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Discurso silenciador e Heterossexualidade compulsória

As primeiras representações gays na telenovela: Breve histórico das personagens homossexuais no folhetim televisivo

2.5 Discurso silenciador e Heterossexualidade compulsória

Ao questionar a Hipótese Repressiva em torno do sexo, Foucault (1988) vai estabelecer que ao contrário do que se diz comumente, que o sexo foi reprimido ao longo dos séculos, a verdade é que se falou muito sobre o sexo. Mais interessado em investigar o regime repressivo do que desacreditá-lo, Foucault levanta alguns questionamentos que podemos utilizar para aprofundar a questão da abordagem da homossexualidade masculina nas telenovelas noturnas e que, mais do que significarem um avanço, retrocesso ou a preservação da economia heteronormativa, devemos seguir os passos de Foucault e nos apropriarmos de seus questionamentos a respeito de um regime que atuou discursivamente sob o sexo: interessa saber “por que se falou da sexualidade e o que se disse?”, devemos

também já levantar a partir daqui o por que se retratou personagens homossexuais e o que deles foram dito ou apresentado por tais produtos?; assim como Foucault, devemos também perguntar “quais os efeitos de poder induzidos” (1986; 17) sobre o que se disse a respeito destas personagens e por ultimo e talvez mais importante para o nosso objeto é tentar descobrir que tipo de “saber” (Ibidem) se formou a partir de tais abordagens? Parte de nossas dúvidas já estão delineadas quando nos debruçamos sobre a maneira como a Indústria Cultural funciona no que diz respeito aos seus processos de fabricação. Entendemos que, incitados por seus executivos, o que se busca é a homogeneização dos sujeitos a serem representados. E ainda seguindo os passos estabelecidos pela investigação genealógica da sexualidade realizada por Foucault, cabe também identificar quem fala e quais instituições incitam os discursos sobre o sexo

(...) quem fala, os lugares e os pontos de vista de que se fala, as instituições que incitam a fazê-lo, que armazenam e difundem o que dele se diz, em suma, o fato discursivo global, a colocação do sexo em discurso. Daí decorre também o fato de que o ponto importante será saber sob que formas, através de que canais, fluindo através de que discursos o poder consegue chegar às mais tênues e mais individuais das condutas. Que caminhos lhe permitem atingir as formas raras ou quase imperceptíveis do desejo, de que maneira o poder penetra e controla o prazer cotidiano – tudo isso com efeitos que podem ser de recusa, bloqueio, desqualificação mas, também, de incitação, de intensificação, em suma, as técnicas polimorfas de poder. (FOUCAULT; 1988: 18)

Não se trata, portanto, de dizer que não se fala a respeito de sujeitos homossexuais em telenovela, mas, como se fala e de que maneira se fala. Devemos nos atentar, principalmente, para as ultimas linhas de nossa citação quando esta coloca a questão do falar para bloquear e desqualificar. E mais adiante Foucault vai postular que mais importante do que apontarmos para um sistema que transforma as sexualidades em fatos escassos é buscar o contrário e compreender que o regime normativo age ao contrário, ou seja, que diferentemente do que se costuma dizer, o sistema e seus dispositivos de poder e suas “instâncias de produção discursiva” (Ibidem) ao falarem sobre determinadas sexualidades tem por objetivo, a partir da

aparente visibilidade, torna-las invisíveis pela maneira como será abordada discursivamente, que este poder discursivo ao tratar de uma dada sexualidade pode também “organizar o seu silêncio” (Ibidem). E não é exatamente sobre isso que tratamos até aqui? Apesar de observarmos a abordagem homossexual em três décadas de telenovela, o que notamos é que tais abordagens longe de darem conta de uma outra sexualidade possível que não a heterossexual, silenciam e desqualificam a homossexualidade, isto para servir ao regime da Matriz Heteronormativa. Portanto, quando nos aprofundamos sobre a história das representações homossexuais em telenovela e que muitas vezes são comemoradas, entendemos que a sua inserção na história da telenovela serve para manter a Matriz Heteronormativa e a sua economia sexual e silenciar a homossexualidade, como se esta fosse uma ameaça ao sistema normativo da heterossexualidade obrigatória. Portanto, a história da homossexualidade até a década de 1990 nos revela que o discurso de poder utilizado em torno das personagens homossexuais serviu como um dispositivo de poder para “desqualificar”, “bloquear” e “silenciar” estes sujeitos que se relacionam com corpos iguais.

Parafraseando Butler (2008), a entrada de cena dos personagens gays e destes sujeitos é um escândalo, mas, como iremos acompanhar a seguir, um problema/ escândalo que será amenizado pela sua abordagem, mas, nem por isso deixará de causar tensões na sociedade e até mesmo virar pauta jornalística e motivos de censura dentro da própria Rede Globo

Para esse sujeito masculino do desejo, o problema tornou-se escândalo com a intrusão repentina,a intervenção não antecipada, de um ‘objeto’ feminino que retornava inexplicavelmente o olhar, revertia a mirada, e contestava o lugar e a autoridade da posição masculina. (BUTLER: 2008: 8)

Assim como estudamos em nosso primeiro capítulo, desde que a homossexualidade começou a ser tratada como assunto de preocupação medicinal, policial e política a sua conotação será aproximada ao feminino enquanto sujeito menor, diminuído e subalterno. O mesmo se dá com o debate homossexual, porém, quando analisamos

os personagens aqui destacados, por mais que alguns deles carreguem consigo os códigos do feminino, a condição destas personagens pode ser considerada abaixo da condição feminina no que diz respeito à matriz normativa e o seu regime sobre os sexos e sobre os corpos. O discurso de poder empregado nas personagens homossexuais é transformá-los numa espécie aceitável ao público televisivo e para isso estes personagens carecem de afetividade, em sua maioria não possuem estrutura narrativa, ou seja, são personagens soltos que não fazem qualquer diferença a trama e, ainda dentro do raciocínio de Butler, podemos colocar que estas representações de uma possível homossexualidade servem para validar o sistema da “matriz heterossexual”, haja vista que estes personagens em momento algum colocam em cheque ou levantam qualquer tipo de problemática ou questionamento às categorias de gênero do regime heteronormativo ou da heterossexualidade compulsória (BUTLER; 2008). Portanto, devemos entender que as telenovelas analisadas até aqui funcionam dentro do que nós iremos chamar e aquilo que é apontado por Butler como “Matriz Heteronormativa”. Defendemos a hipótese de que estes personagens analisados até aqui, antes de servirem como representação para uma outra sexualidade ou orientação sexual possível são, antes de tudo, personificações condicionadas pelo discurso de poder desta matriz construída sob o prisma da heterossexualidade obrigatória que faz com que tais representações sirvam como um dispositivo higienizador, para tornar estes sujeitos novelísticos o mais próximo possível do homem heterossexual ou em seu extremo, quando serão abordados com extrema feminilidade que, como apontamos acima, no sentido de rebaixar e assim manter a heteronormatividade intacta, ou seja: a sociedade reprodutora e fecundante (FOCAULT; 1988). Dentro deste mesmo contexto podemos colocar estas novelas dentro do pensamento de Foucault para o que vai ser designado de discurso soberano e disciplinar (Ibidem). Soberano por que todas as falas e modos de comportamento aplicados e construídos em torno destes personagens estão sujeitos ao dispositivo de poder da heteronormatividade compulsória; disciplinador por que observamos uma pedagogia do corpo (LOPES; 2010), um regime sob o corpo e sob o comportamento homossexual com fins de neutralizá-lo e torná-lo inexistente e carente de complexidade ou problematização dentro da estrutura narrativa das novelas até aqui analisadas.

A respeito da representação enquanto dispositivo representativo do sujeito político Butler estabelece que este mecanismo tenha como operacional focal dar “visibilidade e legitimidade” (Butler: 2008: 18). Quando pensamos nas personagens enquanto instrumentos de representação e, portanto, com função linguística por estarem dentro de um produto televisivo e consequentemente comunicacional, fica claro que a função destes personagens que permeiam o imaginário do telespectador cumpre o papel de legitimar apenas um tipo de dada homossexualidade masculina. Butler (2008) também coloca o dispositivo de “visibilidade” enquanto discurso de poder normatizador. Se pensarmos nas personagens apresentadas até o momento e a maneira como todas possuem o mesmo destino e a mesma função então devemos concordar com Butler sobre estas personagens carregarem dupla função dentro do regime heteronormativo compulsório da telenovela: normatizar e visibilizar um tipo de homossexual masculino e transformar este como O sujeito homossexual “verdadeiro”, aquele a se tornar referência/ ícone de uma dada sexualidade. Ainda podemos falar a respeito da construção do homossexual de verdade nos mesmos moldes que Bento (2006) estabelece a construção dos “homens e mulheres de verdade” e que, dentro deste regime, tanto os homossexuais masculinos quanto os femininos para serem aceitos terão de corresponder a estes códigos sexuais e comportamentais baseados na construção cultural dos “homens e mulheres de verdade” (BENTO; 2006).

Toda a questão da problemática em torno do discurso das personagens construídas para as telenovelas e que suscitam discussões polêmicas dentro da comunidade homossexual e quanto a sua veracidade encontram o seu respaldo na argumentação que Butler (2008) faz a respeito da veridição falha do sujeito fictício construído pelo campo da lei e que muitas vezes os movimentos sociais - e Butler foca a sua crítica no movimento feminista, ao requerer a legalidade de um sujeito feminista frente ao poder judiciário cai em contradição. Pois, Butler atenta para a necessidade de se apontar um sujeito fora do campo jurídico, já que este é construído, fundado e regulado pelos termos da lei da sociedade da heterossexualidade obrigatória. Ele não poderá ser um sujeito do feminismo. Podemos aplicar o mesmo esquema analítico para as personagens gays apresentadas nas telenovelas: estas funcionam dentro de um esquema regido pelo sistema da Matriz Heteronormativa, logo, esperar que tal personificação contraponha

as regras da sociedade estabelecida como a da Heterossexualidade obrigatória não passará de uma ilusão. Os homossexuais que configuram as novelas, mesmo que aqui estejam no plural, não representam nem no singular e muito menos no plural aquilo que entendemos como sexualidade fora do esquema reprodutor da Norma Compulsória (BUTLER; 2009).

Devemos problematizar a questão do sujeito “homossexual” ou do sujeito “gay” e da maneira como este vem sendo construído ficcionalmente a luz do direito civil e também da Indústria Cultural quando tratamos da telenovela. Como sustenta Butler, assim como o termo “mulheres” não se sustenta mais, ao contrário, é produto de ansiedade social, a identidade gay na maneira como é tratada seja na política seja na esfera do produto cultural, não dá mais resposta aos sujeitos, estes não se encontram mais no tal sujeito/ personagem “gay”

Contudo, além das ficções fundacionistas que sustentam a noção de sujeito, há o problema político que o feminismo encontra na suposição de que o termo mulheres denote uma identidade comum. Ao invés de um significante estável a comandar o consentimento daquelas a quem pretende descrever e a representar, mulheres – mesmo no plural – tornou-se um termo problemático, um ponto de contestação, uma causa de ansiedade. (BUTLER; 2008: 20)

A crítica de Butler é focada na identidade universal do sujeito “mulher” que ignora os contextos históricos, étnicos, raciais e também de ser uma imposição de uma teorização ocidental sobre a questão sexual e de gênero ignorando fatores particulares de culturas, por exemplo, do Oriente. Para além da questão “mulher” enquanto sujeito do feminismo, Butler aponta a necessidade de se entender todos aqueles sujeitos que não se conformam e que os discursos universalistas se minam por suas restrições representacionais discursivas “em que funcionam” (BUTLER; 2008: 21). Portanto, a partir desta crítica ao que Butler pretende chamar de “pós – feminismo” e convocar a construção de um sujeito do feminismo que não esteja calcado numa base teórica única e também na “noção de mulheres como sujeitos do feminismo” (Ibidem), portanto, assim também se faz necessário superar a noção de que estamos diante de um sujeito homossexual sendo representado nas telenovelas

até então analisadas. Estas construções culturais e discursivas dentro do que entendemos e estabelecemos como produtos (MORIN; 1986), (ADORNO; HORKHEIMER; 1985) visam o público universal, portanto, assim como aponta Butler ao fazer a sua crítica a noção de mulheres enquanto sujeitos do feminismo, devemos aqui fazer uma correlação e criticar estes produtos e buscar entendê-los enquanto embustes universalistas que não reproduzem a noção hetero masculina e muito menos a noção homo masculina, mas, quando esta se apresenta está carregada de códigos dos sujeitos heteronormativos. Dispositivo discursivo que entendemos e analisamos enquanto Soberano no que diz respeito a validar uma prática social e sexual na televisão. O que devemos entender a partir destes personagens é que estes sujeitos/ personagens existem fracamente nestas novelas e sem qualquer vínculo com o cotidiano orgânico.

CAPÍTULO III

A representação da homossexualidade nas telenovelas na