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Vendendo sujeitos, sexualidades e uma “nova cultura”

As primeiras representações gays na telenovela: Breve histórico das personagens homossexuais no folhetim televisivo

2.4 Vendendo sujeitos, sexualidades e uma “nova cultura”

Antes de aprofundarmos a nossa análise a respeito da construção de personagens homossexuais na telenovela é preciso compreender a qual mecanismo e indústria a televisão faz parte, até para melhor embasarmos a nossa crítica à maneira como as sexualidades são construídas discursivamente. É preciso nos atentarmos para o fato de que a telenovela está inserida naquilo que Morin vai chamar de a “segunda industrialização, que passa a ser a industrialização do espírito, e a segunda colonização, que passa a dizer respeito à alma” (MORIN; 1962: 3) e que vai se aprofundar durante todo o desenrolar do século XX e “não mais unicamente votado à organização exterior, mas penetrando no domínio interior do homem e aí derramando mercadorias culturais” (Ibidem). Portanto, os que as telenovelas realizam são apresentar sujeitos – produtos que além de servirem como referenciais culturais organizadores vão também atuar no interior da vida do homem, logo, devemos encarar a telenovela como um dispositivo disciplinador cultural sob a vida dos sujeitos que consomem estes sujeitos – produtos diariamente. Mas, isto não vai se dar de maneira simplória ou dicotômica (Receptor – Emissor) e sim de um jeito mais complexo, mas vai também provocar os sujeitos a desnudarem a semirrealidade que todos carregam

Podemos adiantar que uma cultura constitui um corpo complexo de normas, símbolos, mitos e imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade, estruturam os instintos, orientam as emoções. Essa penetração se efetua segundo trocas mentais de projeção e de identificação polarizadas nos símbolos, mitos e imagens da cultura como nas personalidades míticas ou reais que encarnam os valores

(os ancestrais, os heróis, os deuses). Uma cultura fornece pontos de apoio imaginários à vida prática, pontos de apoio práticos à vida imaginária; ela alimenta o ser semirreal, semi – imaginário que cada um secreta no interior de si (sua alma), o ser semirreal, semi – imaginário que cada um secreta no exterior de si e no qual se envolve (sua personalidade). (MORIN; 1962: 5)

O que devemos entender com esta exposição de Morin? A Cultura de Massas ou Indústria Cultural é mais do que simplesmente uma fábrica de produtos vazios, ela carrega os valores de uma cultura nacional, logo a “cultura de massa é uma cultura” (MORIN; 1962) que vai se somar à “cultura nacional, à cultura humanista, à cultura religiosa, e entra em concorrência com essas culturas” (Ibidem). Isto para dizer que, os sujeitos e suas sexualidades apresentados nas telenovelas retratadas até aqui ter-se-ão uma funcionalidade mais do que meramente ocupar espaços em tramas cheias de reviravoltas; cria-se um diálogo com o telespectador e este, por se sentir parte desta cultura apresentada na televisão, vai carregar estes símbolos e valores apresentados nas telenovelas. E, aqui podemos entender a telenovela como um regime biopolítico, nos mesmos moldes do projeto proposto por Foucault (1979; 2004), pois, como colocou Morin o produto televisivo visa servir também para orientar e organizar estas vidas que consomem televisão e outros produtos da Cultura de Massa. Ao estabelecer o nascimento da biopolítica como um projeto dos liberais desde o século XVII, Foucault aponta o fato deste projeto consistir na diminuição de força do Estado e que este não deve interferir sobre a vida dos sujeitos. É o estabelecimento do Estado Mínimo, porém, isto é feito para que outros dispositivos entrem em ação para conduzir e seduzir os sujeitos, mas sem a impressão de controle ou repressão: é o mercado como nova forma de ferramenta para conduzir as populações, o que Foucault vai chamar de “governamentalidade” (FOUCAULT; 2004), ou seja o governo das mentes. Portanto, quando Morin (1962) estabelece que a Cultura de Massa funciona como uma nova cultura das populações e por sua vez, Foucault estabelece que é o mercado que vai reger politicamente os sujeitos. Portanto, devemos entender a Cultura de Massa como uma cultura criada pelo mercado e a partir disso compreender a telenovela como mais um dispositivo político da Cultura e do Mercado a fim de propor mentalidades aos seus consumidores. Propomos que seja desta maneira que a telenovela seja entendida,

ou seja, que, se as suas histórias são fundamentalmente baseadas na estrutura da heterossexualidade compulsória não é mero acaso, mas sim um projeto pensado por mercadores que decidem que história a Cultura de Massa vai retratar na televisão. Portanto, se observamos a construção de sujeitos marginais socialmente e sexualmente não significa que sejam assim, mas que são pensados para serem assim do outro lado da telenovela, o que se costuma chamar de “vida real”. É fazer crer que estes produtos – os personagens da telenovela assim configuram na sociedade e se não é assim que configuram é desta maneira que os mentores/ empresários da indústria da televisão desejam que tais personagens sejam entendidos e para que tal “realidade” seja creditada e levada adiante repetem a fórmula ao longo de décadas em inúmeros produtos apresentados na televisão. Como podemos notar, até aqui foram três décadas da construção de uma subjetividade ilusória, marginal e abjeta.

Em “A Indústria Cultural” Adorno e Horkheimer também chamam a atenção para o fato de que os produtos apresentados pela Indústria Cultural não são mais do que negócios que visam ser transformados ideologicamente em verdades

A unidade evidente do macrocosmo e do microcosmo demonstra para os homens o modelo de sua cultura: a falsa identidade do universal e do particular. Sob o poder do monopólio, toda cultura de massa é idêntica, e seu esqueleto, a ossada conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda a dúvida quanto à necessidade social de seus produtos. (ADORNO; HORKHEIMER; 1985: 100)

Adiante, Adorno e Horkheimer afirmam que o mesmo poder de conquista exercido pela Indústria Cultural sob as populações é o mesmo “poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade” (ADORNO;

HORKHEIMER). Ou seja, uma dominação efetivada a partir dos dispositivos da Indústria Cultural. Portanto, quando voltamos aos personagens apresentados durante as décadas de 1970, 1980 e 1990 e o contexto social da comunidade homossexual brasileira nessas três décadas, entendemos que a construção dos personagens analisados até aqui servem como extensão do poder aplicado aos sujeitos classificados como “marginais”. Se na maioria das novelas as personagens homossexuais eram retratadas sem histórias, em alguns casos apenas como gancho para algum personagem central, ou como sujeitos que fazem parte da marginalidade e outros apenas como tipos caricatos é por que 1) assim a comunidade homossexual era tratada em seu contexto orgânico 2) produtores e autores também entendiam tais sujeitos desta maneira e 3) por que as telenovelas reproduzem os signos do Regime da Heteronormatividade e este, por sua vez, não reconhece os sujeitos homossexuais enquanto sujeitos legalizados, visto que até o fim do século XX a comunidade homossexual brasileira ainda está alijada de direitos civis e são comumente relacionadas ao avanço da AIDS, ao consumo de drogas e a promiscuidade (TREVISAN; 2003). A este recorte Adorno e Horkheimer vão chamar de “mecanismo econômico de seleção” (ADORNO; HORKHEIMER; 1985), técnica utilizada pelos executivos para construir os produtos a serem divulgados pela Indústria Cultural.

Mas, por mais que os personagens aqui apontados sejam construções enviesadas por um regime que pressupõe a heterossexualidade como obrigação ou “natural” e quando estes produtos apresentam personagens de uma outra sexualidade que não aquela pressuposta pelo regime de maneira caricata ou completamente desconectada do cotidiano é por que a produção novelística brasileira pode ser classificada em duas fases: a primeira, que vai até pré- 1968 como a “fase fantasia” (HAMBURGER; 2005) e a outra fase classificada como “nacional – popular” (Ibidem) que vai até 1990. A partir de então as tramas estarão situadas em temas da contemporaneidade e que serão “sucessivamente atualizadas” (Ibidem). É partir também desta fase “nacional – popular” que se iniciam as pesquisas junto da audiência para captar suas opiniões sobre as novelas exibidas. Este fator faz sentido quando pensamos nas produções dos anos 1990, principalmente a respeito da novela “A Próxima Vítima” (1995) ao abordar o casal Jeff e Sandrinho, que além de serem homossexuais enfrentavam o tabu da relação

interracial e acabaram por provocar uma grande discussão sobre o assunto no âmbito das rodas de conversas populares. Foi também nos anos 90 a abordagem de personagens como a transexual Sarita (Explode Coração, 1995) e Henrique da minissérie “Boca do Lixo” (1990). Portanto, assim como apontou Morin (1962) trabalha-se a construção de uma cultura nacional a partir da Indústria Cultural e de como esta será regida ideologicamente e com técnicas de seleção regidas pelos executivos (ADORNO; KORKHEIMER; 1985). É fato que os personagens da década de 1990 já apresentam uma complexidade melhor do que os das décadas de 1970 e 1980, mas, por mais que fiquemos tentados a dizer que houve uma evolução devemos nos atentar para o discurso hegemônico tanto em personagens homossexuais quanto em heterossexuais. Podemos aqui já apontar para um discurso soberano sobre a sexualidade e a identidade de gênero. Um poder soberano estruturado nos moldes do que foi pensado por Foucault (1986). Iremos nos deter a respeito do discurso soberano no próximo tópico, para que assim possamos melhor compreender um discurso que, apesar de uma aparente correlação com o mundo cotidiano, funciona, seja em personagens homossexuais ou não, para referendar os códigos da Matriz Heteronormativa.