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Aleijadinho: mestiço, deformador da tradição, artista brasileiro

Parte II barroco

Capítulo 4: Barroco mineiro: “uma criação nitidamente brasileira”

2. Lourival Gomes Machado e o barroco mineiro

2.1 Aleijadinho: mestiço, deformador da tradição, artista brasileiro

A figura de Antonio Francisco Lisboa, o chamado “Aleijadinho”, é assunto de controvérsia até hoje. Documentos comprovam que existiu um homem que atendia por esse nome, assinando contratos de muitas encomendas de obras sacras e atestando assim uma relação comercial. Entretanto, não há uma comprovação de que o próprio Lisboa desenvolvesse esses trabalhos. Devido à variedade e ao grande número de obras atribuídas ao Aleijadinho, o mais provável é que houvesse uma reunião de artífices, e que, possivelmente, essa espécie de ateliê coletivo recebesse muitas encomendas justamente pela qualidade das obras produzidas.

Sem dúvida a orientação dada pela convenção artística, que incentivava a imitação e emulação ou cópia de modelos exemplares, guiava a produção. Entretanto, é nesse limite no qual opera o engenho próprio de cada artífice ou grupo de artífices que diferencia a qualidade de uma igreja de outra ou de uma imagem de outra. Apesar da idéia de autoria não condizer com o modo de produção coletiva colonial, primordialmente anônimo e coletivo, ao observar os trabalhos, é possível notar como são evidentes as diferenças formais e de habilidade dos artesãos. Certamente muitos artistas anônimos integraram esse meio, entre os quais haviam inclusive escravos, uma vez que as artes manuais eram vistas como trabalho inferior ao intelectual e, por isso, na maioria das vezes, desempenhadas pelos menos abastados e, freqüentemente, pelos escravos. Outro evidente problema acarretado pelas questões de autoria diz respeito à maneira como até hoje se confere autenticidade a uma obra. Quando não há documentação a respeito da procedência do trabalho, especialistas atribuem a autoria a partir de critérios que definem o “estilo” do artista, possível autor em questão. Desse modo, amiúde restringe-se a complexidade da produção, reduzindo as possibilidades de experiência artística488.

A figura do Aleijadinho é construída pela história hegemônica como um mito do artista gênio e herói de viés trágico, que teria vencido todas as dificuldades da vida miserável e da doença que o consumia em nome da criação de uma arte original. A função desse mito seria integrar a “identidade cultural brasileira”, como ela foi concebida por vários discursos ao longo da história do pais. É interessante notar que esse procedimento não foi exclusivo de       

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Grammont narra o episodio acerca da autoria do Cristo Flagelado, de Aleijadinho, cuja autoria é questionada pela ausência do “furinho” no queixo. (GRAMMONT, 2002, p.261).

Sobre o assunto, porém dizendo respeito à arte contemporânea, consultar também o filme “Who the #$&% Is Jackson Pollock?”, 2006, dirigido por Harry Moses. Trata-se de um documentário sobre uma estadunidense comum que, ao adquirir um quadro que acredita ser de Pollock, busca provar sua autenticidade.

intérpretes do Brasil, mas que em outros países americanos, onde existiu o fenômeno do barroco, também se criaram personagens nacionais como o “núcleo comum o destacar-se como herói que promove a apropriação e a subversão da cultura européia, transformando-a em uma cultura híbrida489”.

A primeira biografia do Aleijadinho foi escrita por Rodrigo José Ferreira Bretas em 1858490, como meio de ingresso no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, instituição que buscava criar um rol de homens ilustres. Segundo o próprio Bretas, ele teria se baseado em depoimentos da nora do artista e da comunidade de Vila Rica, antigo nome de Ouro Preto, para constituir sua biografia. Para Grammont, o texto de Bretas é lido como registro verídico de fatos da vida do artista, mas deveria ser compreendido como ficção491. Possui um teor romântico, salientando as dificuldades da trajetória do herói e seu fim trágico, além de descrevê-lo como uma espécie de monstro que cria beleza, como em contos fantásticos do gênero A Bela e a Fera. Além da personalidade supostamente “agastada” do personagem, é também frisado seu tipo rude, aliado ao curto período de estudo formal.

O Aleijadinho é descrito por deformações, que decorrem da “doença” que o teria acometido:

As pálpebras inflamaram-se e, permanecendo neste estado, ofereciam à vista sua parte interior: perdeu quase todos os dentes, e a boca entortou-se como sucede freqüentemente ao estuporado, o queixo e lábios inferiores abateram-se um pouco: assim o olhar do infeliz adquiriu certa expressão sinistra e de ferocidade, que chegava mesma a assustar a quem quer que o encarasse inopinadamente. Esta circunstância e a tortura da boca o tornavam de um aspecto asqueroso e medonho492.

A deformação do corpo do artista – que também se reflete, segundo alguns intérpretes, como Mário de Andrade e Germain Bazin, em sua obra – leva-o à reclusão, distanciando-o do convívio com os demais. Assim se pode deduzir como tal descrição colabora para o mito do gênio único e isolado, sem colegas ou discípulos, contradizendo o trabalho em grupo típico da época e incentivando seu suposto autodidatismo, uma característica que faria dele uma artista “sincero”, como entende Andrade493. Nota-se como o julgamento do artista “primitivo”,

      

489

GRAMMONT, 2002, p.18.

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A autora atenta para o trabalho de pesquisa documental realizado por Rodrigo Mello Franco de Andrade e uma equipe que buscaram nos arquivos mineiros comprovações para a biografia de Bretas.

491

GRAMMONT, 2002, p.90.

492

BRETAS, Rodrigo José Ferreira. “Traços biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa, distinto escultor mineiro mais conhecido pelo nome de ‘Aleijadinho’. Em: Antônio Francisco Lisboa: o Aleijadinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde/ Publicações da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1951, p.24

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“rude” ou inculto é também moral, pois essa falta de refinamento garante-lhe uma postura alinhada com o que há de verdadeiro e genuíno.

Essa biografia é a fonte da maior parte dos trabalhos posteriores sobre o artista, desde o próprio século XIX ao começo do XX, sendo fonte inclusive do texto de Mário de Andrade. Andrade e Gomes Machado compartilham dessa visão laudatória do Aleijadinho, encontrando nele uma primeira manifestação da arte brasileira. Aliás, Bretas já afirma, numa posição muita próxima daquela de Andrade e Gomes Machado, que o verdadeiro artista, como o Aleijadinho, intenciona com sua obra a “expressão de um sentimento ou de uma idéia”. Para Gomes Machado, o “verdadeiro posto” do Aleijadinho “não é o de um fabuloso inventor, gratuito e inexplicável, mas o do criador genial que coroa uma evolução erudita e sólida, embora temporalmente breve494”.

Note-se como a deformação anatômica presente nos trabalhos é salientada por ambos como uma alternativa brasileira às soluções portuguesas (fig. 32). Para Mário de Andrade, Aleijadinho é o modelo de produção brasileira porque deforma o exemplo português, criando algo novo.

Fig. 32 – “Aleijadinho”. Profeta Daniel, c.1800 - 1805. Adro da Basílica de Congonhas. Santuário do Bom Jesus de Matosinhos (Congonhas do Campo, MG). Foto da autora. 2010.

A condição de mulato garante sua brasilidade devido à indefinição de sua posição social na sociedade escravocrata – Aleijadinho é em si a miscigenação racial e cultural

      

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MACHADO, Lourival Gomes. “Em busca de um sistema”. São Paulo, Suplemento Literário, O Estado de S.

brasileira495. Gomes Machado alinha-se a essa interpretação, remetendo-se diretamente à análise do modernista.

Afirma Mário de Andrade: ‘É a solução brasileira da Colônia. É o mestiço e é logicamente a independência. Deforma a coisa lusa, mas não é uma coisa fixa ainda’. Assim Mário de Andrade consegue definir o fenômeno Aleijadinho, o fenômeno Minas colonial, esse proto-Brasil. O mestiço, indefinido socialmente e inidentificável até com outros produtos da mesma cruza, dá vazão ao primeiro sentimento, obscuro mas exigente, da nação ainda por formar-se.496

Portanto, a elaboração autenticamente brasileira tem como tradução visual a “deformação” do original, operação elaborada durante o período de formação da arte brasileira, o barroco mineiro, vista positivamente dessa maneira tanto por Andrade como por Gomes Machado.

Esta outra citação de Gomes Machado reforça a interpretação:

E, no caso de Congonhas [do Campo], a observação faz-se essencial, pois o que ali se deformou para possibilitar a expressão, deformou-se com toda discrição, quase imperceptivelmente, enquanto a forte deformação que os inevitáveis entendidos atribuem à “ignorância da anatomia”, para grande irritação de Mário de Andrade, é toda ela direta e essencialmente exigida pelas imposições óticas e plásticas.497

Outro dado importante no que concerne à importância da deformação como traço substancial da produção brasileira é a compreensão de Andrade sobre a “fase final” da obra de Aleijadinho. A deformação não é apenas anatômica, mas é também esse procedimento que garante a dramaticidade da obra, por isso essa fase seria definida por um “sentimento muito mais gótico e expressionista”, marcada supostamente pelo surgimento da doença que, segundo a biografia do artista, havia deteriorado principalmente suas mãos.

O expressionismo a que se refere Mario de Andrade não diz respeito tanto ao movimento alemão do início do século XX, apesar de ter algum vínculo com ele, pois o       

495

Idem, p.11.

496

Gomes Machado afirma ainda: “De tudo o que escreveu sobre artes plásticas, o melhor de Mário de Andrade continuo a encontrar em “O Aleijadinho e sua posição nacional”. Se, depois de enumerar os porquês de minha preferência, ainda houver quem a julgue fundada apenas em razoes subjetivas, peço a esse alguém que me indique outro ensaio crítico escrito no Brasil e que, melhor do que esse, ligue a personalidade de um artista a seu meio histórico-social e dessa ligação tire as bases necessárias à interpretação formal e expressiva de sua obra. Pois se tal ensaio existe, confesso que ainda desconheço o melhor trabalho de crítica de arte que se escreveu no Brasil.” (MACHADO, Lourival Gomes. “Mário de Andrade, crítico”. Habitat, n.21, 36-9, mar/abr. 1955).

497

Idem.

Entre os interpretes que frisam os problemas “anatômicos” de obras do Aleijadinho está Germain Bazin, para quem “as falhas anatômicas salvam-se pela força de expressão dos rostos”. (BAZIN apud GRAMMONT, 2002, p.272). Outra análise de Bazin é ainda curiosa: os soldados representados nos Passos de Congonhas do Campo têm aspecto “ridículo” e “ao nível da arte popular” porque “não são nem dignos de arte, estando assim mergulhados numa espécie de inferno disforme” devido à função que desempenharam na crucificação de Cristo. Bazin afirma ainda que Aleijadinho não deve ter se dado ao trabalho de esculpi-los ele mesmo, conferindo esse trabalho aos ajudantes. (Idem).

modernista conhecia-o bem através de revistas do próprio movimento. Diz respeito mais especificamente a uma noção alargada de expressionismo, de modo geral, a obras que não tratam da realidade objetivamente, mas fazem uso de soluções plásticas que, pelo seu aspecto não-naturalista, parecem carregadas de teor subjetivo. Ademais, Andrade entende a arte como “concretização de uma verdade interior do artista498”, um pensamento de fundo tanto romântico como expressionista.

Annateresa Fabris explica esse encontro entre romantismo e expressionismo:

Para muitos autores, o Expressionismo que se desenvolve na Alemanha é a escolha da componente romântica naquela dupla de “constantes” espirituais, que opunham o classicismo latino-mediterrâneo ao agonismo germânico-nórdico. Romantismo significa, contemporaneamente, desejo de possuir a realidade, a angustia de ser por ela possuído, englobando em suas manifestações o gótico e o barroco, que, segundo alguns historiadores, ressurgem no expressionismo499.

J.A. Avancini, por sua vez, assinala o uso de idéias associadas ao expressionismo, por parte de Andrade, com a intenção de apontar a qualidade da produção artística brasileira por meio de um outro viés:

a associação que Mário estabelece com o barroco, o nacionalismo com a cultura alemã, indicando-nos uma resumível leitura expressionista do nosso passado, abrindo horizontes mais largos para a valorização do nosso patrimônio artístico e histórico, livre das amarras do legado clássico e da preeminência francesa cosmopolizanteque reinava ainda soberana nesses finais da Primeira República500.

Entretanto, para Gomes Machado, que compartilhava dessa maneira de entender o expressionismo, essa subjetividade está permeada por “padrões coletivos da sociedade a que serve e interpreta, e dos padrões técnicos e culturais que essa mesma sociedade conseguiu transmitir-lhe”501. Na sua visão, o artista traduz para a obra um sentimento individual que, ao mesmo tempo, é informado pelo meio social do qual participa.

      

498

ANDRADE, Mário de. “O artista e o artesão”. Em: Curso de Filosofia e História da Arte. Anteprojeto do

Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. São Paulo: Centro de Estudos Folclóricos – GFAU, 1955,

s.p.. Ver-se-á, ao longo deste estudo, como trata-se de uma idéia de arte bastante próxima daquela de Gomes Machado.

499

FABRIS, Annateresa. “Mário de Andrade e o Aleijadinho: o barroco visto pelo expressionismo”. Barroco. Belo Horizonte: v.12, 1983, p.227-230.

500

AVANCINI apud GRAMMONT, 2002, p.228.

501

Idem.

Para Gilberto Freyre, essa deformação tem um sentido de revolta com a condição social, não sendo uma elaboração positiva como crêem Andrade e Gomes Machado. Aleijadinho seria um “mestre da caricatura nacional”, sendo que produz “menos por devoção a Nosso Senhor Jesus Cristo do que por sua raiva por ser mulato e doente; por sua revolta contra os dominadores brancos da colônia...”. (FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936, p.322).

Andrade e Gomes Machado têm em mente uma oposição entre o tratamento “objetivo” da realidade, como seria a orientação da arte acadêmica determinada por regras de representação, e o tratamento “subjetivo” dessa mesma realidade, no qual cada artista presumivelmente teria uma maior liberdade para exercer sua “expressão” mais íntima. Para ambos, a arte acadêmica, representada pela Academia Imperial de Belas Artes, havia cerceado essa liberdade do verdadeiro artista brasileiro, impondo regras estrangeiras que não condiziam com a realidade local, e rompendo, assim, com o curso do desenvolvimento genuíno da arte nacional502.

Desse modo, após o intervalo artificioso do período acadêmico, para eles, o século XIX de modo geral, o primeiro momento de recuperação da arte brasileira seria o modernismo de 1922, quando esse movimento se dispõe a definir como deve ser a visualidade brasileira tomando consciência da necessidade dessa definição. Ao contrário do Aleijadinho, que, acreditavam Andrade e Gomes Machado, já fazia arte brasileira, embora sem se dar conta disso.

A compreensão da originalidade do Aleijadinho é também um dado fundamental no entender de Gomes Machado, no sentido não de uma elaboração sem precedentes, mas de trabalhos que “recriam” modelos estrangeiros, concebendo assim, nessa reelaboração, algo genuíno, uma lógica que lembra o procedimento antropofágico, no sentido de deglutição das referências estrangeiras para originar algo próprio. Devido a esse entendimento, Gomes Machado integra os intérpretes que buscaram comparar obras a possíveis modelos imitados. No artigo, “Os púlpitos de São Francisco de Assis de Ouro Preto: influência de Lorenzo Ghiberti na obra de Antônio Francisco Lisboa, o crítico discute semelhanças entre imagens de Lorenzo Ghiberti realizados para a porta do Batistério de Florença comparando-os aos púlpitos da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, atribuídos ao Aleijadinho. Há proximidade de temas com os quais trabalham – Tempestade, de Ghiberti, e Jonas Atirado ao Mar, de Aleijadinho – que se reflete ainda na disposição dos personagens em barcos, contando com posições semelhantes. Entretanto, como observa Guiomar de Grammont, a comparação que Gomes Machado propõe entre a Visita dos Reis Magos, de Ghiberti, e o Cristo da Barca, da mesma igreja mineira, parece um pouco fora de proporção: um dos reis       

502

Entretanto, o interesse pelo e a exaltação do barroco, não era exclusiva dos modernistas, mas algo discutido entre intelectuais brasileiros desde o início do século XX. Ver, por exemplo, textos da Revista Renascença, publicada no Rio de Janeiro, como: “A Arte em S. Bento” (n.20, 1905); “A Egreja de São Pedro” (sic) (n.26, 1906), entre outros. Os artigos analisam arte e arquitetura barroca do Rio de Janeiro em profundidade, trazendo diálogos com a tradição barroca italiana e portuguesa. Ver: ALVES, Andrea Cortes. “Revista Renascença: a arte da academia e a fotografia na constituição do imaginário nacional”. Trabalho de Iniciação Científica. FAPESP fev. 2009 – jan. 2010. Orientador: Tadeu Chiarelli. ECA-USP.

magos de Ghiberti se ajoelha em adoração ao Menino Jesus; para o crítico, Aleijadinho teria transformado esse personagem pela figura do cachorro “humilde”, “franciscana” e “humana”. É preciso, no entanto, frisar a preocupação com uma leitura formal desenvolvida pelo crítico, que compara principalmente as obras em termos de composição.

Segundo o próprio Gomes Machado, sua comparação visa a defesa da originalidade do Aleijadinho:

Tomar as quatro peças em causa para simplesmente afirmar que entre elas nada há de copia não pode levar à conclusão de maior vulto. Enquanto se admitem outras tantas e muito perigosas e menos corretas – 1o) implicitamente, tolera-se a opinião segundo a qual a copia é obra artística desprezível; 2o) também se permite pensar que, no caso em questão, há suspeita de cópia; 3o) que os méritos do Aleijadinho dependem de ter sido ou não copista. Sem falar em como se desperdiça a oportunidade de ser produzida umas das mais altas demonstrações de genialidade plástica de Antônio Francisco Lisboa, qual seja a de ter-se voluntariamente recusado a copiar quando isso lhe era possível, legítimo e, até, aconselhado503.

Portanto, diante desse comentário de Gomes Machado, entende-se que o genuíno em Aleijadinho é recusar-se a copiar, quando o padrão em sua época seria justamente a emulação do modelo. Aleijadinho, para Gomes Machado, não é considerado um entre outros artesãos coloniais de Minas, mas o artista superior, colocado muito acima da média de artífices do período, guiado por seu “ímpeto criador”. Apesar de Gomes Machado contestar “o exagero personalista da estética romântica”, mais uma vez, o crítico reforça o mito Aleijadinho, substituindo a idéia de repetição do modelo pela “inspiração”.

Roger Bastide, na contramão do discípulo e do modernista, desde os anos 1940 desenvolve uma reflexão sobre a figura de Aleijadinho como herói mítico, notando que a contemporaneidade, voltada a um crescente individualismo, apossa-se do modelo e o aproxima do conceito romântico de gênio. A construção de Aleijadinho como figura heróica de um período formador da identidade brasileira se sintoniza com a construção do “homem barroco” como ente mítico:

Segundo os intérpretes que produzem essa síntese imaginária de várias determinações, nessa figura se processaria um cruzamento de forças (econômicas, políticas, religiosas, artísticas, etc.) que dariam origem a uma “identidade nacional” em cada pais ibero-americano onde o fenômeno barroco teria existido. (...) esse personagem paradigmático terá como núcleo comum o destacar-se como o herói que promove a apropriação e a subversão da cultura européia, transformando-a em uma cultura híbrida, própria da Ibero-América504.

      

503

MACHADO, 1973, p.256.

504

Da mesma maneira, o “artista barroco” tem contornos semelhantes para estudiosos de vários países do continente americano, como o poeta cubano José Lezama Lima e Affonso Ávila, que se ocupou do barroco mineiro a partir dos anos 1960. Trata-se de uma figura que se apropria da cultura do colonizador para criar uma arte genuína e excepcional, no sentido de desvio da regra geral505.

Ávila demonstra, por vezes, proximidade com o pensamento de Gomes Machado elaborando uma explicação que parece ecoar a forma mentis barroca desenvolvida pelo crítico. O barroco é

não enquanto tão-só um estilo artístico, mas sim como fenômeno de maior complexidade – um estado de espírito, uma visão do mundo, um estilo de vida, de que as manifestações da arte serão a expressão sublimadora. A colonização do Brasil e – mais do que ela – a nossa estruturaçãocomo povo e o nosso amanhecer de nação vinculam-se, por fatores de vária ordem, à singularidade histórica, filosófica, religiosa do Seiscentos e seus desdobramentos. Buscando compreênde-la – e com ela o barroco, estaremos obviamente caminhando para o desenho de uma imagem mais nítida de nós mesmos, uma idéía mais correta de nossa especificidade nacional506.

Como se pode apreender desse viés de reflexão, a “visão de mundo” barroca reflete a própria identidade brasileira.

      

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Segundo a estudiosa Guiomar de Grammont, o uso do conceito “barroco” como marca diferenciadora da “identidade ibero-americana” inicia-se em Cuba, quando o país vivia sob a dependência econômica e política dos EUA, desde 1902, com intelectuais como Lezama Lima e Alejo Carpentier. “Na afirmação da identidade nacional que acompanha o processo revolucionário, essa vanguarda se volta para a Europa em busca de um espaço de experimentação artística. Uma vez que a imagem do domínio colonial espanhol é deslocada para o novo ‘inimigo’, os Estados Unidos – nessa forma de ‘neocolonização’, à qual todos os países americanos se encontram mais ou menos sujeitos --, o ‘barroco’ como ‘neobarroco’, já não representa a imposição dos códigos