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Forma mentis: do barroco à abstração expressiva

Parte II barroco

Capítulo 4: Barroco mineiro: “uma criação nitidamente brasileira”

3. Forma mentis: do barroco à abstração expressiva

A idéia de que uma visão de mundo ou uma mentalidade rege uma determinada cultura e, portanto, a produção artística, é formalizada conceitualmente por Gomes Machado pela noção de forma mentis. Uma primeira elaboração do conceito de forma mentis já aparece esboçado por ele em Teorias, desenvolvendo-o mais detidamente ao longo dos anos 1950. Compreendê-lo é fundamental para alcançar a conexão entre modernismo, realismo expressivo, barroco e abstração informal dentro da concepção de arte brasileira que se explicita em sua crítica. Devido a esse conceito, Gomes Machado pode transitar entre artistas e períodos recolhendo amostras do que entende por uma tradução individual da mentalidade de uma época, registrada por meio do gesto do artista, um gesto sincero, sem interferência de normativas.

Note-se como o autor concebe a forma realizada a partir de uma mentalidade de época:

Por “forma mentis”, entendo uma maneira de comportamento mental considerada em si mesma, nada difícil de compreender-se. (...) Pois bem, sem poder dar uma expressão em números (ou em premissas maiores e menores relacionadas com uma conclusão) da “forma mentis” do barroco, proponho que aceitemos, provisoriamente, a existência dessa “forma mentis”, uma forma mental, uma estrutura intelectual como outra qualquer. Uma forma válida em si mesma e, como aquelas formas matemáticas e lógicas a que aludia, suscetível de continuar válida e reconhecível quando incorpora um conteúdo. Esse, em sua feição concreta e tangível, é aquilo que chamados de estilo barroco (...)507.

E ainda, numa outra versão, salientando a dupla natureza dessa mentalidade – particular e universal: “a vivência ambientada e já transfundida nas constantes que, ativas por sob padrões e valores, dão vida a uma estrutura mental particular, a uma verdadeira forma mentis, sem dúvida específica, mas nem por isso aborrecendo o universal”508.

Serve o conceito para discutir também a raiz comum da arte do continente americano, afinal a mentalidade européia chega ao Novo Mundo com os conquistadores:

Sejam quais forem os caminhos percorridos pela descoberta, pela conquista, pelo povoamento – e quantas veredas caprichosas não se abriram nessa História da América – o que permaneceu, como traço comum, em todos os herdeiros dos conquistadores e colonizadores, foi essa “forma mentis” a um só tempo européia e

      

507

MACHADO, Lourival Gomes. “Características do Barroco no Brasil”. Em: Revista do Instituto Histórico e

Geográfico: Guarujá-Bertioga, n.11, ano 20, 1978, p.49. Parte do curso “Arte Antiga no Brasil”, ministrado em

1961. A idéia de “homem” e “mentalidade” barrocos também foi tema de debate entre Pierre Francastel e Victor-Lucien Tapié, nos anos 1950. (GRAMMONT, 2002, p.39).

508

transplantada. Não somos exatamente europeus, mas a nostalgia européia continuamente nos conclamou a participar do ciclo ocidental de civilização, o que, aliás, conseguimos desde que abdicamos às ligações físicas com a matriz européia, tal como exigia nosso próprio impulso para a maioridade, por uma completa e voluntária integração mental e sentimental. Não nos envergonhemos, pois, de ter sempre os olhos postos no além-mar, pois exatamente ali encontramos a medida de nossa importância, numa espécie de protesto de direito à cidadania cosmopolita, de afirmação em nível internacional, que é modo honesto de comprovarmos, cada um e todos na relativa medida de suas forças, como já existimos nos mesmos termos e à mesma altura dos lá de fora509.

Percebe-se como “a tomada de consciência” da identidade própria, sobre a qual discutir-se-á mais adiante, é a garantia de um papel independente na história ocidental. É a identidade nacional que fundamenta a autonomia da cultura dos países americanos, considerados, em suas especificidades e apesar do passado colonial, tão relevantes politicamente quanto os europeus e não subordinados a esses culturalmente.

Em 1961, ao discutir mais uma vez o barroco no Brasil, Gomes Machado elabora melhor o conceito, constituindo o par forma mentis e forma creata para designar concepção mental e resultado realizado, que emula o gesto divino da criação:

Pois bem, a mente coletiva – sobretudo a mente coletiva – tem a capacidade de assumir formas e de projetar estas formas sobre a natureza. E quando a natureza passa a ser vista da maneira pela qual a encontramos interpretada no barroco, a “forma mentis” do barroco já está em ação, e esta concretização no estilo artístico permite-nos falar de uma estrutura barroca: estrutura que tanto é forma mental quanto é arte realizável, que tanto é marca do homem sobre a realidade, quando concretização de seu poder criador. (...) Se um dia, digo eu, em nosso nível humano, os homens deixarem de ver a natureza de determinada maneira, a natureza deixa de existir dessa maneira, como passa a existir de outra determinada maneira desde que o homem assim a veja. Essa possibilidade de criar o homem em paralelo à criação divina é, efetivamente, a única definição válida de arte que conheço. Assim, partindo duma noção de “forma mentis” aparentemente abstrata, senão mesmo metafísica, viemos ter aquilo que, para manter o luxo do latim, poderíamos chamar de “forma creata510”.

Em resumo, a operação efetuada pela forma mentis, a mentalidade da época, escolhe determinadas formas para se expressar que encontra, seguindo suas próprias concepções, na natureza (não há uma natureza pré-determinada, ela existe a partir dessa projeção mental humana). Essas formas reunidas formam um todo que pode ser chamado de “estrutura” barroca: “Esta busca da realidade do movimento e o desejo de exprimi-la por intermédio de símbolos capazes de torná-la tangível, esse desejo de assim ver e assim criar é a “forma

      

509

Idem. “As dimensões do continente”, São Paulo, Suplemento Literário, O Estado de S. Paulo, 21 fev. 1959.

510

mentis” do barroco, enquanto a simbolização realizada dessa aspiração continue a “forma creata” do barroco”511.

No caso do barroco, enfim, o que rege sua forma mentis específica é a vontade de expressão do movimento, enquanto que as formas que indicam o movimento são propriamente a aplicação dessa vontade na obra realizada. Como é possível perceber, a forma mentis de Gomes Machado é uma mescla complexa da “vontade de arte” de Riegl, com a “atitude ética” por parte do artista e do “instinto” na leitura worringeriana, com um certo formalismo – porque, apesar das preocupações com símbolos sociais, Gomes Machado não abandona uma certa análise formal:

Forma visual que definia gráfica, cromática e plasticamente a substância corpórea, forma mentis que, ao mesmo tempo e no mesmo processo, moldava a capacidade de sentir, pensar e criar, o barroco configurou, em exata antecipação, desde o ritmo básico da respiração até o esgarçar-se das mais indefinidas esperanças, o que seriamos nós512.

Porém, a importância da mentalidade barroca não tem fim em si mesma – define ainda a formação do caráter brasileiro, como foi visto em Affonso Ávila, numa elaboração posterior.

A abstração também é definida por uma estrutura mental da época, num mesmo registro do universal e local, via expressão individual. Abordando a produção abstrata de Lula Cardoso Ayres como pretexto para posicionar-se diante da discussão sobre arte nacional no campo da abstração, Gomes Machado explicita a operação efetuada pela arte a partir da mentalidade de época:

hoje é bem visível, para além da epidérmica reconstituição naturalística da “cor local”, a estrutura plástica (cromática, mas também formal) em que se assenta o verdadeiro elemento regional, ou seja, a vivência ambientada e já transfundida nas constantes que, ativas por sob padrões e valores, dão vida a uma estrutura mental particular, a uma verdadeira forma mentis, sem dúvida específica, mas nem por isso aborrecendo o universal. (...) Quando a estrutura criada consegue exprimir a estrutura mental resultante da experiência vivida e, sem sequer tentar repeti-la mimeticamente, transmite algum sentimento profundo ou intuição iluminadora que a anima, toca, só por isso, o universalismo artístico. (...) Mas, acredito, a facilidade com que dela transitamos para a cultura nacional que a engloba (...) poderá facilmente sugerir nova pulsação dilatadora até a total medida humana513.

No âmbito da arte internacional, ao discutir a obra do pintor alemão Julius Bissier, em 1961, Gomes Machado afirma tratar-se de uma correspondência da forma mentis do período       

511

Idem, p.51.

512

MACHADO, Lourival Gomes. “Uma exposição frustrada I”. São Paulo, Suplemento Literário, O Estado de

S.Paulo, 19 ago. 1961. 513

expressando tão devidamente a mentalidade contemporânea que será vista no futuro como indicativo do que foi o indivíduo desse tempo514. Finalmente, o crítico aponta por que é tão essencial que o artista esteja imerso na mentalidade de sua época:

há de sempre o homem buscar as mais largas coordenadas para seu espírito, nunca porém, poderá encontrá-las efetivas em formae mentis abstraídas já da vida e, pois, esvaziadas de humanidade, como são todas que não permaneçam mergulhadas numa cultura viva, numa vida real. “Nada más que un hombre, pero nada menos que todo un hombre”, exige Unamuno. Mas só há homem completo e puro naquele que se torna capaz de reconhecer-se inteiramente em qualquer outro homem, para com ele comunicar-se sem limites, sem mentiras, sem aberrações515.

Se profundamente atento à forma mentis, comprometido com a ética de seu trabalho, o artista garante sua comunicabilidade com o público, numa transmissão de mensagens subjetivas que, por essa natureza mesma, são universais.

      

514

MACHADO, Lourival Gomes. “Bienal: o caso de Bissier”. São Paulo, Suplemento Literário, O Estado de

S.Paulo, 23 set. 1961. 515

Parte III – abstração expressiva