• Nenhum resultado encontrado

Parte II barroco

Capítulo 4: Barroco mineiro: “uma criação nitidamente brasileira”

1.1 Os estudos sistemáticos

Tendo em vista o objeto desta tese, antes de finalizar esse percurso pelas idéias sobre o barroco na história da arte brasileira é necessário incluir nesse panorama os estudiosos que desenvolveram trabalhos mais propriamente sistemáticos a partir de fins de 1930. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN é responsável pela organização de trabalhos de base e pela divulgação dessas idéias por meio da Revista do Serviço do Patrimônio, a partir de 1937445. Gomes Machado transitava entre os pesquisadores do SPHAN e nutria grande amizade pelo diretor, Rodrigo Mello Franco de Andrade.

Dois anos depois, é publicada a revista Estudos Brasileiros, ligada ao Instituto de Estudos Brasileiros, na qual publicam Augusto de Lima Júnior e José Mariano Filho. Nessa época, por um lado, mostram-se esforços para separar o barroco do jesuítico446; por outro, surge também a visão de harmonia entre barroco e paisagem brasileira, constituindo decisão certa dos jesuítas447. Gomes Machado estaria entre aqueles que, ainda nas década de 1940, repetiria a associação em termos de forma e relevo.

Em 1939, Luís Jardim publica artigos na Revista do Serviço sobre as pinturas das igrejas mineiras. A visão de Jardim é deveras peculiar entre os demais intérpretes, pois apóia- se no crítico inglês Roger Fry para assim defender um ponto de vista formalista, ao mesmo tempo que associa o barroco ao contexto contra-reformista e ao absolutismo.

Hannah Levy é uma das estudiosas mais lembradas do assunto tanto por ter sido responsável por um primeiro estudo mais teórico e científico sobre o barroco, como pela popularização dessas idéias no ambiente intelectual brasileiro. Em 1941, ela publica “A propósito de três teorias sobre o barroco”, na Revista do Serviço, demonstrando rigor científico, preocupada com a descrição minuciosa e atenta à coerência metodológica e teórica. No texto, a autora expõe três vertentes da discussão sobre o barroco: o formalismo de Wölfflin, a história do espírito de Max Dvorak e o historicismo de Leo Balet, defendido pela       

445

Gomes Júnior salienta o mérito do SPHAN: “É visível que seus trabalhos passam a ser desenvolvidos a partir de um conjunto de exigências novas, a começar pela preocupação com a descrição detalhada das obras, pela pesquisa acerca das fontes documentais necessárias para a datação e atribuição de autoria, pela classificação por gêneros, perfazendo um verdadeiro trabalho de base, ponto de partida para qualquer tratamento dito cientifico”. (GOMES JÚNIOR, 1998, p.70).

446

Interpretação presente no pensamento de Augusto Lima Júnior e José Mariano Filho.

447

Segundo Gomes Machado, há uma “milagrosa correspondência entre o barroco seco de Minas Gerais e a feição dessa província misteriosa”. (MACHADO, 1947, p.44).

autora como metodologia mais adequada para interpretar o fenômeno brasileiro, como mencionado.

Entre os estudiosos de viés acadêmico, o professor Roger Bastide, integrante da “missão francesa” que chega a São Paulo para lecionar no curso de Ciências Sociais da Universidade, também se ocupou do barroco em artigos como “O mito do Aleijadinho” e “Sociologia do Barroco no Brasil”. Contando com os instrumentos da sociologia, embora ele mesmo frisasse os limites dessa abordagem, Bastide desenvolvia uma sociologia estética ou estética sociológica “que vincula homem a outras práticas, sobretudo rituais, pelas quais os homens dão expressão formal e simbólica a sua condição, experiência e vicissitudes448”. O sociólogo deixaria como legado aos seus discípulos “uma certa modalidade de imaginação estética e sociológica capaz de capturar, no próprio jogo autônomo das formas, seus vínculos mais profundos449”, visível, por exemplo, em Formação, de Antonio Candido, e no conceito de forma mentis, utilizado por Gomes Machado.

O sociólogo francês vê o barroco como transformação da produção renascentista, devido às mudanças sociais e das representações coletivas. Uma vez que o barroco apresenta uma formulação internacional, adapta-se a distintas realidades, tanto européias como americanas, apresentando diferenças que provêm da configuração social na qual se dão. No caso brasileiro, elenca como aspectos significativos o afastamento entre colônia e metrópole, a organização rural por latifúndios, a baixa densidade populacional, a escravidão e estratificação racial, a dimensão continental do país, diversidade entre interior e litoral. Aspectos estruturais das capelas coloniais, como o alpendre, são explicadas por essas características, nesse caso, o alpendre era destinado aos negros, espaço que os mantinha separados dos brancos. Na realidade, o alpendre já pode ser observado em igrejas portuguesas do século XVII450. Em termos de equivalência entre período de riqueza econômica e ápice da produção artística, Bastide explicava o esplendor barroco no momento de decadência econômica recorrendo ao ócio, decorrente dessa situação451.

      

448

BASTIDE, Roger. Impressões do Brasil. Organização Fraya Frehse e Samuel Titan Jr. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011, p.12.

449

Idem, p.13.

450

Como exemplo, cita-se o Santuário de Nossa Senhora de Nazaré, em Portugal, construído inicialmente no século XIV e reconstruído no XVII. O alpendre descende de um elemento arquitetônico denominado nártex, cuja função era abrigar indivíduos proibidos de acesso ao templo, sendo possível observá-lo em edifícios anteriores ao século XVII. Ver: MOURA FILHA, Maria Berthilde. “Arquitetura e arte no Brasil colonial: uma

miscigenação de formas e fazeres”. Disponível no site:

www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais/st.../maria_berthilde_st13.pdf. Acesso em 15 fev. 2012.

451

“Como a época de riqueza é também a do trabalho, como o ócio, o amor ao luxo só se aprendem lentamente, acha-se a arte quase sempre em atraso e seu brilho só resplandece em todo seu fulgor quando já iniciada a

Bastide acreditava que o barroco constituía a primeira configuração da arte brasileira, em sintonia com a leitura modernista. Segundo Fernanda Arêas Peixoto, o caminho dos estudos de Bastide no Brasil foi orientado pelos modernistas, tendo a figura de Mário de Andrade destaque particular452. A relação entre ambos se mostra no trabalho de Bastide em termos tanto de ponto de vista como de assunto, nesse caso, o barroco mineiro e Aleijadinho e a preocupação em examinar a configuração do caráter genuíno da cultura brasileira:

Bastide endossa a opinião de Mário de que são a presença do mulato e a estrutura social (e racial) do país que dão ao barroco entre nós feição particular. Isto quer dizer que a ‘originalidade’ do estilo brasileiro, destacado pelos dois intérpretes, não descarta, evidentemente, a importação de modelos adventícios. Compreender a originalidade do barroco brasileiro, para Mário e Bastide, significa descartar, em primeiro lugar, a idéia de que houve aqui criação autônoma e, em segundo lugar, e na direção inversa, a idéia de que na colônia teria se dado mera cópia do padrão metropolitano. Por originalidade, nos termos dos dois autores, entendamos solução original, ímpar, a partir das contribuições africana e portuguesa453.

Portanto, a interpretação do barroco brasileiro dependia, para ele, da configuração social e política local, levando-se em conta ainda as mudanças políticas e religiosas européias do período, como a centralização proporcionada pelo absolutismo. No Brasil, algumas características do estilo seriam o “atraso” em relação ao europeu e a redução negativa do ornamento. Bastide ocupou-se ainda das diferenças entre os barrocos mineiro e nordestino, segundo essas mesmas diretrizes. A narrativa heróica que sempre cercou o Aleijadinho tampouco escapou ao olhar de Bastide, apontando a construção de mitologias ao redor de artistas que carregam a denominação de gênio.

Aleijadinho foi figura de relevo particularmente no debate modernista. Entretanto, sob o olhar de Bastide, ao contrário das recorrentes leituras mitificadoras do artista – em grande parte baseadas na primeira biografia escrita por Rodrigo Bretas em 1858 –, recusa-se essa interpretação que heroiciza o artista, predestinado, desse modo, à viver uma tragédia. Assim, comenta com ironia o sociólogo francês a visão da figura do artista tornado herói, da Antigüidade à modernidade:

A Fatalidade persegue o artista. Mozart acaba miseravelmente; Homero é cego; Beethoven fica surdo; Rimbaud só espera escapar à tenebrosa maldição dos deuses

      

decadência do país”. (BASTIDE, Roger. Psicanálise do Cafuné e Estudos de Sociologia Estética Brasileira. Curitiba: Guaíra, 1941, p.8).

452

PEIXOTO, FERNANDA ARÊAS. Diálogos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide. São Paulo, Edusp/FAPESP, 2000.

453

pela fuga: sua partida precipitada para a Abissínia, mas ele não evita a punição divina [...] e Rimbaud terminara seus dias, amputado, num leito de hospital454.

Gomes Júnior sintetiza o modus operandi dessa visão mitificadora:

Obscurece-se sua formação para fixar a idéia do gênio inculto; realça-se sua condição de mulato para dar relevo às suas realizações no seio de uma sociedade escravocrata; apaga-se por completo a natureza coletiva do trabalho artístico para que o individuo assuma uma feição demiúrgica; amplia-se o efeito da doença para que fique nítido o esforço sobre-humano de sua obra e que o belo ganhe realce na moldura da lepra455.

Para Bastide, o estudo do barroco vale ainda como referência para análises da arte contemporânea, segundo Peixoto no que ele vislumbra ser um “barroco moderno”, capaz de fornecer sugestões preciosas para a estética contemporânea, para o surrealismo e para algumas expressões abstratas, tendo por característica principal o olhar atento para as importações e para a possibilidade de nacionalização de um estilo.

Segundo o sociólogo, “o barroco constitui uma antecipação do surrealismo”, trocando com Gomes Machado artigos nesse sentido. Nesse debate entre mestre e discípulo, nota-se a estratégia de Bastide: como estilo autêntico brasileiro, o barroco nacional forneceria a base para o desenvolvimento da arte contemporânea do país, que deveria se voltar para o surrealismo como formulação principal. Como se pode observar, a preocupação de Bastide com o desenvolvimento de uma arte contemporânea genuinamente brasileira ia ao encontro tanto das formulações de Andrade, como daquelas de Gomes Machado. A diferença portanto estava na escolha do surrealismo como estética central nessa continuidade456.

No artigo “A Volta ao Barroco ou A Lição do Brasil”, de 1947, Bastide explicita seu raciocínio. Para ele, arte e arquitetura contemporâneas internacionais se voltam excessivamente para o clássico, para uma concepção de arte utilitária que não deixa espaço para a dimensão mística, espiritual, onírica457. Como resposta a esse impasse, Bastide observa        454 BASTIDE, 1941, p.15. 455 GOMES JÚNIOR, 1998, p.74. 456

Em 1943, Gomes Machado escreve a série de artigos “O surrealismo ameaçado” e, em 1946, “De Chirico e o Surrealismo”. Roger Bastide, em resposta aos artigos do discípulo, de 1943, publica “Post-scriptum a Lourival Gomes Machado – I, II e III”, em O Estado de S. Paulo, em 1944. No segundo artigo da série, Bastide afirma que Gomes Machado é levado a escrever sobre o surrealismo para tratar do atraso com que as vertentes chegam ao país e que, na opinião dele, um surrealismo brasileiro poderia dar continuidade ao barroco nacional. (BASTIDE, Roger. “Post-scriptum a Lourival Gomes Machado – II”, Suplemento Literário, O Estado de S. Paulo, 22 jan.1944).

457

A arte para Bastide transcende a dimensão material, apesar de realizar-se enquanto dado material e relações formais: “Pintura é pintura, e nada mais. Será isso afirmar que a arte não tem nenhuma significação? Ao contrário. A arte tem uma significação metafísica extremamente importante, e é o que pretendo estudar convosco. Não quero esquecer-me, entretanto, antes de começar, de que o pintor não faz metafísica com idéias ou sentimentos. Fá-la com linhas ou cores. Quando, portanto, aludimos à espiritualidade de um quadro, não nos

que a arquitetura moderna brasileira orienta-se para o barroco, visando preencher essa lacuna deixada pela arquitetura moderna em geral:

Vemos, no entanto, esboçar-se uma volta ao barroco e isso no próprio interior da arquitetura de cimento armado. Sabe-se que o barroco tem sido, por vezes, definido como a predominância da linha curva sobre a reta. Ora, inúmeras fachadas modernas já se curvam, tornam-se sinuosas, no alinhamento das ruas formam como vagas imóveis, como ondas quebrando num rio asfaltado, sobre as calçadas escuras458.

Em seguida, explica a relação do surrealismo com esse retorno ao barroco:

Um outro sintoma de volta à estética barroca parece-me ser o surrealismo. Certamente um barroco muito diferente do barroco dos séculos XVII e XVIII, mais próximo do gabinete de dentista com seus instrumentos de pesadelo do que das capelas de colunas torcidas, de guirlandas floridas, de mulheres deformadas das igrejas da Bahia ou de Minas, mas, em todo caso, um barroco. Não se encontram novamente nele aquelas praias infinitas que prolongam nosso sonho, como os tetos barrocos vazavam o edifício para fazer com que o espírito se perdesse num falso céu capitonné de nuvens? Nele os objetos não se torcem, não deformam, não constroem uma arquitetura artificial, exatamente como no barroco? (...) Pode-se citar até o trompe-l’oeil, com tanta freqüência empregado pelos surrealistas, recortes de jornais, mapas colados sobre a tela, que encontram seu correspondente nas perspectivas falsas da época barroca459.

Como se pode apreender, a aproximação entre surrealismo e barroco se dá por meio do emprego de artifícios representativos que, para o autor, visam a ilusão, como o trompe-l’oeil e a colagem. Curiosamente, na contramão de seus colegas de crítica no Brasil, Bastide encontra até mesmo na arte abstrata relações com esses artifícios, comparando certas formas empregadas às “soluções da ornamentação barroca”.

      

referimos ao assunto tratado. (...) Para saber se uma pintura é ou não mística obedeçamos ao conselho de Lhote: viremos o quadro de pernas para o ar. (...) Que é mística? (...) a mística é a procura do paraíso perdido, é a volta à unidade; é a recusa do homem em permanecer separado, a sua vontade de reintegrar a amizade nas coisas. (...) A arte é linguagem e essa linguagem é a expressão dessas correspondências que o espírito místico sabe descobrir entre as diferentes espécies de realidade. Não direi sequer que a pintura é uma imitação do mundo sobrenatural; o sobrenatural nela está integrado (...) Não sabemos, quando começamos a olhar um quadro, a que aventuras espirituais essa contemplação poderá levar-nos”. (BASTIDE, 2011, p.17-33).

458

Idem, p.88.

459