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O CARDEAL D HENRIQUE: O PENSAMENTO DA ACÇÃO

AS "MEDITAÇÕES E HOMILIAS ( )"

4.2. ANÁLISE DO TEXTO: APROXIMAÇÕES

4.2.4. SOBRE OS REIS MAGOS

A terceira meditação é relativamente mais longa do que as anteriores, apresenta uma extensão mais notória, ainda que daí não possamos inferir, de forma automática e determinista, um fôlego vincado a um nível até aí não tingido.

Não é fácil aquilatar o valor relativo de um trecho ou a sua funcionalidade, apenas com base no número de linhas ou de palavras. Pelo contrário, por vezes é a concentração expressiva que confere grandeza e intensidade a determinada peça. A que ora se nos apresenta, retoma as temáticas versadas nas anteriores, repetindo-as quase até à exaustão.

O seu interesse não deriva tanto dessa repetição, que é significativa e permite entender o pressuposto básico do Cardeal: usar esse artificio para destacar o exemplo de Cristo.

Não deixa de ser curioso que o nascimento de Cristo compareça ciclicamente. Aqui é transformado em cenário central, ponto para o qual todos os outros convergem e descrito com maior pormenor e mais apurada incidência. Se o programa, a existir, fosse linear não se entenderia a regressão da circuncisão ao nascimento, tema já tratado, mas o propósito era exactemente o contrário.

Os dois textos anteriores cruzam-se no seguinte: a solenidade e grandiloquência do Cristo feito Messias apresentado na circuncisão como anti-guerreiro, ou melhor, guerreiro pela paz, perspectiva que desaparece neste andamento em função da humildade e da pobreza que urgia voltar a ressaltar.

Ao "combate" pela paz sobrepõe-se o usufruto da sua emblemática e milagrosa personificação em Cristo. Mas, não se pense que a mensagem cristã não tem sempre uma intenção persuasiva, pelo contrário, simplesmente o Cardeal enfatiza a força da humildade, nesta meditação Jesus não é solicitado como Chefe. Contudo, a singeleza e o despojamento são "mesagens" com uma enorme expressividade.

É claro que sem sobressaltos ou consideráveis focos dramáticos, esta meditação parece fazer "reinar" a calma, a harmonia, o equilíbrio, estando o espírito do nascimento de Jesus sempre presente.

Não há dúvida que o elevado teor moral destas exemplificações permite fazer uma transposição analógica face aos tempos coevos do Cardeal, pródigos na consolidação tridentina.

Mais uma vez se assumia, implicitamente, que no século XVI dominavam a dissolução de costumes e respectiva corrupção. Era necessário reverter este quadro, com intransigência nos foros inquisitoriais, subtilmente e apelando às virtudes de Cristo, no texto das "Meditações (...)".

0 ser de, com, e em Cristo, eram mais importantes do que o parecer, eminentemente mundano, ligado à ostentação, à vaidade, à ambiguidade no uso de poder e dos símbolos políticos. O Cardeal não utiliza muitas vezes o termo milagre ou mistério. Pode parecer estranho, uma vez que, sem dúvida, encara a humanidade e humildade de Cristo e do seu nascimento dessas formas.

A prova de que o texto henriquino não promove a discussão teológica aí está. Bastam-lhe os exemplos e quadros que os representam: Deus e Cristo. Só pelo milagre, fica implícito, se explica que o Redentor viria encoberto, prenhe de enorme simplicidade, que não era comum nos reis "mundanos" e constitua apanágio do Filho de Deus; só o seu nascimento justificaria a vinda dos Magos à sua presença. Também a família a quem foi dada a graça era humilde. O Cardeal refere igualmente a mesma condição dos Apóstolos.

Mais do que cumprir as leis de Deus, interessaria a José e à sua esposa, no entender de D. Henrique, a meditação na sua graça. Esta era também a atitude henriquina no texto: "(...) este tam Sancto e justo barão e sua sacratíssima esposa, não somente poriam todas suas vontades em conseguir a ley do senhor & a meditar todo o dia e toda a noite, mas muito mais em meditar e consideram os juízos, misericórdia, perfeições do mesmo legislador, criador e redemptor (...)" .

Elucidativa a anáfora e quase consecutiva a repetição do verbo no infinitivo: "meditar". A harmonia trazida a esta família pelo nascimento de Cristo constitui a prova da existência de um paraíso terreal, afastando-se o espectro, a "mancha", e o estigma, do pecado original.

Num tom que tudo fica a dever ao estilo de Sto. Agostinho, diz o Cardeal, em determinado andamento, cuja notação contrapontistica é relevante; "(...) ali estava a árvore da vida: (...) havia de nascer o fruto do divino bocado do Sanctissimo Sacramento, de maior effecto de bem, do que foy do mal o que comeu Adão no outro

Cardeal Infante D. Henrique - op. cit. fl.24v - 25 Cardeal Infante D. Henrique - op. cit. fi. 25v

Também se dignifica a metáfora da "árvore da vida", imagem forte que o hedonismo cultivou e que equivale, no platonismo, à "árvore da sabedoria" e que é tão grata a S. Boaventura e à matriz franciscana. A insistência no "prazer" implícito na existência de Cristo e no seu amor, é patente.Do ponto de vista retórico e alegórico este texto é digno de nota, de certo destaque.

São apresentadas duas alegorias, espécie de histórias de raiz mítica, que reforçam a humildade de Cristo e a sua importância. A primeira, a de um príncipe rico que se faz pobre para testar o amor da princesa rica: "(...) além disso, se hum príncipe de grande sangue nobreza e poder, por informação de uma pricesa das mesmas qualidades, de grande formosura e virtude, a amasse muito e esto não pudesse ser per nenhúa maneira, se não fazendo-se trabalhador, desconhecido, em trajos baixos (...) & se metesse a trabalhar em hua horta a que costumasse vir esta princesa (...) e quanto estimaria mais esta princesa depois que acrescentaria mais o amor, que vendo o com

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todos os concertos & ornamento do mundo! (...)"

Assinale-se, desde logo, a presença do condicional, como modo verbal dominante, denudando uma intenção de converter a narrativa em exemplo. Esta ideia é reforçada por uma eliminação de coordenadas espacio-temporais, fazendo decorrer a "intriga" num espaço sem lugar, e num tempo sem data. Esta desnaturalização confere a esses elementos uma dimensão que os identifica com o Absoluto. São igualmente impressivos os caracteres e qualificativos do príncipe, de molde a ressaltar o gesto subsequente.

A ordem dessa descrição não é aleatória, começa-se a sublinhar a linhagem associada ao estatuto social e culmina o esforço na referência ao poder. E relevante a associação destes aspectos, confirmando uma aliança esntre a estirpe e o exercício das mais relevantes actividades mundanas com proeminência social e relacionadas com o poder.

Esta pormenorizada identificação do príncipe enquadra e engrandece o seu gesto humilde. De tal modo o Cardeal promove, do ponto de vista moral, uma atitude semelhante, que não é de estranhar o recurso expressivo e abundante às exclamações quando exalta a "conversão do príncipe" às maiores virtudes humanas.

Poder-se-ia argumentar que o Cardeal, na sua actividade política e institucional, contrariou a prática destas virtudes que as "Meditações (...)" enaltecem.

É evidente que, enquanto religioso, tinha que defender certos príncipios e, de certo, para a mentalidade epocal a "aparente" contradição expressa era encarada com naturalidade e como legítima.

A segunda história também merece referência, trata do louvor que é devido ao cavaleiro que faz bom o cavalo mau, ficando implícita a crítica ao posicionamento contrário.

A ideia é sensivelmente a mestra do excerto anterior: "(...) Assi como hum cavaleiro entrando em hua batalha em hum cavalo muito bom, o que pode ajudar a fazer muito bem, por sua fraqueza (...) destreza o fizesse mal, lhe acrecentava muito mais a desonra. Pelo contrairo, o que faz bem ao mao cavalo, se mostra mais e se lhe acrescenta mais (...)" .

O que ambas as alegorias pretendem transmitir encontra-se plasmado na moral cristã. O Cardeal concentrou-se na essência do que queria significar, sem grande dispersão retórica, que talvez enriquecesse o texto do ponto vista literário. As duas histórias constituem ressonâncias bíblicas e apresentam reminiscências medievais.

Na época medieval, os romances de cavalaria ou o espírito de cavalaria não estavam irradiados, daí não ser de estranhar que o primeiro excerto enfatize o amor e o segundo, o apetrechamento "bélico", a ordem mais uma vez não é indiferente, ficando a mensagem de que o amor deveria dominar e não estar alheio ao espírito de cruzada, quando este fosse necessário.

4.2.5. "SOBRE O QUE O LEPROSO DISSE A NOSSO SENHOR"

O momento em que o Cardeal resolveu referir-se à cura do leproso é extremamente significativo ao nível da organização textual, uma vez que sucede a consideração do nascimento de Jesus como um mistério e um milagre.

Ora, só uma natureza dessa índole pode alimentar e fazer milagres, como este que patenteia o sentido da vida de Cristo: praticar o bem para com o seu semelhante sem exigir qualquer contrapartida em troca, dando conta de uma generosidade absoluta, do amor ao próximo, que deveria ser o sentido da vida de qualquer cristão piedoso.

São vários os andamentos bíblicos em que o gesto de Jesus é louvado, não diferindo, praticamente, uns dos outros. Veja-se o exemplo de Lucas (5: 12-16): "(...)Estando Jesus numa das cidades, apareceu um homem coberto de lepra. Ao ver Jesus, caiu com a face por terra e dirigiu-lhe esta súplica; «Senhor, se quiseres, podes limpar-me». Jesus estentendeu a mão e tocou-lhe, dizendo; «Quero! Fica limpo!». E logo a lepra o deixou. Ordenou-lhe então para que a ninguém o dizesse. «mostrate ao sacerdote e oferece pela tua purificação o que Moisés ordenou, para lhes servir de testemunho [às gentes]". A sua fama espalhava-se cada vez mais, juntando-se grandes multidões para o ouvirem e para que as curasse de seus males. Mas ele retirava-se para lugares solitários e entregava-se aí à oração (...)".

Esta mesma ideia encontra-se, entre outros, em Mateus (8: 1-4) e em Marcos (1: 40-45). A prostração do leproso é um sinal de humildade perante o Redentor e sublinha amplamente uma vontade de purificação espiritual subsequente à libertação do sofrimento e dos males humanos. O leproso ao ajoelhar-se, ao cair por terra, demonstra a consciência da precaridade humana face à magnitude e à bondade de Jesus.

Curioso é que o relato do Cardeal D. Henrique excede em algumas páginas o singelo testemunho bíblico; à sobriedade deste, sobrepôs aquele o recurso a uma série de redundâncias: "(...) porque pêra vos, remédio universal para todas as enfermidades, basta conhecer-me por enfermo (...) porque coisa sabida he que vos quereis que todos os peccadores se salivem e venham ao conhecimento da verdade, dai-me esse conhecimento de mim mesmo (...) porque todo o impedimento que em mim ha, pêra me salvar he nao me conhecer a mim por peccador e a vos por meu remédio e nao me apresentar ante vos e pedirvos que me salveis. Agora o faço, Redemptor meu, por isso me podeis me remediar e que o queredes nao ha duvida (...) .

Note-se a vontade do leproso explicar a bondade de Jesus, reconhecendo-se como pecador. É neste passo o penitente que ora, como o próprio Cardeal ao longo de todo o texto. O leproso é apenas um dos seus "heterónimos".

A ênfase no ser humano como pecador e em Deus como salvador justificam os encómios e o teor laudatório da prece henriquina, que se centra essencialmente na atitude do leproso e toma como absolutamente natural a resposta de Jesus, decorrente da sua inquestionável bondade divina.

O Cardeal sublinha que só pela oração o leproso pode agradecer a Deus e quase suprime a referência, bem patente na Bíblia, ao exemplo universal do gesto de Jesus, simbolicamente representada na assistência alargada ao milagre; quando se deparou com o leproso, Jesus encontrava-se entre a multidão.

A omissão do Cardeal não implica rejeição deste universalismo, pelo contrário, considera-o consagrado num caso individual, no espírito e no coração de cada um. Assim expressa enorme fervor devoto. Tal como o leproso, o Cardeal pede a graça divina, não só concedida ao corpo, mas, sobretudo, pela salvação da alma.

4.2.6. "SOBRE O QUE DISSERAM OS APÓSTOLOS A NOSSO SENHOR"

Esta Meditação recupera o sentido de saga e constitui forte analogia com a anterior. Usa a forma dialogada, ou pelo menos o sentido da prece, neste caso dirigida pelos apóstolos. O equivalente da enfermidade física anterior, a lepra, é a catástofre natural que se abateu sobre os apóstolos no mar. Mais uma vez, a presença de Deus, através de Jesus, se manifesta e o dom da sua graça é a marca dessa presença, mesmo na aparente ausência.

Jesus não dorme, sobretudo quando o faz aparentemente. Talvez não necessitasse das preces dos humanos para os socorrer, mas era o reconhecimento da precaridade destes, que fazia com que lhe dirigissem preces, a exemplo dos apóstolos.

Novamente, ficava vincada a importância da oração. As redundâncias com que D.Henrique a expressa são comuns ao texto anterior e excedem mais uma vez o quadro bíblico. Diz o Cardeal: "(...) Assi que não dormais, nem os deixais dormir quando cumpre, nem ainda parece que dormis, deixaes de fazer grandes mercês se nos quiséssemos aproveitar delias (...)" .

Vejamos, em contraposição, a concisão dos evangelhos: "(...) Depois (Jesus) subiu para a barca e os discípulos apanharam-no. Levantou-se, então, no mar, uma tempestade tão violenta que as ondas cobriam a barca; entetanto, Jesus dormia. Aproximando-se d'Elle, os discípulos despertaram-no dizendo-lhe: «Senhor salva-nos que pecamos». Disse-lhes Ele: «Porque temeis, homens de pouca fé?». Então levantando-se falou imperiosamente aos ventos e ao mar e sobreveio uma grande calma.

Os homens, admirados, diziam «Quem é este, a quem o vento e o mar obedecem?» (Mateus: 8-23-27)

O carácter divino de Jesus, a sua humanidade e a ideia da salvação por seu intermédio, sobrepujam este quadro. Não será por acaso que esta salvação, que no texto bíblico sobre a cura do leproso, aparece através de um colectivo, a multidão, surja agora por intermédio dos Apóstolos, indiciando complementaridade entre os dois textos henriquinos e, mais do que isso, entre as graças de Jesus e a forma como eram recebidas.

4.2.7. "DA PURIFICAÇÃO NOSSA SENHORA"

Incluindo Trento foram dez os concílios da igreja em que se discutiu Maria, doutrinando-se sobre ela, exactamente metade dos até então realizados . O Concílio de Trento na sua quinta sessão, "declara que não é sua intenção compreender no decreto que trata do pecado original... bem aventurada e imaculada Virgem Mãe (...) na sexta sessão (13/1/1547) afirma que Maria é considerada pela igreja imune de toda a culpa actual, ainda que mínima; e na vigessima quinta sessão (3/12/63) reafirma a legitimidade do culto da imagens de Cristo de Maria Mãe de Deus e dos outros Santos"283

As referências a Maria, mãe de Jesus, não se resumiam aos ciclos mais eruditos, aos teólogos e espirituais, aos textos de índole homiliética como as "Meditações do Cardeal D. Henrique", também nos processos de Inquisição surgiam diversos implicados por versarem o nome de Maria, duvidarem da sua virgindade, desdenharem

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da sua importância, ou, simplesmente, por ignorarem o teor das denúncias.

Por vezes as inimizades entre os envolvidos levavam a denúncias e instauração de processos. Noutras ocasiões havia anticlericalismo ou, então, pouca preocupação com questões religiosas, uma vez que as de economia doméstica e suas agruras dominavam as preocupações.

282 Cf. Domingos Rebelo - O Culto a Nossa Senhora na Diocese de Aveiro. 1988. p. 12. Os Concílios

foram os seguintes: Concílio de Éfaso, (431); Concílio de Calcedónia, (451); II -Concílio de Constantinopla, (553); III Concílio de Constantinpla, (680-81); II Concílio de Niceia, (787); IV Concílio de Constantinopla, (869-70); IV Concílio de Latrão, (1215); II Concílio de Lião, (1274); Concílio de Florença, (1438-45); Concílio de Trento, (1545-63); Concílio Vaticano II, (11/10/1962 a 8/12/65)

283 Domingos Rebelo - op. cit.

Entre pastores eram frequentes estes dois tipos de atitude. No caso das mulheres processadas eram-no, sobretudo, por terem a 'lingua solta'. No delito relacionado com a Virgem Maria estavam em minoria no século XV, ao contrário do que acontecia nos restantes.

Os casos de luteranismo revelavam uma insipiência doutrinária, à excepção dos estrangeiros mais severamente punidos. Tanto esses como os cristãos novos não alinhavam tanto pela blasfémia como pela descrença na virgindade ou na santidade de Maria. Todavia, quase todos os que se dirigiam contra Maria, eram Cristãos-velhos, o que demonstra que, pelo extremo oposto, a devoção aquela era forte, ainda que difusa e pouco esclarecida, fazendo-se acompanhar de ignorância.

Muitas mulheres incorriam em blasfémias porque sentiam Maria tão próxima dos seus problemas que lhos encomendavam, dessacralizando-a sem más intenções: "Ella (Maria) entra na vida de cada um, fazem-na participante e assistente do dia-a dia, dos bons e maus momentos, ela é a "stella matutina, salus inphermorum"

. "Daí as blasfémias, as palavras escandalosas que era sempre um choque para os presentes e para todos que tomaram conhecimentos delas".

Contextualizada a forma como a Inquisição via estes processos e não esquecendo que D. Henrique era Inquisidor Geral, quando aí afluíram com maior insistência, nos primeiros anos da instituição; convém perceber que o aparecimento da Nossa Senhora como tema nas "Meditações (...)" advém da devoção religiosa do Cardeal, da sua experiência de combate no terreno, via Santo Ofício, da necessidade de dar uma forma escrita, estabilizada e menos frentista às suas crenças, uma vez que em 74, ou em 77, já os processos que visavam Nossa Senhora estariam a diminuir, sendo

necessário consolidar a fé dos cristãos e católicos, enfatizando as virtudes daquela.

A primeira meditação em que Maria é tratada de forma individualizada intitula- se, sugestiva e significativamente, "Da Purificação da Nossa Senhora". Nela se evocam e louvam as virtudes de Maria Mãe e se ressalta a sua capacidade de abdicação que não é desistência, mas dádiva, partilha, dando exemplo de bondade e, sobretudo, de humildade, virtude que uma vez mais se convoca.

A abdicação é sinónima de partilha e de ganho, nunca de perda, uma vez que visava a união suprema de Cristo com Deus, vindo à terra por amor e salvação dos homens.

A autonomia de uma temática como a "Purificação de Nossa Senhora" é tanto mais efectiva quanto fundada em aparente paradoxo: Maria só é verdadeiramente livre

quando voluntariamente, e sem necessidade disso, que não espiritual, oferece o filho para sofrer pela humanidade, redimindo-a.

Nossa Senhora é apresentada como exemplo máximo de maternidade, visando, com o sofrimento de Cristo, a salvação e redenção dos homens. Não é tanto Maria "esposa cheia de graça" (Lc I, 28) que é convocada, mas a "bendita entre as mulheres" e, sobretudo, a "mãe do redenttor" (Gn 3, 15-17; Mateus 1-23; Jo 19, 25-27 e Ap 12) e, mais ainda, a mãe do «servo sofredor». Esse sofrimento será sinal de jubilo maior, daí que, apesar de implícita a ideia, não dá o Cardeal ampla expressão à mulher que deu à luz no meio das dores (Gn 3,15-16; Jo 19, 25-27; Ap 12, 2).

Tanto assim é que Maria Esposa surge em função de Maria-Mãe. A humildade de Maria-Mãe é testemunhada pelos Mestres, pelos Magos já citados e por Simão e Ana. Ao primeiro entregou Maria o seu filho para ser baptizado, sabendo que o oferecia para a morte.

Mais uma vez comparece o sincretismo nascimento-morte (Lc 11, 25-44). O cardeal amplifica o passo bíblico: "(...) E como vinha ali Simeon pelo Spirictu Sanctu e esperava a redenção do seu povo, não lhe podia faltar a promessa que tinha de ver o Redemptor tomar em seus braços e dizer: Agora Senhor deixai ir em paz o vosso servo (...) para alumiar todas as gentes (...) ".

A meditação da "Purificação de Nossa Senhora" segue aquela que versa "o que disseram os apóstolos a Nosso Senhor".

4.2.8. "HOMILIA DA QUARTA-FEIRA DE CINZAS"

Partilhamos a perspectiva de Madureira Dias segundo a qual "não deixa de ser significativo que as homilias de D. Henrique sejam todas sobre textos litúrgicos quaresmais. Por um lado isso significa o reconhecimento da importância desse tempo; por outro, revela-se aí uma vez mais, o pendor do arcebispo de Évora para a meditação e exigência da vida, na linha da penitência cristã" .

Com o texto "Da Quarta-Feira de Cinzas" inaugura o Cardeal a referência ao período quaresmal, extremamente importante na liturgia católica: "(...) Para que os homens revivam, repetidamente, a cada ano, a glória de Cristo, de sua vitória sobre a morte, pela Ressurreição, têm de convocar o sofrimento desse mesmo Cristo,

Cardeal Infante D. Henrique - op. cit. fl. 41

humilhado, ultrajado, violentado até à morte por crucificação. Antes de se alegrarem com a Páscoa têm de se penitenciar na Quaresma, no calendário litúrgico um período de 40 dias que começa na quarta-feira de Cinzas e termina no Sábado anterior ao Domingo de Páscoa"287.

O texto é extremamente importante por duas razões essenciais: porque nele se explica o sentido duplo da purificação de Nossa Senhora que, sem precisar, deu o exemplo, e no baptismo deu o seu filho à morte, que significava vida para a humanidade. Esta, constituída por pecadores, deveria dar graças por aqueles gestos e retribuir, na medida da sua precaridade e limitação, reconhecendo-se pecadora e oferecendo o coração e a alma a Deus.

Por outro lado, este andamento textual é significativo porque trata do jejum, da