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Parte I modernismo

Capítulo 2: Renovação pela tradição: ancoragem para uma história da arte expressiva

3. Worringer, Mário de Andrade e Gomes Machado: um certo realismo

3.1 Worringer: uma história expressionista da arte

Essa síntese de duas grandes correntes do pensamento estético europeu, dominantes na crítica moderna, visou esclarecer a origem da defesa de uma arte não-racionalista, mais intuitiva, que mescla sobretudo interesse estético e postura ética do artista, amalgamando artista e obra e, ao mesmo tempo, como é possível associar essa idéia a uma visualidade realista expressiva, ou seja, de certa gestualidade embora apegada ao real.

      

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MACHADO, Lourival Gomes. “Amplitude da região”. São Paulo, Suplemento Literário, O Estado de S.

Paulo, 30 abr. 1960. 235

Perceba-se como a idéia de forma mentis de Gomes Machado se assemelha à “vontade de arte” ou de “forma” como entendida por Worringer: “Já dissemos que a vontade de forma a priori, em cada período da humanidade, é sempre a expressão adequada da relação com o mundo circundante. Assim, a análise da ornamentação gótica nos fez conhecer em sua estrutura mais grosseira, porém mais aparente, a essência da vontade gótica da forma. Por esta podemos, pois, chegar a compreender a relação que o homem nórdico mantinha com o mundo exterior. (WORRINGER, 1942, p.72).

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Em capítulo posterior, discutir-se-á a postura diante da arte abstrata como diferença fundamental entre o pensamento de Andrade e aquele de Gomes Machado. Devido ao seu grande interesse pelo informalismo e pela abstração de modo geral, o último amplia e torna mais complexa a idéia de arte brasileira.

Gomes Machado conhecia a filosofia kantiana e seus vários desdobramentos, citando muitos autores ao longo de sua obra crítica237. Entretanto, não se propõe aqui trabalhar diretamente com todas as fontes citadas pelo crítico – até mesmo porque elas são muitas, variadas, de áreas diversas, e cada uma valeria em si uma tese. Porém, procurou-se indicar como essa visão da arte como algo intuitivo, partilhada por diversos pensadores do século XIX ao XX – entre eles Gomes Machado –, toma contornos os mais diversos.

De maneira mais pontual, podemos indicar a grande importância de Worringer como um teórico referência para Gomes Machado, e que chega a ele provavelmente por intermédio de Mário de Andrade, grande leitor dos textos do alemão e apreciador das revistas expressionistas.

Chiarelli chama atenção para a importância da ancoragem da crítica de Andrade nas idéias expressionistas, afirmando que:

por meio de sua reflexão sobre a produção plástica de caráter expressionista e/ou realista expressionista, trazida por Anita Malfatti e Lasar Segall da Europa, o crítico [Mário de Andrade] formulou seu projeto de arte moderna brasileira, adaptando a poética expressionista trazida pelos dois artistas à necessidade de manter em evidência a importância de uma arte preocupada com a captação da realidade física e humana do Brasil – necessidade esta presente desde o século passado no meio artístico do país. Tal adaptação resultaria num projeto de arte brasileira que propunha a documentação da realidade do país em chave engajada238.

De acordo com Rosângela Asche de Paula, os textos que nortearam o expressionismo alemão foram “cerne da criação” de muitos textos teóricos de Andrade239, integrando sua pesquisa e visando a reflexão sobre o que constituiria uma arte brasileira. A autora aponta o contato de Andrade com a exposição de Anita Malfatti, em 1917, como momento chave para o interesse do crítico pelo expressionismo. Entretanto, no que concerne às artes visuais, parece caminho lógico como alternativa ao cânone acadêmico, mantendo-se na figuração embora dando a ela o traço expressivo, individualizado. Apesar das muitas fontes que a autora nomeia e das análises que delineia, principalmente em termos de poesia, interessa a relação de Andrade com idéias de Worringer.

Asche de Paula afirma que o texto “Natureza e Expressionismo”, de Worringer, teria sido o ponto de partida das reflexões estéticas de Andrade no que concerne à arte moderna.       

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Um exemplo de suas leituras a esse respeito é Teorias do Barroco (São Paulo, Serviço de Documentação- Ministério da Educação e Cultura, 1953). O ensaio é um estudo sistemático dos principais estudiosos sobre o assunto e será discutido adiante.

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CHIARELLI, 2007, p.82.

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PAULA, Rosangela Asche de. O expressionismo na biblioteca de Mário de Andrade: da leitura à criação. Tese (doutorado) em Literatura Brasileira. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. 2007, s. p..

Nele, Worringer defende a obra de arte “com orientação espiritual”, aquela que está ligada à realidade240. No entanto, é ainda mais significativo o trecho em que Worringer critica a postura neoclássica que tem na natureza um “dogma exclusivo do alicerce de nossa formação artística”. Ao contrário do artista acadêmico, o expressionista não está subjugado à natureza, mas a vê como “realidade enigmática”. Ou seja: tanto o artista acadêmico como o expressionista voltam-se para a natureza (que integra a realidade) como tema, mas suas posturas são distintas – o acadêmico procura emular a natureza, enquanto que o expressionista cria algo a partir dela com o auxílio de sua subjetividade.

Em trecho do “Prefácio Interessantíssimo” citado pela autora, Andrade evidencia sua relação com essas idéias, bem como expõe onde visualmente se mostra a subjetividade do artista – na deformação expressiva da realidade:

Belo na arte: arbitrário, convencional, transitório – questão de moda. Belo da natureza: imutável, objetivo, natural – tem a eternidade que a natureza tiver. Arte não consegue reproduzir a natureza, nem este é seu fim. Todos os grandes artistas, ora consciente (Rafael das Madonas, Rodin do Balzac, Beethoven da Pastoral, Machado de Assis do Brás Cubas), ora inconscientemente (a grande maioria), foram deformadores da natureza. Donde infiro que o belo artístico será tanto mais artístico, tanto mais subjetivo quanto mais se afastar do natural241.

Observe-se, em outra citação escolhida pela pesquisadora, que Andrade reforça a necessidade de deformar o real e indica entender a arte moderna justamente nessa chave:

A natureza existe fatalmente, sem vontade própria. O poeta cria por inteligência, por vontade própria. Querer que ele reproduza a natureza é mecanizá-lo, rebaixá-lo. Desconhecer os direitos da inteligência é uma ignomínia.

A incompreensão com que os modernistas de todas as artes são recebidos provém em parte disso.

O espectador procura na obra de arte a natureza e como a encontra conclui: -Paranóia ou mistificação! O autor é idiota. (...)

A natureza é apenas o ponto de partida, o motivo pra criação dela.

A interpretação aqui é clara: arte moderna sim, de viés expressionista; a arte abstrata, porém, não está no horizonte de possibilidades de Andrade242. A razão para esse apego é notada por Chiarelli: a representação garantia a ligação da arte com a realidade brasileira, isto é,

       240 Idem, p.139. 241 Idem, p.140. 242

Em “Escrava Que Não É Isaura”, na mesma linha de idéias de “Prefácio”, Mário de Andrade reforça sua concepção de arte apegada ao real: “O poeta não fotografa: cria. Ainda mais: não reproduz: exagera, deforma, porém sintetizando”. (ANDRADE apud ZANINI, 1983, p.535).

estabelecia-se assim uma arte brasileira figurativa, e até mesmo alegórica, amparada na realidade do país243.

Chiarelli também sublinha a importância da fase em que se encontra o expressionismo na Alemanha quando Andrade passa a estudá-lo: logo após a Primeira Guerra Mundial, a partir de cerca de 1919, quando essa tendência se volta a uma “maior aderência ao real244” no sentido de uma fatura mais descritiva, que rompe menos com a estrutura tradicional de composição pictórica. O autor explica a trajetória crítica de Andrade em relação ao assunto: no texto sobre Anita Malfatti de 1921, Andrade demonstra os primeiros contatos com o expressionismo, estabelecendo uma oposição entre expressionismo e impressionismo; em 1927, publica um artigo sobre Worringer, no qual sugere ser o expressionismo uma evolução do impressionismo; em 1928, escreve sobre o trabalho de Hugo Adami, compreendendo o expressionismo como “alternativa ao realismo/naturalismo245”.

Trata-se, portanto, desse outro expressionismo, entendido como um realismo expressionista, no qual convivem a preocupação com o real e uma fatura não-tradicional e não-naturalista. Chiarelli cita particularmente a transformação da obra de Otto Dix e Max Beckmann nesse novo rumo; sendo possível incluir aí a obra de Kathe Kollwitz, que viria a ser, entre os anos 1930 e 1940, em São Paulo, uma referência visual de grande peso para artistas interessados por uma figuração expressionista, como Marcelo Grassmann e Octavio Araújo, aliás ambos presentes, como visto, na “19 Pintores”246. O desenho de Kollwitz, como se pode notar, é mais descritivo que a xilogravura, embora em ambos meios a dramaticidade seja central:

Fig. 27 – K. Kollwitz. Viúvas e Órfãos, 1919. Coleção desconhecida; Fig. 28 K. Kollwitz - Mães, 1922-3. MAC- USP.

      

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CHIARELLI, Tadeu. Pintura Não É Só Beleza: a critica de arte de Mário de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007. 244 Idem, p.82. 245 Idem. 246

Em 1933, Mário Pedrosa apresenta uma palestra e publica o artigo “As Tendências Sociais da Arte e Kathe Kollwitz”.

Mário de Andrade estava atento a todas essas acomodações/transformações da cena artística da Alemanha, como provam suas alusões sutis ou pontuais à Nova Objetividade alemã. Este acompanhamento, inclusive, deixava-o seguro para entender que, além da abstração pura, poderia haver outra alternativa para a arte moderna: justamente aquele realismo expressionista capaz de, pela deformação expressiva do objeto, transcender a mera realidade do entorno, dando à obra uma subjetividade insuspeita, sem no entanto se perder no mero subjetivismo de fundo individual247.

Assim, Chiarelli resume a escolha de Andrade pelo realismo expressionista como tratamento pictórico moderno adequado à arte contemporânea brasileira, que deveria servir ao propósito coletivo de contribuir para o conhecimento da cultura brasileira248.

Outro dado essencial na relação entre Andrade e o expressionismo é o interesse dessa vertente por resgatar as bases do que se considerava a arte germânica, isto é, modos de representação que não se ligavam ao fundamento greco-latino, clássico e mediterrâneo como forma de fundamentar um movimento contemporâneo.

Como nota Colin Rhodes, no almanaque do grupo O Cavaleiro Azul, de 1912, é evidente a posição desses artistas diante de formas de representação, mas também de formas de ver o mundo, não-racionalistas e não-renascentistas, enfim, não-clássicas. Ao lado de ilustrações de obras de artistas de vanguarda, como Picasso e Robert Delaunay, expressionistas, como Kandinsky e Franz Marc, estavam exemplos de arte “selvagem” e oriental.

São, entretanto, mais do que qualquer outro, os primitivos da própria Europa, representados pela arte medieval, estampas populares e pinturas sobre vidro, além de pinturas de artistas naïf e desenhos de crianças, que refletiam as reivindicações artísticas feitas pelo almanaque249.

A chave dessa “maneira alternativa”, digamos assim, de lidar com a realidade, pode ser reunida sob o termo primitivismo, que reúne todo tipo de manifestação artística não associada à tradição no sentido de educação formal, como a arte produzida por crianças, deficientes mentais, povos não-europeus, ocidentais de modo geral que não tiveram acesso à educação       

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CHIARELLI, 2007, p.83.

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Para visualizar o expressionismo sob a marca da deformação expressiva, é interessante o exemplo da obra

Mãe e Filho, c.1921, de Wilhelm Haarberg, na qual o tema tradicional da iconografia cristã, a maestá, é tratado

de forma absolutamente contida, como se a figura estivesse colocada dentro de um cubo invisível. Nenhum dos membros da figura foge a essa estrutura rígida, pesada e de volumes geometrizados – seus braços repousam sobre o colo, envolvendo a criança; as pernas mantêm ângulos retos com a base. Entretanto, apesar dessa contenção, há uma sensibilidade emotiva na obra – daí Haarberg, que participou da Semana de Arte Moderna, ser compreendido como “escultor expressionista” por parte de Andrade (ANDRADE apud ZANINI, 1983, p.539).

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artística, são os chamados naïf ou ingênuos ou ainda artistas populares. No entanto, a produção artística pré-renascentista, isto é, tanto medieval – românica e gótica – como da virada do período medieval para o Renascimento, como Cimabue e Giotto, também integram essa categoria250.

A arte moderna recorreu a essas manifestações tanto como uma maneira de se opor ao modo acadêmico de se fazer e ensinar arte, como visando outras maneiras de se entender o mundo, uma vez que, diante do cenário bélico e sangrento do século XX, o racionalismo instaurado pelo iluminismo, que tinha suas fontes no humanismo renascentista, havia demonstrado sua inaptidão em proporcionar uma vida coletiva, civilizada e progressista.

No que concerne o expressionismo especificamente, voltar-se à arte medieval alemã, à xilogravura e não à pintura a óleo, uma tradição mediterrânea, era também demonstrar que a arte tradicional germânica “autêntica” ou “original” possuía especificidades próprias e era tão válida quanto o cânone clássico251. Chiarelli nota o interesse de artistas como Kirchner e Beckmann pela “arte tardo medieval e do primeiro renascimento alemão para transformar suas poéticas252”.

Os textos de Worringer foram lidos tanto na Alemanha, como internacionalmente, tanto por artistas como por críticos, poetas e escritores253. Worringer escreveu largamente sobre assuntos da história da arte pregressa, como arte medieval, especialmente a gótica, mas seus estudos são dirigidos à arte contemporânea. Como coloca o estudioso Neil Donahue: “A carreira de Worringer sugere um tipo de historiador da arte ‘ativista’, cujo trabalho sobre as épocas passadas provê justificativa histórica para a arte de seus contemporâneos254”. Isto é: ao estudar a arte gótica, Worringer legitima a produção expressionista alemã, constituindo para ela um lastro seguro.

Abstração e Empatia, de 1908, é considerado o primeiro estudo sobre arte não- representacional, constituindo um instrumento de análise para aspectos da arte egípcia,       

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O termo primitivismo hoje é revisto devido ao seu fundamento colonialista e sua aplicação a qualquer manifestação cultural considerada “não-ocidental”.

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Como vimos antes, o trabalho de Heinrich Wölfflin colabora para essa reavaliação dos períodos artísticos que se distanciam, menos ou mais, do cânone clássico. Quando Wölfflin estabelece os pares Renascimento e Barroco, forma fechada e forma aberta, linear e pictórico, etc, ao mesmo tempo, ele também está relativizando a supremacia do clássico sobre os demais “estilos”. Para o autor, a arte se manifesta sob várias formas, “estilos dos indivíduos, das épocas e dos povos”, determinadas por condições diversas, como “o temperamento [do artista], o espírito da época ou o caráter racial”. Resumindo: um alemão do século XIX não pode produzir uma arte veneziana do século XV; ele está sujeito às mudanças da época, à sua herança cultural (que Wölfflin entende ainda como “racial”) e ao contexto local em que se encontra. (WÖLFFLIN, Henrich. Conceitos Fundamentais

da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.14). 252 CHIARELLI, 2007, p.84. 253 DONAHUE, 1995, p.1. 254 Idem, p.2.

africana e gótica, e servindo até mesmo para se interpretar a arte abstrata moderna que recentemente se produzia. Como explica Donahue, a proposta do trabalho é uma “psicologia do estilo”, na qual especificidades formais e estilísticas da obra refletem “a disposição psicológica do artista, e, desse modo, do período histórico255”.

Grosso modo, essa abordagem parte do pressuposto de que a forma decorre da psique do artista, esta, por sua vez, refletindo o contexto histórico e cultural no qual o artista se insere. Esse esquema apresenta-se como algo muito próximo do conceito de forma mentis utilizado por Gomes Machado repetidas vezes. Pelo que se pode apreender, forma mentis define uma estrutura mental feita de padrões sociais que definiriam aspectos formais das obras, como se a forma fosse uma tradução da estrutura mental de um dado período e lugar; uma elaboração individual a partir do coletivo. Ou seja, seguindo esse raciocínio, a obra de arte é uma criação individual engendrada a partir de uma cultura coletiva específica e, ao mesmo tempo, universal.

Na contemporaneidade, Worringer se tornou um nome associado comumente ao expressionismo alemão, apesar da grande popularidade desse autor antes da Primeira Guerra Mundial256. O interesse dos expressionistas e de críticos da época pelos textos de Worringer se baseia no fato de “reconhecerem [nas idéias dele] a possibilidade de interpretar o presente num quadro histórico novo257”, pois Worringer procurava desenvolver “critérios para avaliar expressões artísticas não-clássicas258”. Worringer era visto pelos expressionistas como um historiador da arte não ortodoxo, alguém que olhava generosamente para a arte contemporânea. Por contrapartida, os textos posteriores de Worringer passam a discutir questões concernentes ao expressionismo.

É justamente a busca por novos critérios empreendida por Worringer, uma postura de questionamento do cânone clássico, o dado que vai servir a Gomes Machado como estratégia para abordar um problema complexo como o barroco mineiro, isto é, mais do que emprestar ipsis litteris as idéias de Worringer, Gomes Machado empresta sua estratégia de estabelecimento de outros critérios para se compreender a produção artística do passado e, ao pensar de modo distinto o passado, poder pensar o presente de uma nova maneira. Nos capítulos seguintes, será possível observar essa estratégia em ação na abordagem do barroco mineiro.

      

255

Idem, p.3.

256

BUSHART, Magdalena. “Changing times, changing styles: Wilhelm Worringer and the art of his epoch”, em: DONAHUE, 1995, p.70. (Tradução da autora).

257

Idem.

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Worringer encontra na atitude expressionista semelhança com a atitude gótica, percebe nelas uma mudança de visão de mundo: tanto o expressionismo como o gótico são períodos de preocupação com o coletivo. Sendo assim, arte, para Worringer, estava associada ao nacionalismo e à “raça”. Essa postura leva-o a condenar o impressionismo, para ele uma continuidade da atitude renascentista: hedonista e individualista259. Finalmente, o que o teórico buscava era um estilo coletivo, cujas características unissem tradição e disposição do povo. Porém, o autor não chega a responder a questão crucial: qual a forma que esse “espírito” alemão ou germânico, ou ainda, nórdico, deveria tomar? Visualmente, como esse espírito se manifestaria?

Worringer critica a obra de Marées que busca um “classicismo alemão”, pois “classicismo e germanismo [são] na realidade uma contradição de termos260”. Porém, as aparências podem enganar: Worringer admira a obra de Marées, apenas critica sua inabilidade para atingir uma forma de classicismo nórdico: Marées não havia conciliado “disposição racial e sentimento clássico do mundo”, uma vez que “o desenvolvimento do ‘Estilo’ abstrato para o ‘Naturalismo’ clássico é irreversível e, portanto, cada tentativa de renovação da expressividade nórdica (ou seja, alemã) em arte necessariamente deve ser um acordo entre essas partes261”. Apesar da admiração de Worringer por Marées e Adolf Hildebrand, a produção do suíço Ferdinand Hodler é a única, para Worringer, que chega a uma síntese entre esses dois pólos antagônicos de criação.

Fig. 29 – Ferdinand Hodler. The Chosen One, 1893-94. Kunstmuseum Bern, Suiça.

Hodler é considerado um precursor do expressionismo, embora sua obra demonstre apego pela arte do Renascimento, aparente nos temas e na apreensão da figura humana (fig. 29). Desse modo, é possível afirmar que o olhar de Worringer amparava-se numa visualidade        259 Idem, p.74. 260 Idem, p.75. 261 Idem, p.77.

conservadora, como foi visto, que não buscava romper ou questionar o tratamento pictórico tradicional da figura humana. Para ilustrar essa posição de Worringer, é interessante observar um trabalho como Quadro com um Arqueiro (Picture with an Archer), 1909, de Kandinsky (fig. 30). Trata-se de uma obra que se aproxima da abstração, por meio de um tratamento planificador da composição e de pinceladas semelhantes que produzem tanto figuras como fundo. Esse tipo de procedimento que “arrisca” a clareza das figuras, situando-as num meio termo entre figuração e abstração não parece apetecer ao gosto do teórico alemão.

Fig.30 – Wassily Kandinsky. Picture with an Archer, 1909. MOMA.

Além da predileção por Hodler, Worringer também acreditava que, entre os artistas mais recentes, havia uma procura pela síntese das formas, o olhar para o primitivo – uma demonstração da insatisfação com a modernidade. Para o autor, as obras expressionistas eram ainda “experimentos”; o expressionismo não passava de “uma solução transitória”. Depois dessas tentativas expressionistas, a arte deveria seguir seu curso rumo a “uma tradição mais limitada e, com isso, de volta à ela mesma de novo262”. Ou seja, os rompimentos formais com a pintura tradicional propostos pelos expressionistas – uso de cor não-análoga, redução sintética em vez de descritiva, planaridade – não tinham tanta importância, eram apenas ensaios possíveis num momento de questionamento do cânone.

Embora essa posição de Worringer não estivesse em sintonia com pressupostos fundamentais da vertente expressionista, artistas ligados a O Cavaleiro Azul souberam fazer uso de idéias do autor para defender suas posições:

A idéia de uma “vontade artística” supraindividual (Kunstwollen) e não da capacidade (Können) de artistas individuais que marcavam as expressões culturais de uma época, assegurou à versão expressionista do modernismo uma justificação existencial que havia sido negada por críticos de arte contemporâneos. Tornou-se

      

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uma “necessidade do desenvolvimento histórico” que surgia dos requisitos psíquicos de uma época e dos quais o indivíduo podia dificilmente remover-se. E a equação de arte abstrata, visão de mundo espiritual e desejo nórdico para a abstração não fazia dessa tendência nas artes apenas atraente para um público inclinado ao