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Conclusão ou A impossibilidade de uma representação homossexual na telenovela

Se levarmos em conta que o texto de uma telenovela corresponde a um modo de pensar heterossexual e que este modo de construir sujeitos diz respeito também aos personagens homossexuais, já poderíamos finalizar e apontar para uma impossibilidade de uma representação homossexual em telenovelas que desse conta da multiplicidade de manifestações sexuais e de gênero que não estão humanizadas e permanecem na esfera do abjeto no que diz respeito a teledramaturgia produzida pela Rede Globo e também por outros canais. Porém, mais do que uma linguagem que constrói subjetividades a partir do prisma da heterossexualidade compulsória, estamos de frente para uma estrutura biopolítica de controle e de produção de subjetividades (FOUCAULT; 1988) que, durante estas quatro décadas aqui analisadas incluíram em suas tramas homossexuais masculinos, mas, de maneira que não causassem qualquer tipo de estranhamento e, para que tal estranhamento não ocorresse os homossexuais masculinos foram enquadrados dentro de um padrão de vida heteronormativa, sem contar a ausência de uma vida sexual ativa.

É necessário que compreendamos a telenovela enquanto um dispositivo disciplinador sobre a vida e sobre a sexualidade, um dispositivo que não existe isoladamente, mas que faz parte de todo um mecanismo de biopoderes disciplinadores que tiveram o seu início desde o século XVIII, naquilo que Foucault (1988) vai chamar de “controles reguladores: uma biopolítica da população” (FOUCAULT; 1988), que, mais do que reprimir os corpos e seus sexos vai trabalhar sobre eles a partir de “disciplinas do corpo e regulações da população”, que,

segundo Foucault, são os “dois polos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida” (Ibidem). E, a partir de um poder, onde a sua função não é mais matar, mas sim majorar a vida, Foucault estabelece que vivemos, desde então, uma era do biopoder

A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. Desenvolvimento rápido, no decorrer da época clássica, das disciplinas diversas – escolas, colégios, casernas, ateliês; aparecimento, também, no terreno das práticas políticas e observações econômicas, dos problemas de natalidade, longevidade, saúde pública, habitação e migração; explosão, portanto, de técnicas diversas e numerosas para obterem a sujeição dos corpos e o controle das populações. Abre-se, assim, a era de um bio – poder. (FOUCAULT; 1988: 152)

Mais adiante, Foucault ainda estabelece que o dispositivo de sexualidade foi um dos mais importantes para o desenvolvimento do capitalismo, pois, para garantir o funcionamento pleno do sistema capitalista foi necessário este biopoder de controle dos corpos no “aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos” (FOUCAULT; 1988: 153). O capitalismo só se constituiu a partir de técnicas de poder que se fizeram presentes “em todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições bem diversas (a família, o Exército, a escola, a polícia, a medicina individual ou a administração das coletividades)” (Ibidem), e partir da disseminação destes dispositivos nas mais variadas esferas da sociedade é que foram possíveis fatores tais como a “segregação e hierarquização social” (Ibidem) para assim garantir “relações de dominação e efeitos de hegemonia” (Ibidem) . A partir de então entramos naquilo que Foucault chama de “bio – política” (Ibidem), estratégia política que funciona a partir de mecanismos que fazem do “poder – saber um agente de transformação da vida humana” (FOUCAULT; 1988: 155). E será a partir do sexo que será instalado uma gama de micropoderes disciplinadores do corpo.

De que maneira podemos enquadrar a telenovela enquanto um dispositivo biopolítico de disciplina sobre o sexo e o corpo? Entendendo que a telenovela,

enquanto produto da Indústria Cultural, criação do sistema capitalista que visa propagar um estilo de vida, a saber: reprodutivo, heterossexual compulsório e patrimonial. Pois, como acabamos de colocar a partir da constituição da biopolítica no seio do sistema capitalista, foi graças ao dispositivo de sexualidade e de seu poder – saber que se tornou realizável a “segregação e hierarquização social” (FOUCAULT; 1988) e suas “relações de dominação e efeitos de hegemonia” (Ibidem). A partir disso não podemos deixar de pensar nas estruturas narrativas nas quais as personagens aqui relatadas estão inseridas. E assim perguntar: qual é a função de alocar personagens homossexuais em um produto símbolo do sistema capitalista neoliberal brasileiro, a telenovela, que não possuem vidas sexuais, que só lhe é permitido o direito de morrer com a intenção de abordar um mal social (a violência fatal da homofobia), senão reforçar a hierarquia social da heterossexualidade compulsória e sua ordem hegemônica na sociedade? Podemos pensar na seguinte resposta: que a abordagem de tais personagens servem para deixar claro que, apesar de termos personagens homossexuais em nossas tramas, esterilizamos estes personagens, os desumanizamos e assim fazemos com que permaneçam em sua abjeção, ou seja, invisível dentro do universo da telenovela ou mais radicalmente, a maneira como os alojamos em nossas histórias é a discrição que desejamos que tenham em suas vidas fora da telenovela.

Porém, parece-nos muito pessimista encerrar este trabalho com a perspectiva de uma sociedade pautada pela heterossexualidade compulsória. Devemos ser ousados e questionar, depois de entender a função de tais personagens homossexuais dentro destas telenovelas, que é reforçar a ordem hegemônica da heteronormatividade, primeiro: é possível imaginar que daqui alguns anos ou décadas tenhamos personagens que deem conta das variadas manifestações sexuais e de gênero nas telenovelas? Não, não é possível, pelo menos dentro destas telenovelas que servem como representação e publicidade da sociedade da Heterossexualidade Compulsória, porém, podemos buscar inspiração em pessoas que, de frente para tal hierarquização e controle dos corpos, busca nas ações de contra – poder criar mecanismos que viabilizem um poder – saber feito a partir do prisma dos sujeitos Abjetos. Foi pensando nisso e também inspirada pelo projeto de Michel Foucault, que a pensadora espanhola Beatriz Preciado escreveu o “Manifiesto Contrassexual”, uma proposta de ação a partir de “contra –

sexualidades” (PRECIADO; 2000) para assim pensarmos ações de resistência à sociedade disciplinar

El nombre de contra-sexualidad proviene indirectamente de Foucault, para quien la forma más eficaz de resistencia a la producción

disciplinaria de la sexualidad en nuestras sociedades liberales no es la lucha contra la prohibición (como la propuesta por lós movimiento de liberación sexual anti-represivos de los años setenta), sino la contra-productividad, es decir, la producción de formas de placer- saber alternativas a la sexualidad moderna. Las prácticas contra- sexuales que van a proponerse aquí deben comprenderse como tecnologías de resistencia, dicho de otra manera, como formas de contra-disciplina sexual. (PRECIADO; 2000: 19)

Portanto, devemos entender como uma tremenda perda de tempo e de potência quando nos pautamos pela luta que visa estabelecer igualdades na esfera da telenovela. Se em quatro décadas de produção constatamos uma repetição que visa fortalecer a ordem hegemônica da sociedade da heterossexualidade compulsória devemos, assim como propõe Preciado, buscar mecanismos contra – hegemônicos e construir o nosso próprio poder – saber que não nos limite a corpos assexuados e limitados a personagens que mais funcionam como uma espécie de cota para fazer parecer simpatizante. Aqui também devemos entender as classificações também como dispositivos de controle. Faz-se necessário que criemos outros significantes em torno dos corpos abjetos e não mais nos pautemos por classificações criadas pela linguagem heteronormativa. Pois, todas as classificações que conhecemos não passam de denominações maquinais criadas pelo sistema capitalista neoliberal que não dão conta de nossa existência subjetiva

La contra-sexualidad es también una teoría del cuerpo que se situa fuera de las oposiciones hombre/mujer, masculino/femenino, heterosexualidad/homosexualidad. Define la sexualidad como tecnología, y considera que los diferentes elementos del sistema sexo/género denoninados hombre, mujer, homosexual, heterosexual , transexual, así como sus prácticas e identidades sexuales no son sino máquinas, productos, instrumentos, aparatos, trucos, prótesis, redes, aplicaciones, programas, conexiones, flujos de energía y de información, interrupciones e interruptores,

llaves, leyes de circulación, fronteras, constreñimientos, diseños, lógicas, equipos, formatos, accidentes, detritos, mecanismos, usos, desvios (...)El sexo, como órgano y práctica, no es ni un lugar biológico preciso ni una pulsión natural. El sexo es una tecnología de dominación heterosocial que reduce el cuerpo a zonas erógenas en función de una distlibución asimétrica del poder entre los gêneros (femenino/masculino), haciendo coincidir ciertos afectos con determinados órganos, ciertas sensaciones con determinadas reacciones anatômicas. (PRECIADO; 2000: 22)

A ideia de uma sociedade livre das classificações parece a muitos uma proposta radical e impossível, mas, também não nos deve parecer todas estas classificações do corpo que conhecemos uma ideia radical de controle biopolítico sobre os nossos corpos, histórias e subjetividades? A telenovela, aparentemente, não nos deve parecer um produto/ dispositivo radical de disseminação de tipos de vidas/ atos sexuais a serem seguidos? Isto sim, me parece ser muito radical.