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O armário, a injúria e a difamação

A representação da homossexualidade nas telenovelas na primeira década do século XXI: Entre a subversão e a

3.2 O armário, a injúria e a difamação

A partir da história das quatro novelas, o que podemos notar de semelhante entre as personagens e suas estruturas narrativas? Primeiramente um recorte de classe e destino. Com a exceção da personagem Bernardinho (Duas Caras), todos os outros terão destinos semelhantes, apesar de tratarmos de personagens apresentados como sujeitos homossexuais todos estão enquadrados e terão as suas histórias finalizadas em torno da reprodução e do matrimônio; quando afeminados, suas histórias, assim como iniciaram, não terão uma conclusão: Junior (América), ao voltar para a chácara de sua mãe renega o ambiente viril de sua terra natal. Apresenta algumas afetações – que aqui deve ser entendida como trejeitos femininos e que servem de signos de uma possível homossexualidade - e o personagem Junior irá dissimular a sua sexualidade (ERIBON; 2008) engatando uma relação afetiva com duas garotas para afastar a possibilidade de descoberta da sua homossexualidade, porém, a personagem se apaixona por Zeca, homem másculo e aparentemente heterossexual. A sua atração pelo trabalhador da fazenda de sua mãe permanecerá parte da trama na marginalidade, pois, Junior vive sob o signo e experiência do armário, que, segundo diz Sedgwick, trata-se de uma experiência vivida por todos os sujeitos homossexuais e até mesmo pelas “pessoas mais assumidamente gay, há pouquíssimas que não estejam no armário” (SEDGWICK; 2007). A primeira experiência de saída do armário do personagem Junior acontece com a sua namorada Elis que se torna amiga do rapaz. Posteriormente, Junior se assume para a sua mãe. Sedgwick também afirma que além da experiência do armário a saída deste também constitui com parte integrante da identidade do homossexual e que, a todo o momento, os sujeitos homossexuais estão saindo “socialmente do armário”, seja para os amigos, familiares, local de

trabalho, logo, a identidade do gay também se constrói a partir de suas várias saídas de armário (SEDGWICK; 2007). E se nos voltarmos para as outras novelas exibidas nesta primeira década do século XXI iremos constatar que o ato de sair do armário não diz respeito apenas à vida social dos homossexuais, mas também das personagens gays em telenovela.

A personagem homossexual da novela Duas Caras, Bernardinho, ganha destaque e estrutura narrativa a partir do momento em que sua identidade homossexual é retirada do armário a partir de uma armadilha tramada pela sua madrasta, Amara. É a partir da assunção de sua orientação homossexual que Bernardinho torna-se personagem de destaque na trama. Porém, ao contrário do personagem Junior, Bernardinho vivencia a sua sexualidade – sempre lembrando que as personagens de fato, nunca vivenciam suas sexualidades, tudo fica na esfera do simbólico, do não realizável – somando o fato de que, Bernardinho passa a viver um triangulo amoroso bissexual com Heraldo e Dália. Soma-se a Junior e Bernardinho, o personagem Hugo de “Insensato Coração”, que, assim como Junior passa a viver um relacionamento heterossexual no inicio da trama e posteriormente vivencia a experiência de saída do armário para a sua então namorada e depois se assume para a sua mãe, Suely, que no início o rejeita, mas depois aceita e se transforma numa espécie de militante e seu quiosque torna-se um ponto de encontro de homossexuais masculinos de Copacapana. O casal Rodrigo e Tiago já iniciam a trama de “Paraíso Tropical” fora do armário, mas, mesmo que Tiago e Rodrigo vivenciem como um casal plenamente aceito no círculo de amigos do núcleo do qual fazem parte, a questão do armário é parte integrante dos personagens homossexuais das novelas do século XX e também desta primeira década do século XXI. Pois, a identidade não heterossexual vive uma constante saída do armário e tal característica será marcador social e constituinte dos personagens, assim como o é dos sujeitos da vida concreta, aquela vivida fora das telenovelas

O armário gay não é uma característica apenas das vidas de pessoas gays. Mas, para muitas delas, ainda é a característica fundamental da vida social, e há poucas pessoas gays, por mais corajosas e sinceras que sejam de hábito, por mais afortunadas pelo apoio de suas comunidades imediatas, em cujas

vidas o armário não seja ainda uma presença formadora. (SEDGWICK; 2007: 22)

Podemos dizer que o casal de “Paraíso Tropical”, Tiago e Rodrigo, da maneira como apresentados na telenovela já ultrapassaram a primeira fase do armário, aquela em que se assume aos amigos, aos parentes e aos colegas de trabalho. O casal vive sob o estigma do armário social, por exemplo, quando vão a restaurantes ou a praia o casal não troca afetos frente ao público que se presume ser heterossexual, portanto, por mais que Tiago e Rodrigo vivam fora do armário em torno dos amigos e familiares, é na vida social que o casal retornará ao armário para evitar confrontos sociais . Em Bernardinho (Duas Caras) nos deparamos com a experiência traumática da saída de armário causada por uma armadilha de sua madrasta e que resulta na sua expulsão de casa pelo seu pai. Ao ir viver em uma casa alugada e contar com a ajuda do líder comunitário Juvenal a personagem de Bernardinho passa a lidar com a segunda experiência do armário: a social, motivada pela vizinhança e principalmente pelos personagens que representam o fundamentalismo religioso na trama e que passam a mal falar do personagem, principalmente quando Bernardinho passar a viver afetivamente com Dália e Heraldo. A reprodução mais clássica do armário apontado por Sedgwick é representada pelos personagens Hugo (Insensato Coração) e Junior (América). Depois de se assumir para a namorada, Hugo engata uma relação marginal com Rodrigo, seu professor na faculdade que o incentiva a se assumir para a mãe e, por conta disso, Hugo chega a pensar em terminar o seu namoro por temer a reação de sua mãe. Situação muito semelhante acontece com Junior, podemos dizer que o enredo se repete e até mesmo o desfecho: Hugo e Rodrigo terminam a trama juntos; Junior e Zeca também e, ambos os casais sob a benção dos amigos e familiares.

Mas, além da experiência de uma identidade constituída pela assunção de uma orientação sexual não integrante da ordem sexual, também observamos que todos os personagens vivenciam a experiência da injúria e da difamação que, segundo Didier Eribon “faz saber que somos alguém que não é como os outros, que não está na norma. Alguém que é viado, estranho, bizarro, doente. Anormal” (ERIBON; 2008). E de que maneira as personagens em telenovela serão demarcadas enquanto portadores de uma orientação sexual gay senão a partir do marcador da diferença

enquanto sujeitos difamados? Por mais que as histórias das tramas já indiquem a existência de tais representações, é necessário que estes personagens, além de assumirem a sua condição de homossexual, também passe pela injúria de não fazerem parte da ordem da Heterossexualidade Compulsória (BUTLER; 1998). Quando nos detemos na trama das personagens aqui analisadas fisgamos todo um cenário de injúria e difamação: Bernardinho, ao ser descoberto pelo pai e pelos irmãos, escuta de todos que é “boiola” e que “envergonha a família”, sem contar as inúmeras cenas onde o seu pai vive a dizer “onde foi que eu errei?”, portanto, é a partir da difamação que Bernardinho vai se reerguer e construir a sua história. Os outros personagens não fogem a regra: em “Insensato Coração”, Hugo, Roni, Xicão e Gilvan vivenciam a injúrias de variadas maneiras: Hugo, ao se assumir pra sua mãe tem de escutar de sua progenitora que esperava tudo, menos isso; Roni, Xicão e Gilvan são vítimas constantes de injúrias verbais proferidas pelos “pitiboys” e também são alvos de agressões físicas. Gilvan acaba por representar a fatalidade da intolerância na trama, quando é espancado até a morte dentro do quiosque em que trabalhava. Junior (América) também é repudiado por sua mãe que afirma desejar um “filho homem”, mas, com o passar do tempo, a mãe passa a apoiá-lo e também a incentivá-lo a ficar com o Zeca, que trabalha em sua fazenda. Portanto, observamos que, por mais que os personagens aqui analisados possuam histórias mais elaboradas, se comparados com os anos 70, 80 e 90, ainda assim, todos eles serão demarcados a partir do discurso performativo que, segundo Eribon é “aquele que produz efeitos e corte entre normais e anormais” (ERIBON; 2008: 29), pois, ainda segundo Eribon, a injúria irá demarcar e deixar claro do que se trata e de quem se fala, ou seja, como dissemos acima, por mais que as sinopses comerciais divulguem personagens homossexuais existe a necessidade de deixá-los demarcados dentro da trama enquanto sujeitos representativos de uma sexualidade que ainda não é “normal”. E isto se comprova quando acompanhamos todos estes personagens e observamos a ausência de uma vida sexual ativa. Isto sim, pode-se considerar bem anormal.

Mas devemos nos questionar por que estas tramas e produções ainda fazem questão de marcar as personagens homossexuais enquanto diferentes? Eribon afirma que quando “um homossexual diz que é homossexual, o heterossexual é obrigado a se pensar como heterossexual” (ERIBON; 2008: 73) e que esta assunção

de uma orientação sexual tratada como marginal desestabiliza o “estado de privilégio do heterossexual” (Ibidem) e esta desestabilização causada pela saída de armário do sujeito homossexual causa uma espécie de indignação no sujeito heterossexual que, incomodado, pede ao sujeito que se assumiu para que tenha “discrição” (Ibidem). Portanto quando pensamos na ausência de afetividade sexual entre as personagens homossexuais retratadas na telenovela não estamos de frente para imposição à discrição das relações homossexuais? Visto que até mesmo crimes de ódio são retratados de maneira explícita (Gilvan, Insensato Coração), mas, ainda assim, o beijo entre dois corpos iguais é motivo de discussão pública na sociedade (América e Insensato Coração). Logo, seguindo o raciocínio, o veto ao afeto homossexual na telenovela funciona enquanto dispositivo de censura sobre uma sexualidade que não é aceita tanto em telenovelas quanto na vida concreta. A respeito desta situação construída em textos telenovelísticos e que também se dão na realidade concreta, Eribon vai chamar de “dominação epistemológica”

(...) Está em posição de dominação epistemológica, já que tem nas mãos as condições de produção, circulação e interpretação do que se pode dizer de tal gay em particular, e dos gays em geral, mas também as condições de nova interpretação e significação de tudo o que os gays e as lésbicas podem dizer de si mesmos e que sempre é suscetível de ser anulado, desvalorizado, ridicularizado ou simplesmente explicado e reduzido ao estado de objeto pelas categorias do discurso dominante. (ERIBON; 2008: 74)

O que devemos entender por “reduzido ao estado de objeto pelas categorias do discurso dominante” (Ibidem)? Devemos entender a construção e a sujeição de subjetividades e identidades ao discurso da Matriz Heteronormativa (BUTLER; 1998), que significa sujeitar corpos não heterossexuais a normatização a partir do discurso produzido pela sociedade da heterossexualidade compulsória. Quando pensamos nas personagens aqui detidas constatamos um padrão na maneira como todas são construídas: vivenciar a experiência do armário, da injúria e da difamação. Também são histórias de corpos que não vivenciam o ato sexual, nem ao menos um singelo beijo e abraço. Portanto, são corpos reduzidos ao desejo da sociedade da

heterossexualidade compulsória de como esta gostaria que estes corpos se comportassem no cotidiano da vida concreta. Corpos discretos que não reproduzem afetividade e assim não incomodam os corpos normatizados que consideram o seu estado sexual enquanto “natural” e “normal”. Portanto, quando as novelas demarcam significativamente os corpos homossexuais enquanto assexuados, elas estão representando o ideário dos dispositivos sexuais que atuam cotidianamente na sociedade e que acabam por ser reproduzidos nos textos das telenovelas e, de maneira mais sofisticada nas produções na primeira década do século XXI, de maneira a convencer muita gente de se tratar de uma representação fidedigna, quando, na verdade, autuam enquanto como dispositivos normatizadores que transformam os corpos homossexuais em textos difamados e assexuados.

Mas a que serve tais reproduções destes corpos da maneira como analisamos até agora?