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Anos 90: E a “polêmica” se estabelece

As primeiras representações gays na telenovela: Breve histórico das personagens homossexuais no folhetim televisivo

2.3 Anos 90: E a “polêmica” se estabelece

Podemos observar que as representações da homossexualidade nas telenovelas durante as décadas de 70 e 80 foram limitadas e com poucos avanços no que diz respeito a transformar tais personagens em sujeitos sexuados e com histórias. As poucas tentativas foram frustradas frente a censurava que vigorava no Brasil. Pode- se dizer que os personagens observados até aqui representavam valores da época, e claro, uma época e tempo em que ainda imperavam valores fortemente ligados à questão da sexualidade reprodutora, masculina e heteronormativa (BUTLER; 2008). A novela “Vale Tudo”, além de ter sido um marco no que diz respeito à história da telenovela, pois, ao fim de sua trama os vilões se deram bem, ela também representava uma época onde o Brasil voltava a respirar depois de mais de vinte anos de ditadura. Também foi a primeira produção a abordar explicitamente a questão da homossexualidade lésbica com o casal Cecília e Laís.

Anos 90 e Brasil livre da censura: será que agora os personagens gays ganham abordagens mais ousadas? A primeira obra teledramatúrgica da Rede Globo a abordar, nos anos 90, a questão da homossexualidade não é uma novela das 20h (hoje às 21h), nosso objeto de estudo, mas sim uma minissérie, “Boca do Lixo” (1990). Por conta de sua inovação estética e temática consideramos importante tratar de tal trabalho aqui, até por que “Boca do Lixo” representa uma época de muita criatividade e ousadia na Rede Globo.

Escrita por Silvio de Abreu, “Boca do Lixo” conta a história de Cláudia Toledo (Silvia Pfeifer), uma atriz decadente que é perseguida por Henrique Ribeiro (Reginaldo Faria), que depois conquista a atriz e se casam. O que Claudia não sabe é que a tal

obsessão amorosa de Henrique era fruto de um plano. Ribeiro era herdeiro de uma grande empresa e mantinha uma relação afetivo sexual com o pedreiro Tomás (Alexandre Frota). O casamento com Claudia era pra manter a sua imagem “heteronormativa” perante a sociedade. Porém, no decorrer da história Claudia descobre sobre a homossexualidade de seu marido e o casal faz um acordo, resolvem manter um casamento de aparências.

Porém, Claudia vai se envolver com o pedreiro Tomás durante a construção de uma casa do casal em Rio Negro. Infeliz com o casamento e ambiciosa por dinheiro, Claudia planeja com Tomás assassinar Henrique. Eles acabam por executar o plano, porém, Claudia confessa a polícia que matou o marido e leva os policiais no local onde estaria o corpo do marido assassinado, mas, chegando lá não há corpo nenhum: tudo não passara de um plano organizado por Henrique e Tomás. O empresário desejava dar um golpe na empresa simulando a sua morte, porém, Tomás se apaixonou de verdade por Claudia. Na cena final, diante do cerco policial, Henrique assassina Tomás e Claudia.

Apesar de se tratar de uma minissérie experimental, é importante para o nosso trabalho tratar da ousadia com que a teledramaturgia do canal Globo iniciou a sua década de 90 ao colocar um triangulo amoroso bissexual no centro de uma história e ainda por cima levar ao ar tal desfecho narrado acima. Notamos a saída de personagens gays aleatórios para o início de tramas próprias. Nas próximas novelas iremos notar tal constante: o assunto da homossexualidade rumando para o centro das tramas.

A primeira novela dos anos 90 a ter um personagem gay em sua trama é “Pedra sobre pedra” (1992), escrita por Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares. A questão da homossexualidade será abordada com a personagem Adamastor (Pedro Paulo Rangel), que fazia parte do núcleo principal, mas, ao declarar para o seu patrão, o Carlão (Paulo Betti), que o amava cai em desgraça e passa a ser ignorado por seu amor. No que diz respeito às características do personagem em si, Adamastor era um sujeito comum e que vivia com as prostitutas do “Grêmio Recreativo”, local onde parte da história se desenvolve, local também onde os maridos e políticos se encontravam e relaxavam. Ao termino da novela Adamastor continua ignorado por seu patrão.

Mas será com a novela “A Próxima Vítima” (1995) que a questão da homossexualidade ganhará contornos relevantes no que diz respeito a extrapolar os limites da dramaturgia e cair nas conversas populares. Escrita por Silvio de Abreu, o autor, além de abordar a questão da homossexualidade, também abordou o tema das relações interraciais com o casal Sandrinho (André Gonçalves) e Jeff (Lui Mendes). Sandrinho é filho de Ana (Susana Vieira), protagonista da trama e dona de uma cantina italiana. Jeff é filho de Cleber Noronha (Antônio Pitanga) e Fátima (Zezé Motta), também tem mais um irmão e uma irmã: Sidney (Norton Nascimento) e Patrícia (Camila Pitanga). Com tal família o autor resolveu debater a questão de uma família negra em ascensão econômica, até para romper com antigos estereótipos de personagens negros, sempre relegados a marginalia e a pobreza.

Quando a relação entre Sandrinho e Jeff se torna pública uma questão moral dupla vem à tona na trama: casal gay e interracial. A família de Jeff até aceita a homossexualidade de seu filho, mas questiona a cor de seu namorado. Aqui temos uma polêmica em dose dupla: supera-se a crise da homossexualidade e questiona- se a união entre pessoas com raças distintas. Apesar de toda a polêmica envolvendo o casal, Jeff e Sandrinho acabam morando juntos. Uma das ultimas cenas é com o casal, acompanhado de ambas as famílias, inaugurando o apartamento que compraram. O casal virou referência e se tornou um marco, porém, a década de 90 não contaria mais com histórias tão densas quanto a do casal Sandrinho e Jeff.

Um novo personagem gay voltaria a figurar na sucessora de “A Próxima Vítima”, trata-se de “Explode Coração” (1995). A novela, escrita por Glória Perez, tinha como trama central a história de uma família cigana que tinha como tradição arranjar casamentos. No centro da trama está Dara (Teresa Seiblitz) e Igor (Ricardo Macchi), ambos prometidos um para o outro desde criança. Todo o desenrolar da novela se dará em torno do casal prometido: Dara que almeja romper com as tradições da família e repudia o casamento arranjado e que acaba por desenvolver uma relação virtual com Júlio Falcão (Edson Celulari) e a luta de Igor para fazer valer os valores da tradição cigana.

Em paralelo a trama central há a história de Sarita (Floriano Peixoto), personagem que vivia de contar as histórias de musicais que tinha participado. Tinha amizade

com as pessoas do seu bairro, não deixava que zombassem do seu estilo. Porém, o personagem era completamente obscuro: vivia sozinho, não tinha relações afetivos/ sexuais e a questão da sua identidade de gênero – se era homem ou mulher – e de sua orientação sexual – se era gay, heterossexual ou bissexual – também nunca ficou claro e muito menos qual era a função da personagem na trama. Por ser um personagem que não correspondia ao binarismo de gênero (homem e mulher) e ao trinômio da orientação sexual (heterossexual X homossexual X bissexual) o personagem causou estranhamento nos telespectadores poucos acostumados com abordagens sobre sujeitos transgêneros.

A representação de personagens gays em novelas da faixa das 20h durante a década de 1990 se encerra com a exibição de “Suave Veneno” (1999), escrita por Aguinaldo Silva. Toda a história de “Suave Veneno” se passa em torno do personagem Waldomiro Cerqueira (José Wilker), migrante pernambucano que chegou pobre ao Rio de Janeiro e fez fortuna ao explorar o mármore. Na trama ele é chamado de “o rei do mármore”. Em torno dele vivem os filhos e sua ex-mulher, todos dependentes financeiramente de Waldomiro. A trama dá uma reviravolta e Waldomiro divide a empresa com as filhas e decide recomeçar do zero.

A questão da homossexualidade será abordada com os personagens Uálber (Diogo Vilela), guru que tem poderes paranormais e Edilberto (Luis Carlos Tourinho). Uálber e Edilberto são homossexuais que podemos classificar como “caricatos” e mais próximos da representação feminina da homossexualidade. Junto com os dois vive a mãe de Uálber, Maria do Carmo (Eva Todor), que passa a novela inteira pedindo ao filho que se case e constitua família. Apesar de o personagem participar da trama central da história, a sua função está mais ligada ao fator cômico da narrativa (Memória Globo). Sendo assim, o seu personagem e sua história não sofrem qualquer tipo de alteração até o término da novela.

Ao analisarmos os personagens gays nas telenovelas exibidas na faixa das 20h e 22h durante as décadas de 1970, 1980 e 1990 notamos que houve pouco avanço no que diz respeito em desenvolvimento da trama particular destas personagens. No decorrer das produções tivemos alguns destaques e pequenas ousadias, porém, estes personagens sempre estiveram ligados àquilo que Butler designa como “seres abjetos” por sempre estarem relacionados ao sujo e ao desvio e por serem

“invisíveis”. Normalmente tais características estão sempre ligadas aos sujeitos que não fazem parte da estrutura normativa da sexualidade (BUTLER; 2008), isso tanto no cotidiano como nas histórias de ficção, que transitam entre o mundo “real” e o ficcional.