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A representação da homossexualidade nas telenovelas na primeira década do século XXI: Entre a subversão e a

3.3 O Corpo Abjeto

Seria muito fácil apontar toda esta repetição de historias e destinos aos personagens homossexuais masculinos enquanto meramente reprodutores de um pensamento homófobo e higienista e que, as novelas citadas apenas colocam em seus roteiros historias de sexualidades não reprodutoras apenas como forma de atrair mais audiência. Estes motivos até podem ocorrer na mente dos empresários, mas compreendemos que a lógica que leva representações homossexuais a personagens inócuos e assexuados está ligada a uma estrutura mais complexa e nem sempre óbvia, visto que estes personagens, a olho rápido, podem ser considerados avanços e de que sim, enfim as experiências homossexuais ganharam o seu devido espaço nas tramas telenovelísticas nesta primeira década do século XXI. Mas, antes de aceitarmos o oba – oba midiático devemos ir mais a fundo e problematizar ainda mais as seguintes questões: 1) A que serve tais representações homossexuais masculinas: dar visibilidade ou referendar a partir de experiências homossexuais o estilo de vida heterossexual?; 2) não será que tanto as experiências heterossexuais quanto as homossexuais representadas nas telenovelas não estão

dentro de uma visão disciplinadora sobre os corpos e os sexos?; e 3) Antes de ter como objetivo “dar visibilidade”, não estamos diante de uma técnica de biopoder que visa controlar e disciplinar as manifestações sexuais homo, já que, com o advento da Parada do Orgulho LGBT, não é mais possível esconder tais manifestações sexuais? E, já que não se pode mais esconder a existência destas manifestações sexuais, então, se constrói estas personagens dentro de uma lógica com a intenção de alocar os corpos homossexuais dentro da estrutura da Heterossexualidade Compulsória?

Judith Butler (1998) ao problematizar a afirmação de Simone De Beauvoir que “não se nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR; 2009) nos oferece algumas pistas para aprofundarmos a questão das personagens homossexuais em telenovelas enquanto dispositivos para reforçar a economia dos corpos heterossexuais. A partir da afirmação de Beauvoir, Butler levanta alguns questionamentos pertinentes

Simone de Beauvoir escreveu, em O Segundo Sexo, que a “gente não nasce mulher, torna-se mulher”. A frase é curiosa, até mesmo um pouco absurda, pois como tornar-se mulher se não se é mulher desde o começo? E quem se torna mulher? Há algum ser humano que se torne do seu gênero antes de em algum ponto do tempo? É justo supor que esse ser humano não tenha sido de seu gênero antes de tornar-se de seu gênero? Como é que alguém se torna de um gênero? Qual é o momento ou o mecanismo da construção do gênero? E talvez, mais pertinente, quando entra esse mecanismo no cenário cultural e transforma o sujeito humano num sujeito com características de gênero? (BUTLER; 1998: 162)

Posteriormente, Butler afirma que as “marcas do gênero” (BUTLER; 1998) servem para qualificar os corpos enquanto humanos e que as imagens corporais que não se enquadram dentro do esquema menino e menina ficam de fora da esfera do que se entende por humano, ou seja, as expressões corporais que não estão dentro da lógica reprodutiva configuram o espaço do desumano e do abjeto, logo, são invisíveis para o sistema. Algumas pessoas podem então perguntar que a partir do momento que sujeitos homossexuais estão representados na telenovela estão sendo humanizados e deixando de serem sujeitos abjetos, já que não estão mais

invisíveis, porém, como iremos observar e como já apontamos previamente neste trabalho, estes sujeitos continuam na esfera da abjeção mesmo que estejam em histórias de destaque dentro das tramas, pois, as suas vidas sexuais continuam invisíveis, ou seja, abjetas. Por mais que tenhamos nas telenovelas das 21h personagens homossexuais, as suas práticas sexuais não fazem parte de suas vidas. A vida homossexual, portanto, permanece invisível, desumana e abjeta. Para que nossa afirmação fique mais clara é necessário que nos voltemos a toda a galeria de personagens aqui relatada. Durante as décadas de 1970, 1980 e 1990 todas as personagens ficaram limitadas as histórias marginais e sem qualquer atividade sexual. Seja um beijo, um abraço ou o ato sexual em si. E quando estas personagens ganham algum tipo de destaque é na esfera da reprodução da estrutura familiar. Por exemplo, o casal Sandrinho e Jeff da novela “A Próxima Vítima”, que depois de terem enfrentado a questão do racismo e da homofobia, terminam a trama casados e com intenções de adotar uma criança, mas, ainda assim, sem qualquer tipo de afetividade ou ato sexual. Permanecem abjetos. O mesmo acontece com todas as personagens da primeira década deste ano 2000. Bernardinho (Duas Caras), Tiago e Rodrigo (Paraíso Tropical), Hugo e Rodrigo (Insensato Coração) e Junior (América), todos estes personagens finalizam as suas historias em torno do matrimônio. Alguns já contemplados pelas novas leis (Duas Caras e Insensato Coração) e outros de maneira amigável (América e Paraíso Tropical). Portanto, constatamos que nestes 40 anos de existência de personagens homossexuais masculinos em telenovelas da faixa noturna, todos ainda permanecem na esfera do invisível e da abjeção social.

Mas o que está por trás desta repetição? Quais são os mecanismos discursivos que levam o corpo homossexual a ser sempre representado como o corpo abjeto? Monique Wittig ao analisar a maneira como se dá construção de uma sociedade enquanto natural (1980), se utiliza do exemplo das mulheres lésbicas para apontar que, além da construção em torno do que se entende por mulher ser um fato político, a divisão entre homens e mulheres X heterossexuais e homossexuais também é uma construção “fictícia” (WITTIG; 1980) e política para dividir e alocar os sujeitos na sociedade e que esta divisão é parte integrante do “pensamento heterossexual” (Ibidem), que trabalha com a hipótese de que homens e mulheres heterossexuais são um dado “natural” (Ibidem) e portanto, Wittig propõe que se de

fim a leitura de homens e mulheres enquanto “dados naturais” (Ibidem). Posteriormente, no texto “O Pensamento Hétero” (1980), Wittig vai atentar para o fato de que os homossexuais enquanto sujeitos oprimidos não possuem o direito a fala dentro da linguagem pensada pela sociedade da heterossexualidade compulsória

Os discursos que acima de tudo nos oprimem, lésbicas, mulheres, e homens homossexuais, são aqueles que tomam como certo que a base da sociedade, de qualquer sociedade, é a heterossexualidade. Estes discursos falam sobre nós e alegam dizer a verdade num campo apolítico, como se qualquer coisa que significa algo pudesse escapar ao político neste momento da história, e como se, no tocante a nós, pudessem existir signos politicamente insignificantes. Estes discursos da heterossexualidade oprimem-nos no sentido em que nos impedem de falar a menos que falemos nos termos deles. (WITTIG; 1980: 3)

A crítica de Wittig tem, primeiramente, como alvo os discursos produzidos pela psicanálise, mas, a autora também foca a sua crítica nos discursos produzidos pela indústria cultural, pois, como coloca a autora, os oprimidos são sempre “negligenciados” (WITTIG; 1980) quando desejam falar por si e não continuar a ser falado e construído a partir da perspectiva heterossexual, o que para a autora significa sempre se tratar de um discurso político que irá tratar dos homossexuais masculinos e femininos dentro da lógica da heterossexualidade compulsória. Atentemos para o fato de que a crítica de Wittig foi escrita nos anos 80 e tem como contexto histórico a explosão e disseminação da Indústria Cultural e a queda dos regimes socialistas e o advento do neoliberalismo, porém, quando pensamos na crítica de Wittig a maneira como os discursos da matriz da heterossexualidade compulsória atuam sobre os homossexuais ou os corpos abjetos, constatamos que sua crítica segue contundente e atual. Principalmente no que diz respeito ao nosso objeto de estudo, onde temos insistentemente apontado para o fato, a partir dos personagens homossexuais das novelas da faixa noturna exibidas na Rede Globo desde os anos 1970, de que, apesar de serem personagens apresentadas enquanto homossexuais, a maneira como os discursos construídos sob estas personagens

nos levam a olhar e analisar com profunda desconfiança se realmente estamos de frente para personagens homossexuais, quando na verdade temos analisados personagens que não possuem vidas sexuais ativas e que o máximo que as tramas conseguem dar a estas representações é uma vida que só encontra conforto e felicidade quando encerrada no matrimônio e mais recentemente na assinatura de uma escritura que legalize a união em questão. Portanto, aqui Wittig é assombrosamente correta ao dizer que estas representações são construções a partir do prisma da heterossexualidade e que apenas representam o ideal de vida da Heterossexualidade Compulsória. A partir disto, podemos dizer que temos representações de sujeitos homossexuais? Wittig atenta para o fato de que dentro da sociedade regida pelo Pensamento Hétero, a homossexualidade é inconcebível enquanto manifestação cultural

A consequência desta tendência para a universalidade é que o

pensamento hétero não pode conceber uma cultura, uma sociedade

onde a heterossexualidade não ordenaria não só todas as relações humanas mas também a sua própria produção de conceitos e também todos os processos que escapam ao consciente. Além disso, estes processos inconscientes são historicamente cada vez mais imperativos naquilo que nos ensinam sobre nós próprio(a)s através da instrumentalidade dos especialistas. A retórica que expressa estes processos (e cuja sedução eu não subestimo) reveste-se de mitos, recorre ao enigma, caminha pelo acumular de metáforas, e a sua função é a de poetizar o caráter obrigatório do "serás-hetero-ou-não- serás" (...) Assim, o lesbianismo, a homossexualidade e as sociedades que formamos não podem ser pensados nem falados, embora sempre tivessem existido. Assim, o pensamento hétero continua a afirmar que é o incesto, e não a homossexualidade, o seu maior tabu. Assim, pelo pensamento hétero, a homossexualidade não passa de heterossexualidade. (WITTIG;1980)

E seguindo a linha de raciocínio de Wittig, não tem sido isso o que temos apontados até aqui: que mais do que representarem uma subjetividade homossexual, os personagens homossexuais das novelas funcionam como uma espécie de reprodução de uma outra heterossexualidade, pelo menos no que diz respeito ao

modo de viver? Ou seja, são homossexuais, sim, mas ao final de suas histórias o que eles buscam é se igualar ou assimilar-se ao estilo de vida heterossexual. Pelo menos, isto é o que constatamos com estes personagens homossexuais que compõe o texto das telenovelas.

Conclusão ou A impossibilidade de uma representação