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Anos 70: a marginalização da homossexualidade

As primeiras representações gays na telenovela: Breve histórico das personagens homossexuais no folhetim televisivo

2.1 Anos 70: a marginalização da homossexualidade

A primeira novela a registrar um personagem homossexual entre os seus personagens foi O Rebu (Memória Globo), exibida durante o ano de 1975 na faixa noturna da Rede Globo, às 22h. A novela, que foi escrita por Bráulio Pedroso e dirigida por Daniel Filho, marcou época por conta da estrutura narrativa inovadora à época: os 112 capítulos da trama transcorrem no período de 24h, além disso a novela também marcou por não ter uma sequência cronológica dos fatos. Toda a trama se passa na mansão do banqueiro Conrad Mahler (Ziembinski), que fica no alto da Boa Vista, Rio de Janeiro. O banqueiro organiza uma festa para recepcionar a princesa italiana Olympia Boncompagni (Marília Branco). Na manhã seguinte posterior a festa, os convidados descobrem um cadáver boiando na piscina. Todos os presentes desconhecem a identidade do morto e de quem teria cometido o crime. A partir daí inicia-se a investigação e a novela transcorre entre momento presente e passado. São 24 convidados e todos são considerados suspeitos. A história avança e o gênero da vítima, se é masculino ou feminino, também não fica claro. Pois, entre os flashbacks apresentados na história, é revelado que alguns personagens, entre homens e mulheres cortaram os cabelos e trocaram as roupas, fazendo assim uma brincadeira com os gêneros. A identidade da vítima é revelada no último capítulo: trata-se da jovem Silvia (Bete Mendes), que foi assassinada pelo banqueiro Conrad Malher, que sustentava o jovem Cauê e por conta deste ter se envolvido com Silvia, o banqueiro, com ciúme do rapaz, que vivia sob sua proteção, assassinou a jovem. Este tipo de abordagem homossexual/criminoso vai permear boa parte das telenovelas nos anos 70 (COLLING).

Posteriormente a novela O Rebu, outra trama traria um personagem gay em sua história. Trata-se de O Grito (1975), que também foi exibida na faixa das 22h e foi escrita por Jorge Andrade e dirigida por Walter Avancini (Memória Globo). A história da novela se passou em torno do Edifício Paraíso, localizado no centro de São Paulo e que se destinava à elite paulistana, porém, no decorrer da construção do prédio, a prefeitura levanta o “Minhocão”, que passaria em frente aos dois primeiros andares. Com medo da desvalorização do imóvel, o proprietário, Edgard (Leonardo Villar), resolve construir vários apartamentos populares nos dois primeiros andares,

assim, constrói-se um clima onde a classe A e a classe C passam a conviver juntas. É dentro deste ambiente caótico e neurótico da cidade de São Paulo que várias personagens passam a conviver juntas, entre elas Agenor (Rubens de Falco), jovem bancário que esconde de seus pais, Branca (Ida Gomes) e Sebastião (Castro Gonzaga), a sua homossexualidade. O seu personagem passará a trama inteira vivendo na sombra dos pais. Quase todas as noites Agenor sai vestido com um casaco que cobre todo o seu vestuário feminino, na rua ele se maquia, porém, a sua identidade nunca será revelada. A sua personagem tem pouca função na história e permanece à margem da trama até o fim da telenovela.

Três anos depois seria a vez da novela O Astro (1978), escrita por Janete Clair e dirigida por Gonzaga Blota, abrigar mais um personagem homossexual também vinculado ao marginal e ao desvio. O personagem era Felipe (Edwin Luisi), que nutre forte amizade e relação afetivo/ sexual, à época apenas insinuado, com o cabeleireiro Henri (José Luiz Rode). Na trama os dois vivem de golpes e acabam por se envolver com consumo e tráfico de drogas. Toda a história de “O Astro” se passa em torno do empresário Salomão Hayalla (Dionísio Azevedo), que, de maneira tirânica conduz os negócios da família. Assim como as outras tramas de sua época, O Astro apresenta personagens gays sem qualquer função e, ao termino da historia coloca Felipe, que tem a sua sexualidade tratada de forma dúbia durante todo o folhetim, como o assassino de Salomão Hayalla.

Grande sucesso dos anos 70, a novela “Dancing Days”, escrita por Gilberto Braga, é outra trama que vai abordar a homossexualidade em um dos seus personagens. E, seguindo os passos de suas antecessoras o que teremos é mais um personagem que retrata a homossexualidade de forma abjeta e recatada. Trata-se de Everaldo (Renato Pedrosa), mordomo de Yolanda (Joanna Fomm), personagem central da trama que cuida da filha de Julia (Sônia Braga), ex-presidiária que tenta reconstruir a vida e retomar contato com Marisa (Glória Pires), sua filha que está sob a tutela de Yolanda. Durante toda a trama a função da personagem de Everaldo será a de declamar devoção à atriz Greta Garbo e prestar serviços a sua patroa, Yolanda. Infelizmente são poucas as cenas disponíveis para analisarmos os discursos em torno de Everaldo. A seguir, reproduzimos um diálogo entre o mordomo e sua patroa durante a noite de natal, na qual Yolanda passa sozinha e apenas conta com a companhia de Everaldo. É possível notar a relação de submissão e passividade,

aqui no sentido negativo que o termo pode carregar, pois, além de submisso, Everaldo reproduz uma performance (BUTLER; 1998) feminina e passiva defronte a sua patroa que representa a mulher masculina, viril e independente. Podemos entender que se trata, apesar dos sexos dos corpos em cena aludirem para o contrário, da clara representação da feminilidade/submissão X masculinidade/ autoridade/ dominação.

Na cena estão Everaldo e Yolanda. Antes de ser convidado para jantar junto de sua patroa, Everaldo oferece um presente de natal a Yolanda, que esqueceu se tratar da referida data. Constrangida e solitária, ela resolve convidar o fiel mordomo para sentar-se a mesa junto com ela para compartilhar da ceia de natal:

- Vamos Everaldo, fala alguma coisa! Não fica aí com essa cara de paspalho. Ah, me fala da Greta Garbo, me conta de novo o final da “Rainha Christina”.

- Consta nos livros que, Greta Garbo, antes de fazer a cena final perguntou ao diretor Marrubian (depois ver nome certo do diretor) o que ele queria que ela fizesse. Greta Garbo, você conhece “Tábula Rasa”? Eu quero que o seu rosto seja uma folha de papel em branco, eu quero que você pense em nada. E Greta Garbo, na sua máscara genial, registrou a cara da dor.

Depois de narrar tal episódio sobre a vida de Greta Garbo, Everaldo pede um presente a sua patroa.

- Madame, eu gostaria que a senhora me desse um presente.

- Qual? - Pergunta Yolanda com a voz levemente embargada e emocionada.

Recatado e envergonhado Everaldo indica a bochecha direita, sinalizando que gostaria de ganhar um beijo de sua patroa como presente de natal.

- Feliz natal, madame - diz Everaldo quase chorando e fortemente emocionado.

Everaldo funciona durante todo o decorrer da trama de suporte/ apoio para a personagem Yolanda. Seu personagem não tem história e sexualidade, sendo

assim, assexuado. Para se ter uma ideia da insignificância da personagem para a trama, no site Memória Globo onde estão as sinopses das novelas produzidas pelo canal, Everaldo sequer é citado no texto oficial da obra, que foi exibida durante o ano de 1978 e até hoje é considerada um marco entre as produções teledramatúrgicas.

No ano de 1979 será a vez da novela “Marrom Glacé” incorporar um personagem homossexual em sua trama. Pierre Lafond (Nestor de Montemar) é o chefe gay efeminado do Buffet que dá nome a trama e onde se passa toda a história da novela. Assim como todos os outros personagens aqui relatados durante a década de 1970, Lafond também exerce uma profissão subalterna, é afeminado, ou seja, está ligado de forma pejorativa/ negativa a questão da feminilidade/ mulher. Tal forma de apresentar personagens gays, como podemos notar ao longo desta primeira parte deste capítulo, era padrão. Colling (2007) afirma que as personagens gays da Rede Globo podem ser divididas em três classes: criminosos, afetados e heterossexualizados.

2.1.2 Personagens sem individualidades e as telenovelas enquanto

disciplinas normativas

Se no campo da sociedade civil, durante os anos 70, buscava-se a construção de um discurso afirmativo em torno da identidade homossexual, observamos que na teledramaturgia os personagens homossexuais apresentados nas telenovelas da década de 1970 limitaram-se a tipos que nem podem ser considerados ou classificados como “caricaturas” de sujeitos do cotidiano. A característica, ou a falta de, que mais salta aos olhos quando nos debruçamos sobre estas primeiras representações é a inexistência de individualidade e contexto histórico das personagens. A ausência de uma individualidade sociológica e histórica não permite usar tais tipos para uma “interpretação” da sociedade ou da particularidade social que estes personagens pretendem representar (ECO; 2006). Eco (2006) atenta para o fato de que estes personagens tipificados, que pretendem representar um

conceito, alcançam o seu objetivo, mas que não se trata de personagens, mas sim de “cifras alegóricas” (ECO; 2006: 213). Podemos ainda buscar apoio na afirmação de Foucault (1986) que, ao tratar das sociedades modernas e do modo de produção capitalista/ burguês e de como este vai lidar com a questão do sexo frente a “um regime de liberdade constante” (FOUCAULT; 1986: 17) e que, neste novo regime não significa a supressão do poder repressivo, mas sim o surgimento de uma “forma mais ardilosa ou mais discreta de poder” (Ibidem). Ou seja, apesar do Brasil estar no período final da ditadura, dos movimentos sociais em prol dos direitos homossexuais se constituindo e se difundindo, as novelas neste período surgem como um novo dispositivo para reforçar a ideologia do homossexual enquanto sujeito da degenerescência social. Neste ponto podemos apontar que a telenovela funcionou como um dispositivo, no sentido foucaultiano do termo, para resgatar os valores das teses eugenistas disseminadas no Brasil do fim do século XIX e até metade do século XX, onde os sujeitos que não se enquadravam no espectro da “sociedade fecundante” e eram tidos como “anormais” ou “desviados” (FOUCAULT; 1986).

2.2 Anos 80: Personagens gays começam a ganhar história e