• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 O CAMPO DA PESQUISA

3.3 A EXPERIËNCIA DO CAMPO

Mesmo que este trabalho não seja de cunho antropológico e tampouco tenha havido a ambição de realizar uma etnografia, pareceu-nos importante, a título de demonstração da inserção no campo, a apresentação de algumas impressões, dificuldades e surpresas que o campo apresentou. Isso porque a relação do pesquisador com o campo pode dar o tom do trabalho que é desenvolvido.

Fazer um trabalho comparativo, como exaustivamente demonstrado, apresenta diversos desafios. Um deles é a inserção no campo de pesquisa, principalmente quando precisamos nos adaptar a um país que tem características diferentes do nosso e, sobretudo, quando nos tornamos duplamente estrangeiros.

Parece-nos que a utilização do termo “estrangeiro” dá conta do que ocorreu durante a realização do trabalho empírico. Isso porque sempre tivemos a impressão de

135

que, quando uma pessoa não privada de liberdade realiza pesquisa de campo em instituições de confinamento, ela é estrangeira para aquele local, ou seja, desconhece seus valores, suas práticas e suas culturas. Realizar uma pesquisa de campo sendo proveniente de outro país, no caso do trabalho desenvolvido na França e que resultou em uma coleta de dados que compõe 50% do trabalho, fez com que nos sentíssemos duplamente estrangeiros.

Passada a parte da pesquisa em campo estrangeiro, em que tivemos impressões distintas das que imaginávamos, foi importante esclarecer a nós mesmos que estaríamos, de certa forma, também sendo privados de nossa liberdade. Evidentemente que não podemos comparar àquilo vivido pelos profissionais que trabalham durante oito horas diárias naqueles locais, menos ainda aos adolescentes que têm suas vidas abreviadas pelo encarceramento. Contudo, realizar uma pesquisa em locais de ampla vigilância traz algumas consequências imediatas para o trabalho desenvolvido.

Não estamos nos referindo às entrevistas enquanto “conversa de botequim”, caso realizadas em espaços onde os entrevistados têm a liberdade de ir e vir e se ausentar como bem entenderem. Contudo, as regras que condicionam a sobrevivência nesses locais tornam-se a principal preocupação do pesquisador, que, além de ter que atentar a todo o trabalho que deverá realizar, também precisa se manter “em ordem” e em conformidade com aquele espaço.

Observar a realidade do contexto de internação não é apenas olhá-la. Ao contrário, é mais do que isso. Trata-se de saber o que se quer observar e, portanto, estar sempre suportado pelos referenciais teórico-metodológicos que guiam a pesquisa. Isso significa que a preparação para a ida a campo é tão importante quanto o momento em que o trabalho empírico é realizado. No caso desta tese, a observação e as entrevistas trouxeram à tona questões que não eram, nem de longe, esperadas. Isso pode ser usado de duas formas: (i) compreender essas informações inesperadas para pensar em como utilizá-las para trabalhos futuros; e (ii) incorporar informações relevantes à tese como forma de dar mais robustez ao trabalho empírico.

A experiência adquirida em um trabalho como este que é aqui apresentado faz com que o próprio pesquisador tenha novos olhares sobre o objeto de estudo e, no caso desta tese, sobre os adolescentes em situação de conflito com a lei. Anotações – escritas ou mesmo gravadas –, ademais, logo após os momentos do trabalho de campo são fundamentais para que a experiência não se torne apenas (e mais) uma lembrança da experiência.

136

Dessa forma, a documentação que compõe a pesquisa de campo pode ser considerada como um elemento constitutivo do nosso trabalho, uma vez que nos forneceu informações que haviam sido olvidadas, dando, então, materialidade para a escrita da tese: fontes primárias (memorandos e diários de campo) e secundárias (entrevistas) – que acabam por se tornar elementos essenciais para o aprendizado do pesquisador.

Acreditamos que, para além da dificuldade de fazer pesquisa de campo em instituições privativas de liberdade e em espaços desconhecidos, o desafio de separar os papéis de advogada e socióloga foi bastante trabalhoso, principalmente no Brasil. Isso porque cada vez que um adolescente mencionava uma possível violação aos seus direitos, havia uma vontade intrínseca de modificar aquela situação.

A experiência de realizar o trabalho de campo, quase sempre, foi muito satisfatória para os fins desta pesquisa e, além disso, importante, na medida em que nos possibilitou obter um panorama geral do contexto de internação francês e brasileiro, além de conferir aquisição de conhecimentos novos. Contudo, também tiveram momentos de tensão, conforme expusemos anteriormente, quando da descrição do Quartier Mineur M*.

No caso concreto, acabamos por ficar trancafiados em uma sala com um adolescente que, em razão de uma briga na ala em que estávamos, nos ameaçou e nos agrediu. Isso foi de extrema importância para viver, por assim dizer, a tensão a que estão submetidas todas as pessoas presentes naquele local. Viver em contexto de privação de liberdade não é apenas ter o cerceamento de ir e vir, mas é estar colocado em dinâmicas violentas que tencionam as nossas posturas enquanto “profissionais”, lembrando que somos humanos travestidos nos rótulos que nós mesmos nos colocamos.

As entrevistas realizadas com os técnicos e profissionais que trabalham dentro dos Centros estudados nos possibilitou enxergar que, apesar da delimitação dada ao projeto de pesquisa que originou esta tese, muitas outras questões podem surgir, notadamente em relação à vida daqueles profissionais, que impacta, de acordo com o relatado, em suas dinâmicas pessoais.

Por fim, conversar com os adolescentes, em forma de entrevistas, e conhecer minimamente suas impressões a respeito do contexto ao qual estão submetidos nos deu a possibilidade de ultrapassar o raciocínio teórico e normativo e possibilitou uma postura crítico-reflexiva a respeito da internação.

137