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Anos 80: Personagens gays começam a ganhar história e individualidade

As primeiras representações gays na telenovela: Breve histórico das personagens homossexuais no folhetim televisivo

2.2 Anos 80: Personagens gays começam a ganhar história e individualidade

Neste período, o Estado brasileiro começa a observar a diluição do seu poder soberano, mas terá na Indústria Cultural o seu sustentáculo enquanto propulsor do discurso repressivo e disciplinador normativo no que diz respeito ao sexo e as sexualidades.

A seguir iremos nos debruçar sobre as representações das homossexualidades nas telenovelas dos anos 80 e tentar identificar se há algum tipo de avanço e se tais personagens começam a ganhar história própria. Também identificar se a homossexualidade masculina ainda estará relegada aos traços da feminilidade negativa (submissão), a marginalidade (no sentido criminal e também no sentido de estar à margem das tramas e da sociedade) e se tais personagens começam a desfrutar de estrutura narrativa tendo histórias próprias e não servindo apenas de apoio para outras personagens necessariamente heterossexuais e fazendo valer a

questão da existência enquanto diferença (BUTLER; 1996), ou seja, uma heterossexualidade sempre representada em detrimento de uma homossexualidade subalterna e abjeta.

A primeira novela da década de 80 a tratar da homossexualidade é Brilhante, escrita por Gilberto Braga. A grande novidade em “Brilhante” é que o personagem gay, Inácio (Dennis Carvalho), faz parte da trama central da história e é apresentado apenas como um sujeito masculino e não está carregado de códigos que remetam ao feminino. Inácio é filho de Chica (Fernanda Montenegro), matriarca dona de uma joalheria que a todo o momento fica empurrando mulheres para o seu filho casar. Ao conhecer Luiza (Vera Fisher), Chica se encanta com ela e a apresenta a Chico. Ambos se conhecem e passam a nutrir amizade, porém, com o decorrer do tempo Luiza acaba por entender que Inácio é homossexual. Luiza conta tal desconfiança a mãe de Inácio, que se enfurece e passa a destratar Luiza no decorrer da trama. A produção de “Brilhante” data de 1981, época em que a censura ainda vigorava no Brasil. Como a referida novela, diferentemente das outras, tratou abertamente da questão homossexual em sua história acabou por chamar a atenção dos censores que proibiram o autor, Gilberto Braga, de mencionar a palavra homossexual (Memória Globo). A única referência que o autor conseguiu colocar no ar foi um dialogo entre Luiza e Chica, na ocasião a personagem de Luiza disse que precisava falar sobre os “problemas sexuais de Inácio”. Braga disse que por conta da censura não pôde aprofundar a questão e também foi preciso reformar toda a estrutura da trama (Ibidem).

No decorrer da história Inácio se casa com Leonor (Renata Sorrah) para que a mãe pare de fazer pressão sobre a sua vida. Mas o personagem passa a levar uma vida dupla com encontros em um apartamento que mantém secretamente e onde pode vivenciar a sua sexualidade. Com o passar do tempo Leonor fica desconfiada das inúmeras tardes em que o marido desaparece sem dar explicação. Certa tarde Leonor resolve seguir Inácio e descobre o apartamento secreto de seu marido. No término da história Inácio se divorcia de Leonor e vai embora para a França viver com Cláudio (Buza Ferraz).

No ultimo capítulo da trama a personagem de Fernanda Montenegro tem um diálogo final com Luiza. Na conversa Chica pede para Luiza assumir a presidência de sua

empresa e diz que gostaria muito que ela tivesse casado com o seu filho Inácio. Mas, dando a entender que aceitou a homossexualidade de seu filho, ela diz que Inácio será feliz por ser uma pessoa “boa” e que ele seja o que quiser ser, já que a “vida é dele”. Podemos dizer que o discurso para a sua época revela aparente avanço, mas já está embotado com a questão normativa, pois, Inácio é posto como uma pessoa inteligente, amável e por conta disso vai ser feliz, tal discurso ideológico em torno da sexualidade normativa vai se perdurar nos anos seguintes e ganhar força em outras tramas do autor Gilberto Braga.

No capitulo final temos também a cena em que Inácio se despede de sua mulher, Leonor. O casal se abraça e Leonor deseja que Inácio seja muito feliz. Não está dito, mas a cena deixa claro que se trata da sexualidade do personagem. Porém, assim como colocou Gilberto, a censura impediu que a questão fosse tratada abertamente. Na cena seguinte, Inácio desenvolve um dialogo com sua mãe, onde ambos passam por uma espécie de acerto de contas. De um lado Chica, a mãe, diz que gostaria de se desculpar por ter dado uma educação “castradora e repressora” e sente por, ao lado de seu marido, ter imposto uma vida que não era para ele, Inácio. Abaixo reproduzimos parte significativa do diálogo, pois é sintomático em relação à maneira como a questão homossexual e a vida que estava destinada aos homossexuais eram tratadas

- Eu queria que você entendesse o que nós fizemos com você, diz a mãe de Inácio, que permanece em silêncio.

- Em 1977, quando você parou os seus estudos de piano, nós agimos muito mal. Nós forçamos você a aceitar um esquema de vida para o qual você não tinha inspiração e nível nenhum. Nós escolhemos por você. Que loucura isso. E não foi por falta de amor, isso é o mais terrível.

Em seguida a mãe de Inácio assume que faltou uma visão de vida mais liberta:

- Faltou uma visão de uma vida mais rica, mais liberta, uma visão de vida maior... Acho que foi isso. Eu reconheço que nós sufocamos você a vida inteira. Queremos

que você viva uma vida que não era sua. Que casasse, que tivesse filhos e que se estruturasse, para que um dia você ocupasse o lugar do seu pai. Que erro meu filho, que erro. Que triste, não é? Esquecemos que você tinha uma vida sua, um ser humano diferente de nós, uma vida para ser feita por você. Um caminho pra você percorrer. Nós fizemos isso por amor, mas tinha alienação, tinha castração, mas também tinha amor.

Após escutar em silêncio os argumentos de sua mãe, Inácio diz a ela que não deve se culpar pela educação que eles lhe deram durante a vida inteira:

- Parece que vocês foram os vilões a vida inteira e eu o garotinho indefeso que fazia tudo o que vocês mandavam, não era nada disso. Cada um é responsável pelo que faz na vida. Eu sou o responsável por ter parado de estudar piano aos 21 anos de idade. Eu era adulto, portanto, sou responsável. Eu sou o responsável por não ter sido aceito nessa casa da maneira que eu sou, do meu jeito. Eu não lutei para que vocês me aceitassem. A única vez que eu agi da minha maneira foi quando eu comprei a barra e saí de casa, comprei a barra de viver sem grana, de tocar naquele bar que você chamava de imundo. Mas, vocês não eram responsáveis pelos porres que eu tomava, que eram por pura fuga, por escapismo. Vocês não podem ser responsáveis por que eu me trancava nesse quarto e não falava com vocês. A minha vida eu sempre tomava uma atitude covarde, sempre. Mas agora chega, acabou. Eu sou responsável por deixar que vocês me dissessem o que fazer. A gente é responsável por tudo o que compactua.

Este diálogo pode representar certo avanço para a época – anos 80 e ditadura vigente – porém, está repleto de símbolos os quais fazendo paralelo com afirmações de Simone de Beauvoir, que são valores “culturalistas e masculinistas” (BEAUVOIR, 1947). A todo o momento a mãe tenta justificar a sua opressão frente à sexualidade de seu filho, este a exime de sua culpa, mas assume uma postura viril e de homem independente, característica do homem heterossexual normativo. Ao compararmos com outros personagens já abordados aqui entenderemos que até então possuímos dois tipos de homossexuais representados nas telenovelas das 20h, à época: viris – independentes -másculos e afeminados – pobres - marginais. A quem considere o personagem de Inácio em “Brilhante” como um avanço, porém, nada faz a não ser referendar o discurso da matriz heteronormativa (BUTLER).

A faixa noturna das telenovelas da Rede globo só voltou a abordar personagem homossexual cinco anos depois de “O Brilhante”, com outro grande sucesso da teledramaturgia, “Roda de Fogo”. O personagem em questão era o advogado Mário Liberato (Cecil Thiré), braço direito do protagonista da trama, Renato Villar (Tarcisio Meira), empresário inescrupuloso que faz de tudo para obter poder, mas que no decorrer da história se transforma em “herói” após diagnosticar um câncer e saber que tem apenas seis meses de vida. Porém, o autor da novela, Lauro César Muniz, assim como Gilberto Braga, foi censurado e não pode abordar a questão homossexual de seu personagem. O único símbolo que indicasse tal sexualidade homossexual de Liberato era a relação de extrema intimidade que tinha com o seu mordomo Jacinto (Cláudio Curi), o qual fazia massagens em seu patrão e na época gerou comentários. O ator Cecil Thiré foi considerado gay pelos telespectadores e declarou que chegou a perder papéis por conta de seu personagem (IstoÉ Gente, edição 56). Os personagens Mário Liberato e Jacinto foram assassinados no final da trama.

Podemos observar que duas coisas aqui começam a constituir um padrão: primeiro os tipos de personagens gays que começam a ganhar estrutura narrativa, ou seja, histórias com começo, meio e fim. E, por conseguinte, temos os personagens cômicos, caricatos e marginalizados. Ambos os tipos têm as suas funções e papéis definidos e posicionados. Não é permitido que vá além (BERLO, 2003). Há também um limite muito bem colocado para tais representações sociais: aparentemente há um avanço, ou seja, tais personagens parecem que saem da margem da história, mas, da mesma maneira que avançam um pouco, logo são devolvidos para o seu lugar de ordem na história: a margem (FOUCAULT; 1986). Tal estrutura é construída no roteiro e oficializada pela censura vigente na época em que tais novelas foram realizadas.

Ainda nos ano 80 teremos mais uma produção cuja trama vai abordar a questão gay com personagens. “Vale Tudo”, produção realizada no ano de 1988 e escrita por Gilberto Braga e Aguinaldo Silva. Braga tentaria mais uma vez tratar de forma aberta a questão da homossexualidade e o fez com o casal lésbico formado por Laís (Christina Prochaska) e Cecília (Lala Deheizelin). Desde o inicio da trama já era sabido a sexualidade do casal em questão, porém, o autor foi mais uma vez vítima da censura, que já estava perto de acabar, mas, ainda assim conseguia evitar que

temas como a homossexualidade não fosse tratada. Por exemplo, uma cena onde o casal Laís e Cecília iam contar a Helena Roitman (Renata Sorrah) os preconceitos que sofriam por serem lésbicas foi cortada. A parceira de Laís, Cecília morre durante a novela, porém Laís não acaba sozinha e encontra uma nova companheira com quem encerra a história: Marília (Bia Seidl), (Memória Globo).