduradas entre o terceiro e o quarto andar do bairro de menores. Essas cordas serviam, como aprenderíamos horas depois, para realizar trocas de produtos entre os adolescentes e os adultos, tais como tabaco, maconha, medicamentos, fichas telefônicas, DVD de pornografia e até comida. Já sabíamos que os adolescentes e adultos se encontravam no mesmo prédio, contudo, nossa imaginação nos levava a crer que as trocas que se efetuavam entre eles eram latentes, ou seja, às escuras, de forma a não prejudicar a necessária separação entre eles. O que vimos foi exatamente o contrário, algo totalmente desvelado e que todas as pessoas que entravam no complexo viam, que familiarizava os adolescentes aos adultos.

Uma das coisas que mais escutamos dos adolescentes com os quais conversamos foi sobre o estado de degradação total daquele lugar. Isso se comprova através da três) pessoas é dividido em um grande salão com ilhas de mesas em todos os lugares possíveis. Salas separadas só existem a de reunião e a da direção. A equipe, de acordo com as informações fornecidas pelo diretor, é muito nova, a maioria das pessoas chegou em setembro de 2014. Duas vezes por semana, nas segundas e quintas-feiras, acontecem as reuniões de equipe na parte da manhã, em que casos são discutidos e atitudes são tomadas em relação à compra de material administrativo, menores delinquentes e atendimento às famílias. Essas reuniões são divididas em dois momentos: do primeiro participam a equipe da Administração Penitenciária (normalmente um ou dois agentes penitenciários) e, na segunda parte, eles saem da sala para discutir os casos de maneira mais aprofundada. De acordo com o diretor da PJJ, P*, no Quartier Mineur M* é muito importante que o pessoal da PJJ tenha uma boa relação com o pessoal da Administração Penitenciária, mas argumenta, por outro lado, que é necessária também uma distância. Diz ele que: “O que alguns adolescentes falam para os educadores, os agentes não devem e, nem podem, às vezes, saber”. A reunião, no primeiro dia em que estávamos lá, seguiu com a discussão de alguns casos problemáticos: questão de saúde mental de um adolescente que tinha ficado em um hospital psiquiátrico por três meses e que acabara de voltar ao Quartier Mineur M*. Esse adolescente voltou para o bairro de menores, pois os psiquiatras do hospital em que ele ficou internado diziam não ter mais o que fazer por ele e, por isso, não havia mais sentido para ele ficar internado lá. Outro caso discutido foi de um adolescente de 14 anos que aparenta ter 8 e que teve que ser isolado de todos os outros porque passa a noite cantando para incomodar todo mundo. É um “menor estrangeiro isolado”, de origem romena. Já fez xixi em outros adolescentes durante uma atividade e fez cocô durante o banho no box para que os outros adolescentes não pudessem tomar banho.

62 Em francês, chama-se também yoyo. O significado que nos trás o Dicionário Aurélio é que se constitui

um brinquedo de carretel a que se enrola um cordel e se dá um movimento de rotação – e que se aplica quase que perfeitamente à definição concreta do que enxergamos. Resultado dessa troca entre adultos e adolescentes é de que os últimos acabam sempre devendo favores aos primeiros, conforme relatado por Q*, psicólogo do Quartier Mineur M*.

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notícia de que, por diversas vezes ao ano, há infestações de percevejos e de pulgas, fazendo muitas vezes que os adolescentes e até mesmo os próprios trabalhadores que ficam ali adoeçam. Outra questão relacionada à saúde desses meninos era o fato de que eles não podiam tomar banho todos os dias63. Isso acontecia, de acordo com o que foi relatado pelos técnicos e agentes penitenciários, em razão de haver apenas uma sala de banho coletiva, em que estavam dispostos seis chuveiros, muitos deles sem água quente e/ou estragados. Isso impossibilitava que houvesse rodízio diário entre as três alas em que ficam os adolescentes.

Outra questão relevante é o fato de que o prédio possui quatro andares. Cada um desses andares, mesmo os dos adultos, tem a divisão em três alas, como uma hélice, sendo que cada uma delas é dividida em duas outras pequenas alas. Cada ala conta com 40 (quarenta) células, em que os adolescentes são divididos pelos funcionários da Administração Penitenciária. Ou seja, por baixo, temos espaço para um total de 120 (cento e vinte) indivíduos em privação de liberdade – se contarmos que há apenas uma pessoa dentro da célula, o que não ocorre sempre – e apenas uma escada que liga os andares ao térreo. E como a lei garante que os menores de idade não terão contato com os prisioneiros adultos, existem regras extremamente milimétricas para permitir que os adolescentes e, portanto, os adultos desçam para suas horas garantidas de banho de sol, sem que se esbarrem no meio do caminho (subida de uma das alas e descida de outra).

Isso é importante de ser destacado, uma vez que o procedimento de descida para o pátio deve ser norteado para que se evite o encontro entre grupos rivais. Qualquer distração dos educadores e dos agentes penitenciários faz com que uma discussão vire uma briga generalizada64. Qualquer coisa, por mínima que seja, pode desencadear esse tipo de confusão. Pode ser um simples olhar que se traduz em hostilidade ou mesmo a suspeita de que o outro vai ser infiel com seus pares.

Os adolescentes, nesse Quartier Mineur M*, estão em consonância com a legislação, obrigados a irem à escola apenas até os 16 anos. Além disso, a eles são

63 O Diretor da PJJ, P*, nos disse isso enquanto aguardávamos para começar a nossa pesquisa, na copa do

Quartier Mineur M*.

64 É importante referir que, durante todas as entrevistas que foram realizadas com os adolescentes nesse

Quartier Mineur M*, nos foi destinada uma sala que era utilizada pelos técnicos (educadores, professores, psicólogos e assistentes sociais), cuja porta sempre ficava encostada, nunca fechada. Contudo, em um dos dias em que estávamos lá, eclodiu uma briga na ala em que nos situávamos, e o adolescente que estava conosco correu para olhar o que estava ocorrendo, momento em que um agente penitenciário nos trancou à chave na sala, o que deixou o adolescente bastante nervoso e irritado. Nesse momento ele começou a chutar a mesa, as cadeiras e os armários que estavam na sala. O que fez, também, com que a pesquisadora ficasse aflita. Voltaremos a falar dessa questão no subcapítulo que segue.

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oferecidos cursos e mesmo formação profissional em algumas atividades para quando saírem, mas que não são bem remuneradas (mecânicos, açougueiros, auxiliar de serviços gerais). De acordo com as entrevistas que serão apresentadas no próximo capítulo, fica bastante claro que a escola é um dos únicos pontos que sustenta a dita “educação” constante nas leis infraconstitucionais da França. Além disso, muitos dos adolescentes com os quais conversamos ficavam até 20 (vinte) horas diárias dentro de suas células, uma vez que não havia a obrigatoriedade de participar das atividades, conforme será demonstrado no capítulo que segue.

Uma das questões que se impôs a este trabalho foi a de compreender a lógica institucionalizada na França de colocar em um mesmo prédio adolescentes e adultos. Com o tempo e o aprofundamento na temática, compreendemos que, para além da lógica do encarceramento, isso se devia ao despreparo de lidar com as respostas institucionais a serem dadas aos adolescentes que serão privados de liberdade. O que chamou nossa atenção foi o fato de que, mesmo após diversas recomendações internacionais65, a França não fechou esses Quartiers Mineurs. Ao contrário, o país

acabou por criar novos estabelecimentos, os Estabelecimentos Penitenciários para Menores, com o objetivo de que tais locais fossem destinados unicamente aos adolescentes.

De toda forma, há uma tentativa do Quartier Mineur M* de deixar as informações institucionais claras aos adolescentes. Todo adolescente que chega lá recebe uma edição do “programa de acolhimento”66, à qual tivemos acesso naquele

momento67. Trata-se de um documento, em formato de apresentação de power point que

conta com 40 (quarenta) páginas de explicações e figuras com a intenção de fazer aquele adolescente compreender o que ocorrerá a partir de sua chegada e quais são as regras e procedimentos adotados pelo Quartier Mineur M*.

Existe, naquele documento, um subtítulo interessante de ser levado em conta para nossa tese: uma equipe multidisciplinar para um atendimento melhor adaptado.

65 Importante mencionar que a Comissão Europeia de Direitos Humanos não dispõe de dispositivo

específico a respeito dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes. Contudo, em busca de uma aplicação comum a todos os países que fazem parte do bloco, tem tomado decisões que buscam unificar a jurisprudência a respeito da questão. Para tanto, serve-se, primordialmente, da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, editada pela ONU em 1959. Para além disso, na tentativa de harmonizar o que é aplicado nos países europeus, a Comissão utiliza-se do princípio do interesse superior da criança (PRASONG, 2016).

66 Programme d’accueil des personnes detenues mineurs au Quartier Mineur M*.

67 Não será possível colocar como apêndice deste trabalho tal documento, uma vez que seria possível

identificar através de seu texto o local em que foi realizado o trabalho. Dessa forma, apresentamos uma descrição resumida do que pode ser encontrado no material.

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Além disso, a primeira página tem uma mensagem de boas-vindas, em que está escrito “Você acaba de ser encarcerado no Quartier Mineur M* a fim de que se execute uma decisão da Justiça”. As páginas seguintes são dedicadas a explicar quem trabalha naquele local e qual o papel de cada um. Um exemplo disso é a divisão dos profissionais da administração penitenciárias e suas funções. Estão divididos em três categorias: (i) agente; (ii) primeiro agente; e (iii) tenente. Cada um deles cumpre uma função diferente. A respeito do primeiro deles, agente, é dito que serão os interlocutores do dia a dia do adolescente, que estão quotidianamente com o adolescente, em todos os momentos da detenção, do dia e da noite: banho, caminhadas, atividades, enfermidades, horários de almoço e janta, etc. Além disso, é informado ao adolescente que qualquer problema que possa haver durante o seu tempo de privação de liberdade deve ser informado aos agentes em primeiro lugar e, por fim, que o adolescente deverá respeitar e ter um bom comportamento em relação a eles.

Soma-se a isso o fato de que há, a partir da página 8 (oito), após a explicação sobre o papel de todos os profissionais e as diferenças entre eles, como serão os primeiros dias do adolescente “novato”. A esse respeito é importante mencionar que eles ficam em uma ala separada, período que pode ter duração de quatro a 15 (quinze) dias, momento em que uma equipe pluridisciplinar se reunirá para decidir quais serão os planos traçados para aqueles adolescentes. As atividades, durante esses dias, restringem- se ao jogo de pebolim e aos jogos de tabuleiro.

O documento ainda apresenta a diferença de regimes impostos aos adolescentes, a explicação de todos os locais existentes lá dentro, como o parlatório, as comissões que podem ser constituídas quando acontece alguma coisa, quais são as proibições, o procedimento disciplinar. Ao fim do documento, que será ainda apresentado no capítulo que se segue, há uma frase de Aziz Werber, escritor francês contemporâneo, que diz o que segue: “O que assusta a maioria dos homens é o desconhecido. Assim que este desconhecido, quando identificado, faz com que os homens se tranquilizem. Porém não o saber desencadeia seu processo de imaginação. E assim aparece no interior dos homens o demônio, o seu pior”68.

Finalmente, no Quartier Mineur M* foram realizadas 15 (quinze) entrevistas abertas, destas nove foram com adolescentes e seis com profissionais que trabalhavam,

68 Tradução nossa do original: “Ce qui effraie le plus l'Homme c'est inconnu. Sitôt cet inconnu même

adverse identifié l'homme se sent rassuré. Mais ne pas savoir déclenche son processus d'imagination. Apparaît alors en chacun son démon intérieur son ‘pire personnel’" (WERBER, 2004).

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à época, com esses adolescentes, sendo dois educadores, um psicólogo, um assistente social, uma professora técnica e um agente penitenciário.

3.1.2 Questões histórico-políticas dos Estabelecimentos Penitenciários para