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AIDS: o nascimento das bichas viris e o surgimento da cultura GLS

O recém-organizado movimento homossexual brasileiro e o seu corpo de ativistas se depararia com o surgimento da epidemia da Aids, “termo composto pela justaposição das siglas em inglês referentes ao vírus causador da imunodeficiência humana e à própria síndromes da imunodeficiência adquirida, que fez as suas primeiras vítimas no Estados Unidos, em 1981, em Nova York (FACCHINI; SIMÕES; 2009). Posteriormente, outros jovens foram diagnosticado com um “tipo de pneumonia rara” em Los Angeles e São Francisco e como se notou que outros jovens homossexuais havia falecidos com sintomas parecidos logo se criou a ideia de que se tratava de uma doença ligada a comunidade gay e posteriormente foi criada a expressão “peste gay”, fazendo com que o debate homossexualidade e doença voltasse a tona (Ibidem). Mas, além do retorno a patologização da homossexualidade, a epidemia da Aids/ HIV faria com que o ativismo gay no mundo e no Brasil criasse “experiências inovadoras no ativismo” (Ibidem). Nos Estados Unidos destaque para o grupo Act Up/ NY , que além do ativismo político, também atuava com pesquisas científicas e cobravam dos governos da época atuações globais de combate a Aids (Ibidem). O Act Up/ NY não foi importante apenas para a questão de combate a epidemia do HIV, mas também pelos questionamentos que fazia a própria comunidade gay, a qual acusava de reproduzir os preconceitos de classe, gênero e raça presentes na sociedade heteronormativa. Também apontavam os limites das políticas de inclusão e de direitos, o qual, na visão do grupo era “ilusório” (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 52). Os ativistas do Act Up/ NY foram responsáveis por fazer emergir no final dos anos 80 e começo dos anos 90 o Movimento Queer, que em 1990 se articularia com o Queer Nation e se pautaria pelo “elogio” (Ibidem) a marginalidade e “pela recusa ao fechamento das identidades sexuais e de gênero, que estariam potencialmente presentes nas vivências bissexuais, transexuais e intersexuais” (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 53).

A Aids começa a ser tratada publicamente pela imprensa brasileira no ano de 1983 com a morte do estilista Markito (1952 – 1983), que seria diagnosticado com a então desconhecida Aids, que já fazia vítimas gays masculinas nos Estados Unidos e Europa (TREVISAN; 2007). Inicialmente, o tom dado a doença seria de pânico e sensacionalismo, que seria classificada pelos meios de comunicação como “peste gay” e “câncer gay”, visto que até então as vítimas da nova doença eram predominantemente homens homossexuais. Ao mesmo tempo começam a pipocar reportagens com novas vítimas da doença e a maioria dos atingidos eram homens que viviam em São Paulo e tinham passado por Nova York (Ibidem). O surto e desconhecimento frente à nova epidemia faz com que a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo monte e instale um programa de diagnóstico e controle sobre a Aids. O surgimento da Aids, que durante os anos 80 vai ser colada a imagem dos homossexuais, faz com que os ativistas se reorganizem e iniciem campanhas de prevenção pelo centro de São Paulo com a distribuição de camisinhas e folhetos com dicas de como se prevenir da doença, porém, as revistas especializadas publicam as primeiras reportagens ligadas ao tema que irão reforçar o estigma de “doença gay” sobre a Aids. A revista “Veja” publicaria uma matéria criticando a decisão da Secretaria de Saúde criar uma subsecretaria focada na questão da Aids. na visão da revista semanal “as doenças da pobreza é que deveriam ter atendimento prioritário no país e que um centro de atendimento para Aids é mais adequado a Nova York do que a São Paulo” (TREVISAN; 2007: 431). Setores médicos – acadêmicos também vão protestar contra a criação de um serviço focado para a Aids com o mesmo argumento relacionando a pobreza as prioridades do país; o Ministério da Saúde também recebe críticas do mesmo setor que à época classificou o serviço como “luxo” gastar dinheiro com uma doença que atinge “tão poucas pessoas” (Ibidem). A associação da Aids com a homossexualidade ganha tons preconceituosos e muros de cidades como Recife, onde pichações com os escritos “Viadagem da câncer” e “Aids é câncer de bicha”. Porém, a tese de que se tratava de uma doença exclusivamente gay começar a cair quando casos de mulheres heterossexuais contaminadas pela Aids começam a ser divulgados pela imprensa (Ibidem). A partir de 1984 a Aids ganha status global e já atinge praticamente todos os países da América Latina e médicos reunidos em um simpósio em São Paulo começam a alertar para o rápido crescimento da doença. Em 1985 já se registra um caso de Aids por dia no Brasil e as autoridades médicas

criam o que vai se chamar de “grupos de risco”, que no caso serão os homossexuais e os usuários de drogas injetáveis (Ibidem). Observamos aqui que, os homossexuais voltam a ter a sua imagem ligada a patologia, neste caso, a Aids. Esta ligação vai fazer com que o movimento homossexual brasileiro inicie uma nova luta: além da luta pelos direitos civis, agora os ativistas terão de lutar para desconstruir a imagem do homossexual, que será ligada automaticamente ao vírus da Aids, fazendo assim com que surja um novo discurso em torno dos homossexuais, se não o do louco do sanatório ou do sujeito invertido, o sujeito homossexual passará a ser vinculado como Sujeito da Aids.

Os primeiros dados que vão apontar a Aids como uma doença sem fronteiras, ou seja, que acomete heterossexuais, bissexuais e homossexuais, data de 1985, quando a doença ganha status de epidemia. Em meados de 1985 o Brasil já contava com 400 casos oficialmente registrados de pessoas infectadas pela Aids, “três quartos dos casos ocorrem no Estado de São Paulo” (TREVISAN; 2007). Nesta época o Brasil era considerado o quarto país do mundo com o maior registro de casos de Aids (Ibidem). O surto causado pela Aids e a associação da doença com a homossexualidade fez com que o movimento homossexual, que após a primeira onda estava desarticulado, se rearticule e inicie um trabalho que vai unir prevenção e a luta contra a discriminação. Neste período os ativistas iniciam uma nova maneira de fazer militância que é a correlação de força com o poder público. Esta aproximação entre os ativistas e o Estado resultou na criação no primeiro programa de prevenção feito no Brasil, que foi a criação do programa estadual de combate a Aids, em São Paulo, em 1985. Também merece destaque o trabalho de ativistas que atuaram no Somos – SP e em outros grupos de São Paulo e que culminou na criação da primeira Ong – Aids Brasileira, o Grupo de Apoio e Prevenção à Aids (Gapa) (FACCHINI; SIMÕES; 2009). A experiência paulista teve reminiscências em outros estados do Brasil, por exemplo, no Rio de Janeiro, onde se fundou a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e o Grupo Pela Vidda (Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids) (Ibidem). Portanto, as primeiras ações de combate e prevenção à Aids teriam inicio em políticas estaduais, o Governo Federal lançaria o Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST)/ Aids em 1988 (Ibidem).

O surgimento da Aids e o seu impacto sobre a população homossexual e o movimento organizado vai ter um efeito duplo: faz com que os ativistas que estavam desarticulados se reagrupem e deem inicio aos primeiros trabalhos de prevenção no país, culminando, em 1988, com a criação do Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis DST/ Aids; na outra ponta um efeito perverso vai se instaurar na comunidade gay, pois, no auge da Aids a figura do homossexual feminino seria colada a imagem da Aids e consequentemente a de um sujeito com comportamento promíscuo. Tanto é que muitos médicos, no começo da Aids, se recusavam a atender ou retirar sangue de pacientes masculinos que apresentassem trejeitos femininos (TREVISAN; 2007). Sai de cena a bicha louca/ “promíscua” e entra a bicha viril/ higienizada, estereótipo a ser veiculado principalmente pelo mercado, que vai se voltar para a comunidade gay no começo da década de 1990 (FACCHINI; SIMÕES; 2009).

A década de 1990 é marcada pela inclusão da sigla GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) no cotidiano dos homossexuais. A sigla foi criada pelo jornalista André Fischer, idealizador do Festival de Cinema Mix Brasil da Diversidade e do primeiro portal de notícias GLS, o Mix Brasil, que está no ar desde 1994. Mais do que trazer a questão do gay friendly, a sigla GLS vai ser de suma importância por indicar uma abertura do gueto homossexual “àqueles que nele desejam entrar” (FACCHINI; SIMÕES; 2009). É neste contexto do GLS, que também surge o termo “mix” que vai designar ambientes/ casas noturnas como sendo locais onde as orientações sexuais se misturam e propiciam um ambiente de experimentações sexuais da geração que se articula nos anos 90

Modernos, clubbers, ravers, cybermanos passam a misturar classes sociais,

idades e orientações sexuais em eventos ou casas GLS, com roupas, acessórios e cabelos multicoloridos, marcas corporais como piercings e tatuagens, bebida energética, alucinógenos, estimulantes e música eletrônica. Adolescentes de ambos os sexos passam a se identificar como “mix”, o que parece implicar uma disposição de abertura à experimentação erótica com pessoas do mesmo sexo, sem recorrer a classificações hetero, homo ou bissexual. (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 148)

Além de propiciar um terreno mais liberal para as experimentações sexuais, a década de 1990 viu surgir outros fatores que foram determinantes para o movimento homossexual e para o fator visibilidade de uma comunidade que ainda se livrava do pânico estabelecido pela epidemia da Aids durante a década de 1980. Ainda na esfera da cultura a realização do Mercado Mundo Mix, feira dedicada aos antenados e a cultura underground, seria fundamental para a disseminação da cultura GLS e “mix” no Brasil, que teria o seu ápice em 1997, quando o discurso ativista se aliaria ao discurso mercadológico na realização na Parada do Amor, que teria o seu foco na sigla GLS. Durante a parada camisinhas seriam distribuídas aos participantes: festa e ativismo juntos (TREVISAN; 2007). A conotação festiva e política da Parada do Amor influenciou definitivamente a estrutura da Parada Gay na cidade de São Paulo, que em 1997 reuniu duas mil pessoas. Nesta primeira edição o caráter da Parada ainda era altamente político, foi nas edições seguintes que os organizadores do evento buscaram parceria com os empresários da noite gay paulistana para que ajudassem a Parada com estrutura e que coloquem trios elétricos na rua (Ibidem). A primeira grande virada da Parada Gay de São Paulo se deu em sua terceira edição, quando cerca de 30 mil pessoas comparecem as avenidas centrais de São Paulo para festejar o seu orgulho, “um fenômeno de massa inédito no país, acostumado a ter seus cidadãos/ãs homossexuais no armário” (TREVISAN; 2007: 379). Nos anos seguintes a Parada do Orgulho LGBT da cidade de São Paulo passaria a fazer parte do calendário turístico, mas isso não aconteceu por acaso, com explica João Silvério Trevisan

Confirmando a tendência em abandonar a improvisação dos anos anteriores e implementar a profissionalização em todas as instâncias, jovens militantes criaram a Associação da Parada LGBT, com registro em cartório e endereço fixo, além de página em internet. Organizada em diversas equipes de

trabalho, a Associação convidou empresários de estabelecimentos GLS para dar suporte e apoio logístico, em troca de divulgação do patrocínio. Acima de tudo, a Associação trocou o peso-morto da passeata estilo operário-estudantil pela afirmação através da celebração e da festa – o que acrescentou um componente mais político ao consumismo guei, sem negá-lo. (TREVISAN; 2007: 380)

A visibilidade da questão homossexual também ganharia o Congresso Nacional, quando em 1995 a então deputada federal, Marta Suplicy (PT-SP), apresentou o projeto de lei 1.151/ 95, que ficou conhecido como Projeto de Parceria Civil Registrada. A sua apresentação no Congresso Nacional suscitou a reação “sombria” (TREVISAN; 2007) dos setores mais conservadores e principalmente dos grupos católicos e evangélicos, que à época classificaram o projeto com “antinatural” e um atentado a família tradicional (Ibidem). Por falta de apoio parlamentar, o Projeto de Parceria Civil foi engavetado sem nunca ter conseguido ao menos ser levado à votação no plenário do Congresso Nacional (Ibidem). Na sociedade civil a comunidade homossexual também pode acompanhar a fundação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (ABGLT), em 1995, sendo a primeira rede nacional que visava congregar todas as Ongs gays do Brasil. Duas outras importantes decisões seriam tomadas ainda nos anos 90: em 1993 a Organização Mundial da Saúde retiraria o homossexualismo do CID (Cadastro Internacional de Doenças); em 1999 seria a vez do Conselho Federal de Psicologia baixar a Resolução nº 1, que proibiu psicólogos de aplicarem terapias de reorientação sexual em pacientes homossexuais. O texto da resolução foi taxativo ao afirmar que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão” (TREVISAN; 2007).

A comunidade homossexual encerra o século XX com avanços significativos, como pudermos observar durante a construção deste contexto histórico da homossexualidade no Brasil. Se, na primeira metade do século XX a questão homossexual foi tratada como caso de polícia e de saúde, ao término do século XX, pelo menos nos discursos oficiais, a homossexualidade já não mais será tratada, pelo menos diretamente, como uma doença ou como passível de tratamento para os sujeitos homossexuais. Mas, ao mesmo tempo em que a sociedade civil assistia o nascimento de um novo tipo de luta social, que vai ganhar as ruas com a organização e crescimento das Paradas Gays, com destaque para São Paulo, e assim, se tornar um fator social não mais invisível, estes personagens, que até então viviam encerrados em guetos e clubes noturnos, no âmbito dos direitos civis a comunidade LGBT vai amargar derrotas durante a primeira década do ano 2000.

CAPÍTULO II

As primeiras representações gays na telenovela: Breve histórico