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Empatia e linhagem expressionista: fundamentos de Kant

Parte I modernismo

Capítulo 2: Renovação pela tradição: ancoragem para uma história da arte expressiva

2. Empatia e linhagem expressionista: fundamentos de Kant

Antes de seguir adiante, é preciso resumir duas grandes linhas de pensamento estético que descendem de idéias kantianas e que vão guiar grande parte do pensamento sobre arte moderna internacionalmente, aparecendo tanto na crítica da figuração como da abstração: formalismo versus sensualismo, explicando assim as bases da linha de pensamento de Gomes Machado e como se mesclam em sua visão.

      

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Idem.

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No artigo “Carta aberta”, dirigido ao então presidente Juscelino Kubitschek, Gomes Machado alerta JK sobre a excessiva pompa com a qual o pintor francês Georges Mathieu foi recebido em Brasília. Na visão do crítico, Mathieu produz uma “pintura de apenas medianas qualidades” e costuma “exibir alguns truques cênicos e publicitários que em sua terra utiliza para surpreender certa ordem imbecil de turistas”. No decorrer do artigo, sublinha a qualidade da produção brasileira do período e menciona que os artistas acima citados foram consagrados em certames no exterior. (MACHADO, Lourival Gomes. “Carta aberta”, O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 21 nov. 1961).

Grosso modo, para as tendências formalistas, o belo não está na representação de uma idéia, mas nas relações formais independentes da intervenção do conteúdo. Já, segundo os pensadores ligados ao sensualismo, há uma preocupação central com a subjetividade do indivíduo em relação à produção, tanto aquele que a produz como quem a recebe. A partir dessas linhas, se originam a teoria da visibilidade pura e a teoria da empatia desenvolvidas a partir do século XIX na Alemanha, cujos expoentes são Henrich Wölfflin e Wilhelm Worringer.

Segundo o historiador da arte Ernest K. Mundt, o que distingue o crítico moderno da crítica anterior é justamente a discussão da forma em detrimento do conteúdo, uma separação que se estabelece com o filósofo Immanuel Kant ao separar forma de conteúdo literário ou significado. Como conseqüência, surge uma validade objetiva dos julgamentos estéticos, afinal parte-se de um conhecimento já adquirido213.

O filósofo Konrad Fiedler, Hans Von Marées, pintor, e Adolf Von Hildebrand, escultor e teórico, fortalecem a posição formalista por meio da teoria da pura visibilidade e da realização dessas idéias em pinturas e esculturas214.

Segundo Fiedler, a linguagem é a forma do pensamento; como a linguagem lida com pensamentos, sendo que as sensações não são parte desse domínio. Portanto, é preciso renunciar ao sentimento para se ter a experiência artística215. A obra de Marées e Hildebrand se apóiam nas idéias de Fiedler, entretanto o teórico também se ancora nas produções plásticas de ambos para levar adiante seu raciocínio. Compreendendo que Marées não se submete ao conteúdo, entende que este transcende a servidão da arte aos sentimentos, pensamentos ou ações, garantindo assim a autonomia artística ao conferir à ela auto- suficiência diante de outras atividades humanas.

O historiador da arte Robert Vischer desenvolveu a chamada linha formal “sensual” em 1872 – pólo oposto à teoria da pura visibilidade. Para Vischer, não há forma sem conteúdo, portanto, caso elas não apresentem conteúdo, nós, espectadores, damos a elas

      

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MUNDT, Ernest K. “Three aspects of german aesthetic theory”. The Journal of Aesthetics and Art Criticism, Vol. 17, No. 3 (Mar., 1959), p.287-310. Disponível no site: http://www.jstor.org/stable/427810. Acesso em 13 dez. 2011. (Tradução da autora).

214

Idem, p.296.

Lembre-se ainda que os textos de Adolf Von Hildebrand influenciaram significativamente o pensamento de Heinrich Wölfflin. Durante os encontros do Grupo de Estudos do Centro de Pesquisa em Arte&Fotografia do CAP/ECA-USP, orientado pelo Professor Tadeu Chiarelli, foram lidos textos de Konrad Fiedler e Adolf Hildebrand. Entre outros, leu-se: “Del giudizio sulle opere d’arte figurativa”, em Roberto Salvini, La critica

d’arte della pura visibilità e del formalismo: una esemplare guida alla comprensione del linguaggio della opera

d’arte, (Aldo Garzanti Editore, 1977), 63-72.

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conteúdos da alma “graças a um ato involuntário de transferência de nossos sentimentos216”. Como explica Mundt, “A empatia se dirige ao que está atrás da aparência”, tratando-se de um desejo de união entre sujeito e universo. Mas fundamentalmente, para Vischer: “O artista é o conteúdo da obra de arte217”. Essa idéia guiaria grande parte do pensamento sobre arte abstrata, aliada à idéia de que formas puras favorecem a transposição da imaginação porque geram “um processo harmônico de sentimentos218”.

Mundt cita o escritor David H. Stewart que, em 1956, define empatia como

uma identificação deliberada com o outro, promovendo o conhecimento do outro bem como de si mesmo ao lutar por entender o que hoje é estranho, mas que podemos imaginar (...) ser algo semelhante à própria experiência. Sente-se que isso é ético porque se apóia no sentimento, pressupõe boa vontade e procura a compreensão mútua. É visto como um conceito psicológico porque o processo que representa produz nossa experiência pessoal mais autêntica e genuína. É estética em suas atividades criativas e seletivas. Estes três aspectos da empatia – psicológico, ético e estético – são inseparáveis na prática. Empatia como aqui definida (...) será apresentada como a base ao mesmo tempo da ética e da teoria da personalidade bem como um ato de primeira importância em toda arte219.

O teórico da arte Theodor Lipps alarga as noções de Vischer, em 1903, sendo que todo o sistema que desenvolve é dedicado à empatia: “Estética é a ciência do belo, implícito nela também o do feio; chamo um objeto belo porque pode ou de fato desperta em mim um sentimento especifico, isto é, aquilo que chamamos de senso do belo220”. Como observa Mundt: “Sua teoria trata essencialmente da noção de que prazer e valor estético derivam da facilidade com a qual a alma – Lipps compara isso às cordas de um instrumento – vibram em resposta aos estímulos estéticos221”. Note-se como é clara a sintonia entre a metáfora de Lipps e aquela muito celebrizada pelas palavras de Wassily Kandinsky: “A cor é um meio de exercer influência direta sobre a alma (...). A cor é o teclado, os olhos são os martelos, a alma é o piano com muitas cordas. O artista é a mão que toca esta ou aquela tecla propositalmente para causar vibrações na Alma”222. Para Lipps, empatia é ação, demonstrando a união entre ética e estética que permeia o conceito e a importância dada ao papel do espectador – que experimenta a obra.

Se, como visto, os expoentes modernos desses pólos, Wölfflin e Worringer, se opõem, por outro lado, ambos adotam o conceito de kunstwollen (algo como “vontade de arte” ou        216 Idem, p.291. 217 Idem. 218 Idem, p.292. 219 MUNDT, 1959, p.293 220 Idem, p.294. 221 Idem. 222

“propósito artístico”) desenvolvido por Alois Riegl, teórico ativo também no início do século XX. Ao desenvolver essa idéia, Riegl garante a especificidade da atividade artística. De acordo com Mundt, “Alois Rigl adiciona esse conceito à crítica moderna, dissolvendo a rigidez das teorias da pura visibilidade e da empatia e levando-as modificadas para a contemporaneidade”:

o conceito de uma vontade não-racional e dirigida pelo sentimento ativou a crítica moderna. Ao indicar que os artistas de qualquer período realizavam o tipo de obra que queriam realizar, e que não há ‘declínio’ em arte a não ser do ponto de vista de critérios radicais, arbitrariamente absolutos, e que qualquer coisa que se queira de verdade é possível e qualquer coisa viva é válida, o kunstwollen de Riegl torna-se o terreno comum entre formalistas e sensualistas da crítica moderna223.

Wölfflin não se refere diretamente a Fiedler, mas reconhece como precursores Hildebrand e Riegl – este como alguém que buscou refinar os instrumentos conceituais, contribuindo com a noção de kunstwollen. Worringer é o maior representante da “empatia”, integrando a linhagem de Vischer e Lipps, quem cita freqüentemente. Worringer também se refere a Riegl, afirmando que “em muitos pontos [Abstração e Empatia] é baseado em concepções de Riegl... um conhecimento de seus livros, embora não absolutamente necessário, é bastante desejável para compreender meu trabalho224.”

Mundt observa ainda a proximidades estratégicas entre o pensamento polarizado de Wölfflin (Renascimento e Barroco; linear e pictórico; forma fechada e forma aberta, etc.) e aquele de Worringer (abstração e empatia). Entretanto, enquanto que a atitude de Wölfflin é de distanciamento entre espectador e obra, a de Worringer é de proximidade e mesmo de união entre sujeito e objeto.