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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC SP

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC SP

MARCELO HAILER SANCHEZ

A construção da Heteronormatividade em personagens

gays na telenovela

Mestrado em Comunicação e Semiótica

São Paulo

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC SP

Marcelo Hailer Sanchez

A construção da Heteronormatividade em personagens gays na

telenovela

Mestrado em Comunicação e Semiótica

Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica sob a orientação do (a) Prof.(a)

Oscar Angel Cesarotto.

São Paulo

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente quero agradecer ao meu pai, Miguel Sanchez Júnior, que tanto me aguentou, mas, também me deu inúmeras dicas e leu este trabalho com toda paciência. E também a todos da minha família que sempre apoiaram e incentivaram as minhas ambições.

Aos meus amigos, não vou citar nomes para não cometer nenhuma injustiça, mas todos aqueles que participaram do processo de criação, que deram ricas e oportunas opiniões e dicas sabem que estão aqui. A vocês o meu muito obrigado pelas cervejas e cigarros que permearam a construção e o desenvolvimento desta pesquisa. Vocês foram inspiradores!

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Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino.

Simone de Beauvoir, 1949.

A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo.

Michel Foucault, 1988

A perda das normas do gênero teria o efeito de fazer proliferarem as configurações de gênero, desestabilizar as identidades substantivas e despojar as narrativas naturalizantes da heterossexualidade compulsória de seus protagonistas centrais: os

“homens” e as “mulheres”. A repetição parodística do gênero denuncia também a

ilusão da identidade de gênero como uma profundeza intratável e uma substância interna. Como efeito de uma performatividade sutil e politicamente imposta, o gênero é um ato, por assim dizer, que está aberto a cisões, sujeito a paródias de si mesmo,

a autocríticas e àquelas exibições hiperbólicas do “natural” que, em seu exagero,

revelam seu status fundamentalmente fantasístico.

Judith Butler, 1990

A sexualidade é como as línguas. Todos podem aprender várias.

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RESUMO

Esta pesquisa propõe analisar a construção de personagens gays em narrativas teledramatúrgicas exibidas na faixa noturna da Rede Globo. Trata-se de demonstrar como são fortemente marcadas pela heteronormatividade, entendida como a organização masculina dasexualidade, e como o privilégio desta norma ainda torna invisível a homossexualidade nas novelas globais. Trabalhamos com a hipótese de que, diferentemente do que acontece com a heterossexualidade, que organiza a homossexualidade como um oposto, a heteronormatividade não contempla oposição ou heteronímia. Ou seja, as personagens gays enquanto dispositivo discursivo para fortalecer as normas da Matriz Heteronormativa. O corpus da pesquisa compreende as novelas América (2006), Duas Caras (2007/08), Paraíso Tropical (2007) e Insensato Coração (2011), a serem examinadas do ângulo de seu avanço ou retrocesso em relação à representação do corpo dissidente do gay. Utilizamos como base teórica os estudos de Michel Foucault a respeito da construção dos discursos normativos e com os estudiosos da comunicação no âmbito da indústria cultural, tais como Edgard Morin e Theodor Adorno. Como metodologia, utilizamos o levantamento histórico e a decupagem de diálogo.

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Abstract

This research aims to analyze the construction of gay characters in narratives displayed in the range night Globo. This is to demonstrate how are strongly marked by heteronormativity, understood as the organization of male sexuality, and how the privilege of this standard becomes invisible even homosexuality in the novels overall. We hypothesized that, unlike what happens with heterosexuality, which organizes homosexuality as an opposite, heteronormativity does not include opposition or heteronomy. The gay characters as discursive device to strengthen the rules of the Matrix heteronormative. The research corpus comprises the novels America (2006), Two Faces (2007/08), Tropical Paradise (2007) and Foolish Heart (2011), to be examined from the angle of its forward or backward in relation to the representation of the body dissident gay. The base of theoretical studies of Michel Foucault about the construction of normative discourses and scholars of communication within the cultural industry such as Edgard Morin and Theodor Adorno. The methodology used and the historical survey decoupage dialog.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 01

CAPÍTULO I

A homossexualidade no Brasil: o sanatório e os sujeitos invertidos 05 1.1 A higienização dos corpos e o governo das mentalidades 06 1.2 O Caso Febrônio Índio do Brasil e a patologização da

homossexualidade no Brasil

09

1.3 O carnaval, as caricatas e a imprensa: A festa entre sujeitos

“invertidos” e sujeitos “legalizados”

13

1.4 O surgimento do movimento homossexual no Brasil: o grupo Somos e o jornal O Lampião da Esquina

17

1.5 AIDS: o nascimento das bichas viris e o surgimento da cultura GLS 34

CAPÍTULO II

As primeiras representações gays na telenovela: Breve histórico das personagens homossexuais no folhetim televisivo

40

2.1 Anos 70: a marginalização da homossexualidade 42 2.1.2 Personagens sem individualidades e as telenovelas enquanto

disciplinas normativas

45

2.2 Anos 80: Personagens gays começam a ganhar história e individualidade

46

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Capítulo III

A representação da homossexualidade nas telenovelas na primeira década do século XXI : Entre a subversão e a normatização

66

3.1 América: Junior e Zeca 68

3.1.2 Paraíso Tropical: Rodrigo e Tiago 69 3.1.3 Duas Caras: Bernardinho, Dalia e Heraldo 70 3.1.4 Insensato Coração: Roni, Xicão, Hugo, Eduardo e Gilvan 72 3.2 O armário, a injúria e a difamação 73

3.3 O Corpo Abjeto 78

CONCLUSÃO ou A impossibilidade de uma representação homossexual na telenovela

83

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INTRODUÇÃO

Debruçar-se sobre a hipótese de que, a partir das representações homossexuais masculinas nas telenovelas das 21h, temos o reforço e a construção da heterossexualidade compulsória, a primeira vista, pode ser considerado um tema já bastante estudado pelas áreas do saber acadêmico. Porém, apenas pesquisar e buscar literatura para afirmar tal hipótese nos parece bastante raso, visto que todas as personagens presentes nas produções da teledramaturgia brasileira funcionam a partir de estereótipos que buscam sempre o consenso e uma representação comum dos sujeitos. Mas, quando pesquisamos a respeito dos sujeitos que se relacionam com corpos iguais vamos identificar mais do que representações estereotipadas, vamos também encontrar a construção de histórias sempre interditas, ou seja, as suas experiências serão sempre contadas entre os silêncios que se apoderam dos possíveis atos, afetivos e sexuais, das personagens. Mais do que identificar uma provável homofobia escondida no não-ato dos personagens, compreendemos que antes disso trata-se de uma construção social em torno de um tipo específico de homossexuais. Ao analisarmos 40 anos de presença homossexual na telenovela exibida na Rede Globo na faixa das 21h, vamos encontrar semelhança com personagens fabricados tanto nos anos de 1970 quanto nas produções atuais. Este fato nos remete aquilo que a filósofa Judith Butler vai afirmar sobre a construção do

gênero e da sexualidade, que ambos funcionam e se tornam “verdades” a partir da “repetição discursiva”, seja ela feita nos meios de produção da Indústria Cultural como aqueles propagados por setores da sociedade civil. Portanto, se no espaço teledramatúrgico cabe apenas os sujeitos homossexuais masculinos viris ou extremamente femininos é por que a produção em questão visa colocar como verossímil tais personificações. Um exemplo de como tal construção funciona é que muitos sujeitos homossexuais que não correspondem aos atos propagados pela

cultura é que muitos escutam a pergunta “nossa, você nem parece que é gay”.

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dentro de seu próprio grupo social. Homens afeminados e mulheres masculinas (não necessariamente homossexuais) sabem bem disso.

Dizemos que tal estrutura de construção das personagens está ligada a Matriz Heteronormativa. O que é a Matriz Heteronormativa? São os códigos construídos em torno das sexualidades e do gênero. As regras da Matriz valem para os heterossexuais, homossexuais, bissexuais, transgêneros, homens e mulheres. A Matriz funciona como um dispositivo de controle a convocar os sujeitos a viverem as suas sexualidades dentro de certos padrões e são estes padrões que vão dar o tom da construção das personagens homossexuais. Mas, o discurso em torno da heteronormatividade não é um objeto que surgiu do nada, a sua construção e solidificação se dá desde o século XVII e principalmente a partir do século XVIII, quando as instituições religiosas, militar, medicinal, política e mais à frente, a Indústria Cultural vão se pautar todas pelo mesmo discurso em torno da sexualidade

“normal e anormal”. Estas instituições também vão levar adiante o seu ideal dos sujeitos enquanto máquinas reprodutoras e também corpos que podem servir ao sistema capitalista. Portanto, assim com apontamos acima, durante os séculos o ideal heteronormativo foi se constituindo a partir de sua repetição propagada pelas instituições públicas e privadas e terá como célula principal a família e aqui estamos no cerne de nossa questão: os homossexuais ou os corpos que se deitam com corpos iguais serão ao longo dos séculos 1) reprimidos; 2) encaminhados para as instituições medicinais e policiais; 3) não mais ignorados pelos poderes, mas, serão assimilados pelo comportamento heterossexual compulsório, ou seja, suas vidas e histórias serão contadas, sempre, a partir do prisma da heterossexualidade compulsória, que significa: constituir família, não praticar afetos em locais públicos, homens viris e mulheres femininas e por fim, o casamento.

Para entender como este discurso encontrou guarida na cultura brasileira, em nosso primeiro capítulo fomos ao início do século XX no Brasil para entender como a figura do homossexual feminino desde sempre vai estar associada a um comportamento

“promíscuo e associado ao feminino/mulher”. Encontramos no Era Vargas, a partir

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vai chamar de “homens de verdade”. É também nesta primeira metade do século XX

que vai chegar ao Brasil às teses eugenistas e disseminar o conceito de

“comportamentos perversos”. São estes cientistas que vão classificar o

comportamento homossexual, que à época eram classificados como os “invertidos”, como “patológico” e digno de tratamento nas instituições psiquiátricas. Ao lado dos

homossexuais também estavam os bêbados, viciados e as mulheres classificadas

como “histéricas”. Identificamos também que todo um saber a respeito dos sujeitos

“anormais” e “invertidos” será construído no Brasil e também pela Europa, mais

especificamente França, Alemanha e Inglaterra.

Os eugenistas tiveram como ícone o criminologista Cesare Lombroso, que, entre alguns estudos, vai dizer que é possível identificar os sujeitos “invertidos” a partir da

formação craniana. O conceito do homossexual afeminado ou do “pederasta passivo” se dissemina não apenas entre os estudiosos, mas também no meio social

e isso nos ajuda entender melhor por que a figura do homossexual masculino carregados de significantes que remetem ao comportamento feminino será excluído do contexto social como um todo e também dentro de seus grupos sociais. Também nos detemos de que maneira o movimento homossexual dá os seus primeiros passos no Brasil, o advento da Aids e um retorno ao discurso da patologização da homossexualidade entre as décadas de 1980 e 1990.

(14)

Se durante a segunda metade do século XX os personagens homossexuais em telenovela careciam de subjetividades e narrativas próprias, como se dá este cenário na primeira década do século XXI? Eis o objeto de nosso terceiro capítulo, onde

analisamos as personagens homossexuais das novelas “América” (2005), “Paraíso Tropical” (2007) “Duas Caras” (2008) e “insensato Coração” (2011). Em um primeiro momento nos deparamos com personagens que, em relação ao século passado, possuem suas histórias, porém, uma polêmica se estabelece definitivamente: a carência de afetividade e sexualidade das histórias homossexuais. Portanto, para fazer a análise nos apoiamos nos estudos de Judith Butler, Michel Foucault, Beatriz Preciado, Didier Eribon e Monique Wittig. Partimos do prisma de que, mais do que representar histórias de corpos que se relacionam com corpos iguais, estamos de frente para um poderoso dispositivo de adestramento de sexualidades e comportamentos e não apenas às histórias homossexuais, mas também às narrativas heterossexuais. Porém, defendemos a hipótese que dentro de uma estrutura da Heterossexualidade Compulsória das telenovelas, por mais que tais personagens viessem a ter relações sexuais de fato, suas histórias estão marcadas pelos valores tradicionais da sociedade: familista e patrimonialista. A partir de então, cria-se uma nova forma de marginalidade: as histórias de corpos que não se enquadram no trinômio Hetero – Homo – Bissexual.

(15)

CAPÍTULO I

A homossexualidade no Brasil: o sanatório e os sujeitos

invertidos

Sempre que um novo folhetim é anunciado para estrear na faixa das 21h do canal Rede Globo e que esta nova trama terá entre os seus personagens um gay o movimento social e parte dos cidadãos homossexuais já desconfiam de que será

“caricato”, termo utilizado para designar homossexuais afeminados e que também pode ser empregado em sujeitos que fazem apresentações caricaturais em casas noturnas, que são as transformistas, que a partir dos anos 90 passam a ser chamadas de Drag Queens por conta do sucesso mundial do filme “Priscila, a rainha do deserto” (GONTIJO; 2009: 100).

Mas, por que o personagem gay afeminado incomoda tanto entre os homossexuais masculinos? Para entender de onde nasce à ojeriza ao sujeito masculino afeminado é preciso voltar ao Brasil do começo do século XX e do início das políticas de controle e de saúde da população, que ganhou força no Estado Novo de Getúlio Vargas (GREEN; 2000: 234), que trabalhava em cima do ideal masculino que foi

chamado de “A nova educação física”

O governo promoveu a “nova” masculinidade, idealizando força, juventude e poder. Uma revista de educação física sintetizava esse ideal: “A nova Educação

(16)

A ideologia governamental à época não fala explicitamente de uma heterossexualidade normativa (BUTLER; 1990), mas a partir de tal discurso e de sua técnica de micropoder (FOUCAULT; 1979), visto que será a partir das aulas de educação física e de materiais didáticos na rede pública de ensino que a Era Vargas vai disseminar o conceito de masculinidade que irá permear até o fim dos anos 50, cria-se um discurso do que seria o “homem de verdade” (BENTO; 2006). Na década

seguinte, com o surgimento dos movimentos de contracultura, a masculinidade viril

ou a dos “homens de verdade” vai dar espaço para uma performance masculina

liberta de códigos normativos e viris. Porém, com o advento da AIDS, no início dos anos 80, os dispositivos discursivos sobre o corpo saudável e viril voltam à tona, mas sobre este tema iremos nos deter mais à frente, antes é preciso entender a constituição do discurso que vai reconhecer alguns sujeitos e relegar outros, que

não fazem parte da “sociedade fecundante” (FOUCAULT; 1986: 10), à margem.

Posteriormente, estes signos da masculinidade e da sexualidade “oficial” vão ditar e

pautar a construção das personagens homossexuais nas telenovelas e também na imprensa brasileira.

1.1 A higienização dos corpos e o governo das mentalidades

Na década de 20 do século passado as instituições de saúde e católica estabeleceram um Código de Moralidade que era divulgado e aplicado pela Igreja Católica, que contava com o apoio da polícia na repressão e posteriormente no cárcere psiquiátrico dos sujeitos de “condutas perversas” (GREEN; 2000: 191).

Segundo pesquisa do antropólogo James N. Green (2000), as famílias buscavam

apoio da Igreja, esta se apoiava na polícia para, junto com as famílias, “conter e

controlar as práticas perversas”

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relações sexuais “perversas”. Quando fracassavam, às vezes recorriam à intervenção

do Estado. A polícia, a justiça e a medicina trabalhavam em uníssono para conter e

contralar esse “desvio”. Presume-se que esse tipo de pressão institucional a de desencorajar atividades homossexuais servia para disciplinar e desmoralizar alguns

indivíduos, que acabariam por reverter a um estado de “normalidade” heterossexual

(GREEN; 2000: 191)

O relato de Green sobre como as famílias e as instituições do Estado e religiosa

atuavam juntas a fim de fazer com que sujeitos “anormais” aderissem a uma pratica sexual “normal” nos leva para uma questão que era a influência dos profissionais da

saúde brasileira por teorias de cientistas europeus. Estas teorias chegavam ao Brasil e tinham forte influência filosófica positivista no que diz respeito a políticas

“eugenistas” (GREEN; 2000) e que trabalhavam com a tese da internação para “curar” sujeitos “invertidos”, esta expressão era uma das palavras que se utilizava para designar condutas homossexuais e que foi adotada pelos médicos e pesquisadores à época. Durante as décadas de 20 e 30 se desenvolveu no Brasil uma corrente de pesquisadores ligados à medicina e que defendiam o Estado enquanto mola propulsora para uma política de “purificação da nação brasileira”

(GREEN; 2000). Nesta época as áreas dos saberes a respeito da medicina,

criminologia, psiquiatria e direito atuavam juntos para “curar” os sujeitos

homossexuais.

É importante notar que neste contexto dos anos 20 e 30, no Brasil, todo um saber médico e legal começa a ser constituído em torno dos homossexuais, ou sujeitos

considerados “anormais” (FOUCAULT; 2001) e “desviantes” e que deveriam ser

adequados aos padrões de masculinidade proposto pelas instituições em questão. Influenciados pelas teorias que chegavam da Europa, os médicos que se dedicavam

a pesquisar o tema dos “invertidos” apontavam para algumas características destes homens. Pontuavam que alguns “disfarçavam” o biotipo homossexual, mas que outros não e que muitos se aproximavam dos trejeitos femininos. Constrói-se a partir daí códigos que visam tornar patológicos os homens com trejeitos afeminados, o

próprio uso do termo “invertido” já nos remete a um homem ao contrário, ou seja,

(18)

homossexualidade como uma prática antinatural, a Igreja Católica não terá papel

fundamental na patologização dos “invertidos” nesta época, pois, os médicos insistiam que não se tratava de um “vício” ou “pecado”, mas que faltava uma

educação moral e de “fibra” por parte dos pais aos seus filhos (GREEN; 2000).

Os pesquisadores do Brasil que se debruçaram sobre o assunto da homossexualidade durante os anos 20, 30 e 40, importaram os estudos sobre comportamentos homossexuais realizados na França, Alemanha e Inglaterra (GREEN; 2000: 198). De todos estes estudos importados a respeito das políticas eugenistas, comportamento criminal e desvio social, dois pesquisadores tiveram fundamental incidência no discurso e desenvolvimento do saber brasileiro a cerca de

temas como “raça, gênero, criminalidade e biologia”: Cesare Lombroso,

criminologista italiano; e Gregorio Marañon, professor da universidade de Madri (GREEN; 2000). Marañon e Lombroso serão os responsáveis por desenvolver

teorias que apontavam diferenças físicas entre os sujeitos “normais” e aqueles que possuíam algum tipo de “desequilíbrio endocrinológico” como justificativa para um

possível desvio sexual. Destes dois, são as ideias de Marañon que irão permear todos os trabalhos brasileiros a respeito da homossexualidade durante os anos 30 e 40. Uma das características que será apontada como signo enunciador de um sujeito homossexual será a proximidade com a feminilidade. Os sujeitos femininos à época ficarão conhecidos como “pederastas passivos”.

Este percurso medicinal/ criminal de identificação dos sujeitos invertidos ou

“pederastas passivos” nos ajuda a entender a construção deste ser abjeto que é o

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enquadrados pelo discurso do neo-liberalismo brasileiro, que, assim como o faz em todo o mundo, a partir da Indústria da Cultura, oferece alguns modos de viver, mas claro, dentro de seu regime, que, além de ser o regime do Império do Capital, será também o regime do Império do sexo normativo/ modalizante (PRECIADO; 2011).

1.2 O Caso Febrônio Índio do Brasil e a patologização da

homossexualidade no Brasil

Durante os anos 20 e 30 o Brasil acompanhou o caso de Febrônio Índio do Brasil,

que foi preso em 1927 e condenado como “louco moral”, que à época era um

dispositivo jurídico e psiquiátrico que se aplicava aos sujeitos que violassem as

regras da “norma estabelecida” (TREVISAN; 2003). Febrônio foi preso em agosto de

1927 sob a acusação de estupro de dois jovens. O caso é sintomático para se entender como o discurso em torno da homossexualidade ganha ares de crime e doença na primeira metade do século XX no Brasil, pois revela como os juristas e médicos vão lidar com a questão e de como o dispositivo de patologização da homossexualidade será utilizado para fazer com que o acusado não vá para a prisão comum, mas sim para um sanatório. O advogado de Febrônio utilizou o discurso sobre a homossexualidade de Febrônio como um fator responsável pelas atitudes

“transgressoras” de seu cliente e que, portanto ele não deveria ser encaminhado

para a prisão, mas sim para um sanatório. O mais intrigante na história de Febrônio é que ele será internado não por conta dos supostos estupros pelos quais foi acusado, mas sim por uma possível homossexualidade que atenta contra as normas estabelecidas à época

Partindo da ideia de que sadismo e homossexualismo estão conectados e aludindo à sua religiosidade criminosa, o advogado apresentava Febrônio

como um “louco moral”, portanto tão responsável por seus atos quanto o cego

(20)

Febrônio retirado das mãos da justiça e atirado às garras da psiquiatria, para

receber o tal tratamento “mais justo e mais cientifico”, como diria o Dr.

Leonídio Ribeiro, então diretor do Instituto de identificação e Estatística do Rio de Janeiro. (TREVISAN; 2007; 197)

Febrônio permaneceu internado o resto de sua vida. No primeiro ano de sua internação ele seria observado pelo diretor do Manicômio Judiciário, o perito Heitor Carrilho, que declarou tratar-se de um caso de “anormalidade constitucional, em

alusão à sua homossexualidade sádica” (TREVISAN; 2007). Febrônio Índio do Brasil

permaneceu internado de 1927 a 1984, tendo vivido recluso por 57 anos. O caso de Febrônio não despertou apenas o interesse da imprensa da época e dos juristas, mas principalmente fez com que alguns médicos pesquisadores se debruçassem sobre o caso para estudar a homossexualidade, com destaque para o médico Leonídio Ribeiro, que a partir dos estudos sobre o caso Febrônio vai apontar a

homossexualidade como um fator que causava “degenerescência” e “insanidade” no

sujeito. Ribeiro fez parte dos criminologistas que depuseram no julgamento de

Febrônio sustentando que ele era “louco” (GREEN; 2000: 210).

Leonídio Ribeiro era adepto da teoria eugenista que já vigorava desde o século XVIII na Europa e que chegava ao Brasil no final do séc. XIX começo do séc. XX. A teoria

eugenista acreditava na “raça pura” e na interferência da ciência sobre o corpo, além

disso, os teóricos eugenistas vão apontar as misturas raciais como fator degenerativo dos seres humanos e usar tal argumento para justificar a existência de pessoas loucas, sujeitos invertidos, enfim, a marginalidade como um todo era fruto

da miscigenação. Em seu trabalho sobre Febrônio, Ribeiro o define como “mestiço

escuro em quem são francos os caracteres do cruzamento caboclo-preto”, ou seja, o

médico perito se utiliza da miscigenação de Febrônio em seu discurso como produtora de um sujeito marginal, com problemas mentais e com tendências homossexuais (GREEN; 2000). Além de Ribeiro, outros médicos vão propagar o discurso da miscigenação e de diferenças físicas para designar homossexuais e criminosos. Com a disseminação de tal ideologia eugenista, estes médicos da

primeira metade do século XX no Brasil vão defender a internação de “invertidos” em

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Em seu trabalho sobre a homossexualidade no Brasil no século XX, James Green (2000) relata que, apesar das teorias apresentadas na época, que classificavam a homossexualidade como uma doença ou desvio de conduta, estarem repletas de

fraquezas argumentativas, elas eram recebidas “de braços abertos” pelos

pesquisadores brasileiros, principalmente se eram realizadas por europeus, ao invés de serem confrontadas. Green também atenta para o fato de que, a partir do desenvolvimento dos estudos destes médicos eugenistas do começo do século XX brasileiro criou-se uma cultura discursiva que abordava a homossexualidade como doença e algo nocivo à sociedade

Muitos intelectuais brasileiros acolhiam de peito aberto noções eugênicas da inferioridade de determinadas raças e da natureza degenerada de determinados tipos sociais, especialmente quando os proponentes destas teorias eram europeus. Além do mais, o sistema de apadrinhamento e o caráter hermético dessa área de estudo desencorajavam a crítica aos mestres, patrocinadores e colegas. Em vez de reconhecer e confrontar a inconsistência dos métodos de pesquisa e das teorias de europeus e brasileiros envolvendo crime, raça ou homossexualidade, um pequeno círculo de intelectuais tecia loas aos trabalhos de uns aos outros, escrevia

introduções laudatórias às monografias de seus pares e citava as “descobertas”

recíprocas de cada um. A cultura gerada dentro dessa intricada rede de profissionais brasileiros desencorajava as reflexões críticas sobre os resultados da pesquisa, fossem eles relacionados com a identificação de degenerescência, fossem uma proposta de antídoto para a doença da homossexualidade. (GREEN; 2000: 213)

A partir deste cenário de introdução e influência da teoria eugenista nos estudos medicinais brasileiros e também a partir dos escritos de Leonídio Ribeiro sobre o caso Febrônio Índio do Brasil identificamos o início da prática que será chamada por

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que começa a vigorar no Brasil e ganha força com a Era Vargas e posteriormente com a presidência de Juscelino Kubitschek.

Temos a construção do trinômio sujeito – perigo – perversão que vai se dá com a junção entre o poder jurídico e psiquiátrico. É a partir desta união, diz Foucault, e também a partir dos laudos médicos que irão servir de bases para julgamentos de

sujeitos “perigosos”, que o poder psiquiátrico vai assumir a função do poder

judiciário e categorizar novos tipos de sujeitos que não são em si criminosos, mas que carregam consigo perversões que devem ser tratadas pelas instituições medicinais. Os sujeitos classificados como “perversos” e que segundo os laudos

psiquiátricos cometeram crimes por conta de um histórico de problemas psiquiátricos não serão mais mandados às prisões, mas sim para tratamentos. Foucault (2001) diz que a partir deste momento histórico, os anos 50, o que se visa punir não é o ato criminoso cometido, mas, sim o sujeito criado pela instituição psiquiátrica. Estes sujeitos criados pelo discurso psiquiátrico carregam, todos eles, dois componentes que vão marcar boa parte dos símbolos ao redor dos sujeitos homossexuais ou

daqueles que não se enquadram nos parâmetros da “heteronormatividade compulsória” (BUTLER; 1996): Perigo e perversão. A partir deste aparato discursivo

cria-se uma rede de signos que vão nomear grupos de sujeitos enquanto perversos e criminosos e que devem ser tratados ou, como veremos adiante, normalizados

para os padrões posto pela “sociedade disciplinar” (FOUCAULT; 1986) que vigora

desde os anos 60 com a ascensão do neoliberalismo e ganha força nos anos 80 com o fim da União Soviética e com o fim da divisão do mundo entre o polo Capitalista e Comunista. Foucault ainda ressalta que esta junção entre judiciário e

poder médico “implica” na “reativação de um discurso essencialmente parental -infantil, parental-pueril, que é o discurso dos pais para os filhos, que é o discurso da

moralização mesma da criança” (FOUCAULT; 2010: 31). Este discurso produzido para as crianças tem como objetivo prevenir as crianças do “perigo social” e será um dispositivo para detectar o “perigo” e “opor-se a ele”. De que medo e perigo fala Foucault? Quem ou que grupo representa este “perigo social”? Trata-se dos sujeitos

“invertidos”, estes, que como observamos, “atentavam” para o bom funcionamento

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materiais pedagógicos da Era Vargas passam a representar este “perigo social” que

permanecerá patologizado até o inicio dos anos 90 pelo poder judiciário e medicinal.

1.3 O carnaval, as caricatas e a imprensa: A festa entre sujeitos

“invertidos” e sujeitos “legalizados”

Se durante o final do século XIX e começo do século XX todo um saber e poder médico – jurídico foi desenvolvido para, a partir do “conhecimento – legal”, patologizar os sujeitos que até os anos 30 e 40 ainda eram chamados de “invertidos” ou “pederastas passivos”, é a partir do fim da década de 50 e início dos anos 60 que

os homossexuais masculinos vão se apropriar de espaços ditos heterossexuais durante a celebração do carnaval e se apropriar de vestimentas femininas para subverter o espaço público. É também a partir deste momento que se inicia um processo de construção identitária do homossexual brasileiro. Durante as décadas de 60 e 70 as primeiras identidades gays começam a circular pela sociedade

brasileira, nesta época estes sujeitos eram chamados de “bonecas”, “enxutos” e “almofadinhas” (GONTIJO; 2009: 27). O inicio do movimento gay é apontado por

Gontijo (2009) como propulsor desta mudança discursiva em torno dos homossexuais brasileiros, porém, ele atenta para o fato de que ainda não havia uma

“identidade homossexual”, pois, “esses indivíduos eram associados (e se associavam) simbolicamente ao gênero oposto”. Ainda segundo Gontijo é a partir da década de 70 que começa a se constituir uma identidade homossexual no Brasil

com o surgimento das “travestis, transformistas, caricatas e entendidos, criando uma espécie de subcultura gay nos grandes centros urbanos” (GONTIJO; 2009).

O Carnaval brasileiro já chamava a atenção de turistas desde os anos 30 (GREEN;

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maquiagens emprestada de suas mulheres”, pois, estes homens ao se “travestirem”

de mulheres durante o carnaval não abandonam os papéis de “homens de verdade”

na sociedade brasileira. Findada a festa, todos estes homens voltam para os seus

lares. Mas Green reconhece que o carnaval é o momento “onde muitos

homossexuais brasileiros têm a oportunidade de intensificar suas experiências como indivíduos que transgridem papéis de gênero e fronteiras sexuais socialmente

aceitáveis o ano inteiro” (GREEN; 2000: 335). Portanto, os dispositivos da

heteronorma adormecem durante o carnaval para acordarem na quarta-feira de cinzas.

O primeiro bloco carnavalesco assumidamente “travesti” e “homossexual” que se tem notícia é o “Caçadores de Veados”, os organizadores se “apropriaram da terminologia que era utilizada no cotidiano brasileiro” (GREEN; 2000) para fazer uso

debochado à expressão. Fez parte do bloco o lendário personagem Madame Satã, que ficou famoso pelas suas exuberantes fantasias que ganharam inúmeros prêmios durante os anos 40 e que teve a sua vida retratada no longa metragem que leva o seu nome (Madame Satã; 2002). Mas, é apenas no final dos anos 50 que surgem os blocos exclusivamente para travestis, homossexuais, lésbicas e transexuais e que começam a ser pensados e organizados por empresários e foliões. Mesmo o carnaval sendo a festa onde homens heterossexuais se apropriavam do aparato feminino para se fantasiar, a presença de homossexuais e outros sujeitos não heterossexuais não era bem vista pelos participantes dos blocos carnavalescos (GONTIJO; 2009). Por conta disso e também pelo aumento expressivo de homossexuais e de seu poder aquisitivo, inicia-se a organização de bailes, blocos e festas voltadas exclusivamente para as travestis, que mais tarde ficaria conhecido

como o “Gala Gay”.

A primeira metade do século XX no Brasil vai servir para constituir a imagem do homossexual enquanto sujeito “invertido” e digno de tratamento, a segunda metade

do século XX vai se dar pela constituição das identidades dos homossexuais. Isso se dará principalmente por meio de festas e blocos carnavalesco e do incipiente movimento gay, que ganha a sua primeira versão com o grupo anárquico “SOMOS – Grupo de Afirmação Homossexual”, fundado em 1978, na cidade de São Paulo.

(25)

carnavalescos como ferramentas no desenvolvimento da identidade homossexual dentro da sociedade brasileira. Será no carnaval que irão emergir as figuras controversas a romper com o binarismo de gênero heteronormativo, seja nas representações ou nas práticas sexuais, que imperava nos dispositivos sociais à época. Destaques para as caricatas, que faziam de seus corpos travestidos uma paródia das mulheres. Surgem também as transformistas, que além de fazer shows de humor parodiando o gênero e os códigos do feminino, interpretavam figuras femininas da música. Tanto as caricatas quanto as transformistas tornar-se-iam personagens fundamentais da subcultura gay que se desenvolvia no final dos anos 70.

O primeiro bloco de carnaval a ganhar destaque na imprensa foi a “Banda de Ipanema”, fundada em 1965 na zona sul do Rio de Janeiro. A Banda de Ipanema seria o primeiro bloco a utilizar o termo “banda” (GONTIJO; 2009) e logo se tornaria

um fenômeno popular. Fundada por intelectuais que se contrapunham aos desfiles

de carnaval que na opinião deles estavam se “mercantilizando” (Ibidem). Ainda hoje

a Banda de Ipanema é considerada uma das mais libertárias e mais frequentada por

“homossexuais” (Ibidem). Com o sucesso da Banda de Ipanema, os realizadores do

bloco vão incentivar outros bairros do Rio de Janeiro a fundarem a suas bandas. A

primeira banda assumidamente homossexual será a “Banda Carmem Miranda”.

Além do caráter subversivo de levar o carnaval de volta às ruas, as bandas serão responsáveis por ocupar boa parte da imprensa durante o carnaval e fazer com que gays e transformistas sejam matérias de capa das principais publicações da imprensa em vigor nos anos 70 e 80, com destaque para a extinta revista Manchete, que em 1977 fez uma longa reportagem sobre a Banda de Ipanema e pela primeira

vez citava as palavras “homossexuais” e “caricatas” para descrever os participantes

da banda que apareciam em seis grandes fotos, sendo que três destas fotos foram

de “caricatas”, algo que até então não tinha acontecido em nenhum veículo de grande circulação da imprensa brasileira (GONTIJO; 2009).

Não será apenas o carnaval o responsável por produzir figuras e expressões artísticas que irão contrapor a estruturas normativas da sociedade organizada sob os ditames heterossexuais. No teatro e na música do Brasil dos anos 70 aconteceu,

o que se chamou à época, um verdadeiro “desbunde”, termo que se utilizava nos

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experiências “fora do sistema” (FACCHINI; SIMÕES; 2009). Na música o grupo Secos & Molhados causava furor com as performances andróginas de Ney Matrogrosso, que ora eram femininas, ora agressivas, mas sempre contestadoras de um status quo comportamental – sexual que imperava na época. Em um estilo similar, porém mais radical e de alcance maior, o grupo musical e teatral Dzi Croquettes causou uma revolução silenciosa que durante anos não foi atingida ou silenciada pelo crivo da censura militar, que entrava na pior fase no Brasil após a promulgação do Ato Institucional nº 5. Os Dzi Croquettes eram liderados pelo bailarino norte-americano Lannie Dale, que junto do grupo trouxeram para o Brasil o estilo que nos Estados Unidos era conhecido como genderfucker (ibidem), movimento desenvolvido no norte da América no fim dos anos 60 que tinha como ideologia a não representação dos gêneros em suas formas unitárias, a ideia era representar corpos nem machos, nem fêmeas, uma mistura, uma não convenção em torno dos gêneros enquanto representação performativa. Os Dzi Croquettes levaram isso ao extremo pelo Brasil afora, principalmente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, onde tinham um séquito de fãs que os perseguiam e que foi apelidado pelo grupo de “tietes” (Ibidem).

A grande diferença dos Dzi Croquettes com os outros artistas do Brasil é que, aqueles homens que subiam aos palcos com cílios postiços, maquiados, com vestidos, mas ainda com pelos, transformaram o Dzi Croquettes num estilo de vida. Os integrantes do grupo vivenciavam o seu cotidiano assim como no palco, ou seja, no dia a dia usavam calças justas, roupas coloridas, batom, salto alto e mini blusa. Por conta disso, os fãs do grupo passaram a se portar igual aos integrantes do grupo e uma “família” foi formada. É a partir deste surto “dzi croquetteano” que os

militares passaram a investigar o grupo e consequentemente a censurá-los e no fim dos anos 70, exilá-los (LESSA, Raphael; ISSA, TATIANA; Dzi Croquettes: 2009).

Os Dzi Croquettes colocaram nos palcos brasileiros uma ambiguidade de virulência inédita entre nós – influenciados também pelo espírito dos

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dançavam em cena e contavam piadas cheias de humor ambíguo, tentando furar o cerco repressivo desse período ditatorial em que a censura e a polícia mobilizavam-se ao menos movimento que destoasse dos parâmetros permitidos. (TREVISAN; 2005: 288)

Trevisan (2007) prossegue o seu relato a respeito do grupo Dzi Croquettes dizendo

que o sucesso “fulminante” do grupo se deu entre a “juventude mais insatisfeita da época” e que eles conseguiram construir, como relatado acima, dentro e fora do palco, uma importante contestação da “moral sexual” e também em torno das experiências com drogas como “forma de libertação interior”. Trevisan também diz que a radicalidade estética do grupo foi importante para introduzir no Brasil o debate a respeito da sexualidade e também por colocar em xeque os papéis sexuais e de

gênero e também por introduzir a figura da “bicha”, que servia de contraponto a

figura da “bicha viril” que começava a surgir no Brasil dos anos 70. Por fim, os Dzi Croquettes trouxeram para o Brasil “o que de mais contemporâneo e questionador havia no movimento homossexual internacional”. A posteriori, a cultura da bicha ou do genderfucker proposta pelo Dzi Croquette seria substituída pela “moda

conformista dos gays machos da década de 1980 e das barbies dos anos 90”

(Ibidem).

1.4 O surgimento do movimento homossexual no Brasil: o grupo

Somos e o jornal O Lampião de Esquina

Observamos até aqui que a identidade construída em tornos dos sujeitos

homossexuais, até a primeira metade do século XX, será a do sujeito “invertido” que

ameaça o bom funcionamento da moral e dos costumes da sociedade heteronormativa, que se pauta pela reprodução. A identidade dos homossexuais

enquanto “pervertidos” e “invertidos” foram construídas pelos médicos e

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entendidos enquanto heterossexuais. O surgimento desse “poder-saber”

(FOUCAULT; 1988) sobre a vida humana enquanto projeto político e como forma de controle sobre o funcionamento da sociedade data do século XVIII. Foucault aponta

para o fato de que “pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se

no político” e de que a intervenção do poder político sobre as populações vai se

ocupar de como estes sujeitos devem viver. Foucault diz que nasce aí a “bio

-história” e os mecanismos de cálculos governamentais que fará do “poder-saber um

agente de transformação da vida humana”

Se pudéssemos chamar de “bio-história” as pressões por meio dos quais os

movimentos de vida e os processos da história interferem entre si,

deveríamos falar de “bio-política” para designar o que faz com que a vida e

seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana; não é que a vida tenha sido exaustivamente integrada em técnicas que a dominem e gerem; ela lhes escapa continuamente. (FOCAULT; 1988: 156)

Foucault segue explicando que se inicia uma era onde a vida do homem moderno está em questão e que inúmeros dispositivos são colocados em prática a partir do

que ele chama de “bio-política” ou “governamentalidade” para reger e sugerir

comportamentos aceitáveis. A partir deste momento onde surgem os estudos medicinais sobre alguns tipos de comportamentos e onde também já observamos uma união entre os poderes religiosos, medicinais, psiquiátricos, políticos e policiais

emerge uma série de “tecnologias políticas” que irão “investir sobre o corpo, a

saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de vida, todo o espaço

da existência” (Ibidem). É também a partir dos surgimentos destas técnicas de poder sobre a vida que nasce a “sociedade normalizadora”

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atividade legislativa permanente e ruidosa não devem iludir-nos: são formas que tornam aceitável um poder essencialmente normalizador. (FOUCAULT; 1988: 157)

Estes saberes e poderes que ganham corpo e força no século XIX e que visam uma sociedade homogênea e normatizada vão produzir a partir de seus próprios discursos os primeiros focos de resistência que irão se apropriar de estudos e projetos políticos aplicados a partir de dispositivos estatais para desconstruir a

identidade do sujeito “invertido” como personagem nocivo ao bom funcionamento da

sociedade. A partir do momento em que os poderes se voltaram para o corpo e para

a população é “o sexo o alvo central de um poder que se organiza em torno da gestão da vida, mais do que a ameaça da morte” (FOUCAULT; 1988: 160). É

exatamente este poder e controle sobre o sexo que vai gerar os discursos contrários a estas formas de controle e normalização sobre a sexualidade dos corpos. Um dos primeiros filósofos a trabalhar pela desconstrução do discurso em torno do

homossexual enquanto sujeito “invertido” e também pelos direitos civis da comunidade homossexual que se formava à época foi Edward Carpenter (1844-1929), militante socialista; também atuou neste campo Magnus Hirschfeld (1868-1935), médico e que fundou o Comitê Humanitário Cientifíco, em 1897. Esta organização trabalhou com o discurso de que a homossexualidade era um “terceiro sexo” com o intuito de retirar a categoria homossexual da marginalidade e do hall de doentes e assegurar “os direitos básicos atribuídos a homens e mulheres”

(FACCHINI; SIMÕES; 2009: 38).

Hirschfeld e Carpenter iniciaram um ativismo contestatório dos saberes médicos que

tratavam a homossexualidade como uma categoria “degradada”, podemos então

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Hirschfeld ficou conhecido como o “movimento da reforma sexual” (Ibidem) e teve o

seu auge entre as décadas de 1910 e 1920. Quando, em 1917 conseguiu fazer com que o governo Bolchevique retirasse as leis anti-homossexuais de sua constituição e com a fundação do Instituto de Ciência Sexual, em 1919.

O Instituo de Ciência Sexual, fundado por Hirscfeld, foi responsável por iniciar debates a respeito das diferenças entre “homossexuais”, “andróginos”, “travestis” e “hermafroditas” que, segundo o pesquisador, “eram variantes benigmas, provavelmente de base orgânica e inata”. Segundo Facchini e Simões estas divisões

foram importantes por suplantarem a base do discurso que seria vociferado por boa

parte do movimento homossexual e também “serviriam como referências para a

produção de novas identidades sociais e sexuais, que buscariam espaço no

movimento político” (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 42). Porém, todo este avanço em torno de teorias que visavam retirar das identidades homossexuais o estigma de

“degenerados” ou “invertidos” seriam soterradas a partir dos anos 30 pelo Nazismo e

pelo regime Stalinista, na União Soviética. A mando do governo nazista, o Instituto de Ciências Sexuais seria destruído. A Rússia Soviética e a Alemanha nazista

passariam então a “promover violentas campanhas contra a homossexualidade”, a

criminalização da homossexualidade voltaria a configurar a Constituição dos dois países. Se na Alemanha a homossexualidade era tida como uma ameaça à construção da raça ariana, na Rússia soviética a relação entre pessoas do mesmo sexo constituiria um desvio revolucionário e símbolo da decadência burguesa (ibidem).

Posteriormente a Segunda Guerra Mundial dois fatos dariam novo gás para a rearticulação do movimento homossexual e de sua luta pela despatologização da homossexualidade. O primeiro seria com a publicação, em 1948, do Relatório Kinsey. O pesquisador Alfred kinsey publicaria uma série de relatórios a respeito da

sexualidade que “originou a revisão sobre o comportamento sexual masculino, a

partir de hipóteses como a de que 37% dos homens americanos haviam tido algum

experiência homossexual” (FIGARI; 2007: 369). Os relatórios de Kinsey ajudaram na

desconstrução de que as relações homossexuais estavam restritas a pequenos grupos e que, mais do que imaginava o senso comum, as relações sexuais entre pessoas do mesmo se fazia presente para além dos guetos. Posteriormente, mais

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Simone de Beauvoir, que traria novos conceitos não apenas para a homossexualidade feminina, mas germinaria em um novo debate a respeito da constituição do gênero enquanto discurso político e criação cultural voltado para a dominação dos sujeitos efeminados pelos sujeitos viris.

No ano de 1951 ativistas lésbicas e homossexuais de Los Angeles fundaram o grupo

Mattachine Society (Ibidem),alguns anos depois da fundação deste grupo surgiram algumas dissidências, a qual se destaca o grupo lésbico Daughters of Bilits, nome inspirado no livro de contos lésbicos eróticos Chansons de Bilits. A década de 50 ainda acompanharia o surgimento de vários grupos políticos em prol da causa homossexual surgirem na Holanda, Dinamarca e França (Ibidem). Estes grupos de ativistas homossexuais articulados na primeira metade do século XX tinham como foco a luta pela descriminalização e despatologização da homossexualidade e um discurso mais conservador e, ao contrário dos argumentos de Kinsey, que trabalhava com a possibilidade de várias manifestações da sexualidade, estes grupos focavam os seus discursos no dualismo homo/ hétero. Os grupos mais radicais surgiriam durante os anos 60, principalmente nos Estados Unidos, onde seriam influenciados pelos movimentos hippie e de contracultura no geral (FACCHINI; SIMÕES; 2009).

O fato responsável pelo surgimento de um movimento gay articulado nos Estados Unidos, Europa e mais tarde no Brasil, é o levante de Stonewall Inn, bar localizado na Christopher Street, Manhattan, Nova York, região boêmia e ponto de encontro de homossexuais. Na noite de 28 de junho de 1969, a polícia de Nova York baixou no bar para fazer uma batida, porém, os frequentadores do local, cansados de serem humilhados pelos policiais, resolveram enfrentar a polícia e travaram uma batalha de

“pedras e garrafas com os policiais” (FACCHINI; SIMÕES; 2009).

O levante de Stonewall teve repercussão internacional e despertou entre a comunidade gay a necessidade de uma luta organizada pelos direitos civis e pela desconstrução do discurso marginal e patologizador que ainda perdurava sobre os sujeitos homossexuais. Facchini e Simões (2009) destacam que a revolta de

Stonewall“não foi um acontecimento espetacular isolado”, mas foi o responsável por

suscitar o movimento de orgulho em torno da identidade homossexual. A partir de

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Lésbico”. A partir dos anos 70 as expressões “se assumir” e “sair do armário”

passariam a ser utilizadas como expressões políticas de afirmação da identidade

gay frente a uma sociedade e sistema políticos normativos que resistiam em reconhecer o coletivo homossexual como sujeitos de direitos civis. Os ativistas à época também lutariam contra a imagem de minoria que circundava a comunidade

gay. Do levante de Stonewall emergiu o gay Power e o orgulho gay, mas grupos mais radicais trabalhariam a concepção de identidade gay enquanto contestadora do sujeito homossexual pensado até o momento. Grupos como o norte-americano Gay Liberation Front preconizavam o rompimento com o binarismo homo-hétero, para este grupo o sujeito gay deveria atuar como dispositivo de subversão das categorias

binárias, “não dizia respeito a uma preferência ou orientação sexual determinada,

mas equivalia, antes, a um modo de vida eroticamente subversivo” (FACCHINI;

SIMÕES; 2009: 45). A América Latina teve militância parecida com o grupo argentino Nuestro Mundo, organizado em 1969 e que a partir de 1971 se chamaria

Frente de Liberación Homossexual (FLH). A FLH teve uma publicação que levava o nome de Somos, que inspiraria o nome do primeiro grupo gay ativista do Brasil.

Porém, por conta da ditadura militar argentina, a FLH foi “destroçada” em 1976

(Ibidem).

Observamos, a partir dos fatos históricos narrados acima, que a construção da identidade homossexual pode ser dividida em três fases: em um primeiro momento os sujeitos homossexuais serão tratados pelas instituições durante os séculos XVIII

e XIX como “anormais” e “seres degradantes”. A estas práticas sexuais restará o cárcere e a internação em clínicas para se “tratar” a “inversão” sexual que acometia tais sujeitos; o segundo momento da construção da identidade homossexual se dá com os trabalhos do pesquisador alemão Hirschfeld ao iniciar o debate a respeito de

várias possibilidades identitárias e sexuais como manifestações “inatas” com a

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anos 60 surgiriam os grupos mais radicais que criticariam uma espécie de normalização na luta binária homo – hétero, tais grupos apontavam a identidade gay

como objeto de uma subversão da sexualidade proposta pelas sociedades de então. Com o fim dos grupos e do movimento de contracultura, prevalece a tendência

menos “radical”, que encampa a concepção de uma minoria gay e lésbica. No lugar do hedonismo libertário dos anos 60 surgem os grupos organizados que irão desenvolver os espaços de convivência (os guetos) e estes mesmos grupos se transformam em forças econômicas e políticas. Durante os anos 70 e 80 surge nas grandes metrópoles o mercado segmentado e com isso a normalização de uma luta subversiva em pauta econômica e de mercado.

O escritor e ativista gay João Silvério Trevisan relatou em seu livro “Devassos no Paraíso” (2004) a experiência de retornar ao Brasil, depois de ter se exilado nos

Estados Unidos, e articular no país aquele que seria o primeiro grupo de ativismo

gay organizado no Brasil, o Somos. Trevisan conta que ao se exilar nos Estados Unidos pode entrar em contato com várias formas de se fazer políticas voltadas para a questão homossexual, mas, ao chegar ao país, no ano de 1976, Trevisan conta que encontrou grupos com “falta de pontualidade” nos debates que se tentavam

estabelecer em terras brasileiras, pois, segundo Trevisan, os ativistas gays

brasileiros à época já estavam fortemente influenciados pelo discurso comunista que considerava a luta de gênero uma pauta secundária (TREVISAN; 2007: 337). Outro

problema encontrado por Trevisan entre os ativistas brasileiros era o fato de “70%”

dos ativistas acharem normal serem tachados de “anormais” pela sociedade por conta de sua homossexualidade. O escritor relata que os primeiros grupos a romperem com o conservadorismo em torno do debate sobre gênero foram as

feministas que tentavam “impor uma autonomia metodológica em suas discussões,

que foram se ampliando em torno da criação de alguns jornais” (Ibidem). Outro

problema encontrado pelo ativista para colocar a discussão dos direitos civis de homossexuais nos espaços políticos era que a questão começava a ser tratada como um problema das minorias, que na análise de Trevisan era um “rótulo vago e finamente depreciativo” (TREVISAN; 2007: 338). No ano de 1977, o clima para se

fazer militância gay no Brasil era hostil à esquerda e à direita, por conta disso

“alguns intelectuais, jornalistas e artistas homossexuais reuniram-se no apartamento

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“Coletivo para a criação de um jornal feito por e com o ponto de vista de

homossexuais, que discutisse os mais diversos temas e fosse vendido mensalmente

nas bancas de todo o país” (Ibidem). Foi em abril de 1978 (Ibidem) que surgiu o

número 0 do jornal O Lampião de Esquina, que na opinião de Trevisan significou

uma “ruptura” para os valores pudicos da época.

O jornal O Lampião nasce em um Brasil que ainda vivia sob o regime militar. Nesta época, 1978, os movimentos estudantis voltavam aos poucos para as ruas, as greves também voltavam a ser utilizadas como instrumentos de lutas e no meio

deste caldo político surgia a “minoria oprimida que se juntava, à sua maneira, ao

coro de oposição à ditadura” (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 81). Facchini e Simões

relatam que é inegável a importância do jornal O Lampião e posteriormente a fundação do grupo ativista Somos, mas que, mais do que terem sido os primeiros a atuarem de forma assumida, a sua importância está mais pelo legado que deixaram sobre como fazer política, um modelo que até hoje inspira grupos

Não cabe dúvida sobre a importância de ambos (Lampião e SOMOS). Mas vale ressaltar que o reconhecimento que a eles se presta, hoje, se deve não tanto por terem sido, respectivamente, o primeiro jornal e o primeiro grupo a tratar da homossexualidade como questão social e política, nem por terem representado (como efetivamente foram) uma experiência marcante na vida de seus participantes diretos e de todos aqueles que de alguma maneira estiveram à sua volta. (FACCHINI; SIMÕES: 2009: 82)

O jornal O Lampião não foi à primeira tentativa de se fazer um meio de comunicação voltado para as questões homossexuais, mas o que diferenciou o jornal dos outros é que O Lampião buscava retirar a comunidade homossexual do gueto e não mais tratá-la como “criaturas destroçadas por causa do seu desejo, incapazes de

realização pessoal e com tendências a rejeitar a própria sexualidade” (FACCHINI;

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Comunista Brasileiro (PCB); João Silvério Trevisan, que nos anos 60 militou em grupos estudantis e no grupo Ação popular (AP), mais tarde James Green se tornaria colaborador do jornal, o pintor Darcy Penteado, Peter Fry e João Antônio Mascarenhas. Assim, o jornal O Lampião foi o primeiro meio de comunicação a combater estereótipos em torno dos homossexuais e também o primeiro a fazer um trabalho que visava retirar a comunidade gay do gueto

O jornal se propunha a “sair do gueto” e ser um veículo pluralista aberto a

diferentes pontos de vista sobre diferentes questões minoritárias. Isso foi posto em prática com a publicação de matérias sobre o movimento feminista, movimento negro, transexualidade, sadomasoquismo, populações indígenas, prisioneiros, ecologia e até mesmo uso da maconha. Também se preocupava com as condições dos que se dedicavam com a prostituição masculina e feminina, tendo realizado matérias e entrevistas com travestis, garotos e garotas de programa. (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 86)

Simultaneamente ao surgimento do primeiro jornal voltado para pautas gays, mas com uma abordagem libertária, o Brasil também acompanharia o surgimento do primeiro grupo de ativismo gay, que foi idealizado por João Silvério Trevisan, como relatado acima. Trevisan conta (2007) que nos primeiros encontros os temas debatidos não eram os mesmo discutidos pelos grupos esquerdistas da época e que as discussões do grupo, que ainda não tinha um nome, se focavam em

“experiências quotidianas enquanto homossexuais, assim como dúvidas, problemas

e projetos, visando dessa maneira a atuar sobre a realidade sem começar pelo

outro, mas por nós próprios” (TREVISAN; 2007: 339). Outro fator que dava o tom

das conversas pelo grupo era a experiência “traumática” (Ibidem) que boa parte das

pessoas que faziam parte do grupo tinham tido com os partidos de esquerda. Por conta disso, os ativistas desejavam realizar uma atuação política com foco no sujeito e não mais atrelados em comitês centrais de partidos políticos. Em um artigo escrito

coletivamente, conta Trevisan, os membros do grupo classificavam as “trepadas como atos políticos”. Também não trabalhavam com a ideia de lideranças e temas

como a quebra de papéis sexuais (ativos / passivo), a ruptura com o modelo

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transformadora”. Apesar do tom libertário do grupo, esta forma de organização

encontrou resistência à época, pois, quando jovens iam pela primeira vez às

reuniões reclamavam da “falta de orientação ideológica e ausência de organicidade”

Para um período que ainda obedecia os ecos da revolução estilo comunista, tal proposta soava muito atrevida, quando vinda de companheiros esquerdistas, pois contestava a legitimidade das autodenominadas

vanguardas de esquerda tomarem o poder em “nome do povo”. Queríamos

ser plenamente responsáveis por nossa sexualidade, sem ninguém falando em nosso nome. E, na época isso não era pouco. Mas, durante todo o primeiro ano de vida do grupo, nosso apelo não parecia exercer muito encanto, nem entre homossexuais. Éramos um bando de solitários, atacados pela direita e abastardados pela esquerda, tateando em busca de uma linguagem mais adequada às dimensões recém-descobertas de nosso desejo. Sentíamos o gosto da impotência e da frustração. (TREVISAN; 2007: 341)

Trevisan narra como ponto culminante para o movimento gay ganhar as ruas, pelo menos em São Paulo, um debate realizado na Universidade de São Paulo (USP), em 8 de fevereiro, no ano de 1979 (Ibidem). O ativista e escritor conta que o auditório da Faculdade de Ciências Sociais da USP estava lotado. Como expõe Trevisan, o público era composto majoritariamente por jovens militantes profissionais

da esquerda universitária, mas no público também havia inúmeras “bichas e lésbicas” (Ibidem). O debate foi tenso e os estudantes homossexuais no meio do

debate gritavam que a sua luta era o direito de ir “para cama com quem quisesse”, enquanto jovens comunistas diziam que a luta de gênero “era coisa de quem não tinha o que fazer” (Ibidem). O debate durou cerca de três horas, como relata

Trevisan

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aquele nosso primeiro enfrentamento com a esquerda universitária não seria o último, nem o mais violento. (TREVISAN; 2007: 344)

Posteriormente ao debate sobre a questão homossexual na Universidade de São Paulo (USP), o principal ganho foi o aumento considerável de sujeitos interessados em participar do incipiente movimento gay organizado. O grupo idealizado por João Silvério Trevisan passou de dez “gatos pingados” para uma média de 100 pessoas

(TREVISAN; 2007: 345). Além do fortalecimento de uma luta política e organizada em torno da questão homossexual, o debate realizado na USP provocou a urgência de se debater o machismo que ainda residia entre os ativistas gays masculinos (Ibidem) e fez com que o grupo, que já era conhecido pelo nome Somos, germinasse os espaços voltados para debates exclusivos sobre a questão das mulheres lésbicas e de suas demandas específicas (Ibidem). Se por um lado, o surgimento da necessidade das lésbicas em fazerem debates separados a respeito de suas demandas significava um avanço no que diz respeito à questão de gênero no Brasil, por outro lado, ativistas gays consideravam tal postura sectária e isso fez com que houvessem tensões entre ativistas gays e lésbicas. O que no começo parecia um avanço, por muitas vezes se tornou um problemas entre os ativistas. Entendeu-se à época “que ser homossexual não significava uma automática aliança

com as mulheres, às vezes, até pelo contrário” (Ibidem).

Se do lado do ativismo político o Brasil acompanhava o surgimento do primeiro grupo organizado, o Somos e suas ramificações, por exemplo, as lésbicas se organizando em torno de suas questões, o jornal O Lampião começava a sofrer boicotes de algumas bancas de jornais que se recusavam a vender a publicação e também a ser alvo de campanhas produzidas por grupos conservadores que incentivavam o boicote as bancas de jornais que ousassem vender a publicação voltada para a questão homossexual. Em agosto de 1978 o jornal seria alvo de um inquérito movido pelo Ministério da Justiça sob a acusação de atentar contra a

“moral e os bons costumes” (TREVISAN; 2007: 346). Fato curioso é que antes da

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Antes mesmo de instaurado qualquer processo judicial, fomos intimidados e interrogados pela polícia, fotografados e identificados criminalmente; em resumo, a polícia já nos julgava antecipadamente culpados. No interrogatório, umas das primeiras perguntas feitas a vários editores era a confirmação do fato de serem homossexuais. Felizmente, os Sindicatos dos jornalistas do Rio e de São Paulo ofereceram advogado gratuito e apresentaram apoio ao Lampião. (TREVISAN; 2007: 346)

Esta não seria a única ação do regime ditatorial em vigor no Brasil a tentar encerrar

com as atividades do jornal O Lampião. A chamada imprensa “nanica” ou “alternativa” também seria vítima de processos do regime ditatorial. (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 88). Porém, os jornalistas de O Lampião não seriam os únicos a

serem alvos da ditadura por atentarem aos “bons costumes” ao realizar reportagens

com foco na questão gay. O jornalista Celso Cury, que assinava a Coluna do meio,

espaço exclusivo para o debate gay, mas com conotação de coluna social, que era publicado diariamente no jornal Última Hora, foi alvo de processo dos militares. Curiosamente, a motivação do processo do Ministério da Justiça contra O Lampião

era justamente uma reportagem publicada na edição zero que relatava o processo ao qual Cury era alvo (Ibidem).

Além da ousadia de ter sido editado em plena ditadura militar, outra característica que revela o valor transgressor de O Lampião era o uso de termos como “veado”, “bicha”, “bichas loucas” e “boneca” (Ibidem). O jornal também continha uma coluna social que se chamava “Bixórdia”, na qual uma personagem intitulada Rafaela Mambaba “exercitava o linguajar ferino e malicioso atribuído às travestis e às bichas

loucas” (FACCHINI; SIMÕES; 2009: 89). Outra característica que marcou a

existência de O Lampião foi o amplo espaço dedicado para debates sobre o feminismo e a homossexualidade. Uma das entrevistas que mais marcou foi a entrevista com Lecy Brandão na edição de novembro de 1978, onde a cantora falava abertamente sobre a sua homossexualidade (Ibidem). Cabe notar que O Lampião

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