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Diante do surrealismo: a centralidade do indivíduo

Parte I modernismo

5. Diante do surrealismo: a centralidade do indivíduo

Antes que se dê continuidade à análise do pensamento gomesmachadiano sobre o modernismo, é necessário discutir brevemente sua aproximação com a vertente surrealista, uma vez que sua postura é absolutamente divergente daquela de Mário de Andrade.

      

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A Secessão de Berlim foi uma associação de artistas que rompem com a visão acadêmica de arte e buscam apoiar-se mutuamente para promover exposições. São os artistas mais tarde ligados diretamente ou indiretamente ao Expressionismo, como Max Libermann, Max Beckmann, Lovis Corinth, Lyonel Feininger, Georg Kolbe, Käthe Kollwitz, Julie Wolfthorn, Hermann Struck, Adolf Eduard Herstein e Max Slevogt.

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“En este sentido, tener calidad quiere decir algo más que realizar una obra técnicamente buena. Actitud: cómo medirla?, como reconocerla?, No existe manifiesto programático que pueda ayudarnos; únicamente el instinto puede guiarnos para descubrir sua presencia y reaccionar frente a ella”. (WORRINGER, Wilhelm. “Calidad y actitud. En oportunidad de inaugurarse la secesión de Berlin”. Em: Arte y Sus Interrogantes. Buenos Aires, Argentina: Nueva Visión, 1959, p.9). (Tradução da autora).

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MACHADO, Lourival Gomes. “Arte na sociedade de massas”. Anotações de aula. Datiloscrito. 1961. Acervo Lúcio Gomes Machado.

Andrade deixa claro seu posicionamento: o surrealismo não servia à arte brasileira porque era uma manifestação do cansaço “perfeitamente psicológico na França”; a produção local, ao contrário, deveria ser interessada, comprometida com a organização da sociedade133. No que concerne aos artistas brasileiros, como ressalta Tadeu Chiarelli, Andrade não demonstrava interesse especial pela obra de Flávio de Carvalho e Ismael Nery, ambos “raros representantes do surrealismo e do ‘dada’, tendências que, em suas posturas mais radicais, relativizavam os limites entre arte e vida, concentrando o interesse dos artistas não propriamente em suas produções finais mas, sobretudo, em suas atitudes perante o mundo”134. Se por um lado Gomes Machado não dedica atenção a Carvalho ou Nery nesses termos, por outro, percebe esse dado “extra-artístico” do surrealismo. Do ponto de vista de Gomes Machado, essa “maneira de viver” que determina a atitude surrealista diante da realidade é o aspecto mais importante do movimento. Para o crítico, revela-se assim um caminho para o conhecimento do indivíduo melhor do que aquele escolhido pela psicanálise, que procura racionalizar o comportamento humano, pois o surrealismo aceita o “mistério135”.

Tais idéias são desenvolvidas em duas séries de artigos que claramente cumprem uma função didática, visando instruir o público sobre o movimento: “Surrealismo ameaçado”, escrita entre 1943 e 1944, e “De Chirico e o Surrealismo”, de 1946136.

      

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Andrade discorre sobre o assunto em uma carta a Prudente de Moraes, Neto, denominando a vertente “sobrerrealismo”: “(...) o sobrerrealismo é uma arte quintessenciada que me atrairia fatalmente si eu não tivesse dado uma função de acordo mais com a civilização e o lugar em que vivo. Porque incontestavelmente a civilização em que a gente vive aqui no Brasil não é a mesma dos franceses, não acha mesmo? (...) Considero o sobrerrealismo a conseqüência lógica de arte dum país que nem a França. No Brasil acho que no momento atual, pros que estão deveras acomodados dentro da nossa realidade, ele não adianta nada. Não adianta porque não ajuda. Todas as questões que são de vida ou de morte pra organização definitiva da realidade brasileira (...) nos levam pra uma arte de caráter interessado que como todas as artes de fixação nacional só pode ser essencialmente religiosa (no sentido mais largo da palavra: fé pra união nacional, psicológica familiar social religiosa sexual) (...) repare também que não articulo aqui nenhuma contradição de valor estético contra o sobrerrealismo. Tenho várias. Porém elas não importam agora. O que importa é não ver você marcar passo nem se manifestar seguindo uma fadiga (considero o sobrerrealismo um fenome (sic) de fadiga aliás perfeitamente psicológica na França) que si voxê esta (sic) acomodado com a vida de aventura (...) em que a gente está vivendo aqui não tem lógica nem é conseqüência necessária ou natural...”. (ANDRADE apud CHIARELLI, Tadeu. “A fotomontagem como ‘introdução à arte moderna’”: visões modernistas sobre a fotografia e o surrealismo”. Ars, São Paulo, USP, n.1, jun.2003, p.67-81).

Note-se como Andrade está preocupado em definir uma estética apropriada ao caso brasileiro. Como visto em itens anteriores, a base para essa visualidade unificadora seria o retorno à ordem, pela sua própria natureza de fenômeno de viés nacionalista, nos vários contextos em que ocorreu.

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CHIARELLI, 2007, p.257-8.

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MACHADO, Lourival Gomes. “Diante do mistério - O surrealismo ameaçado”. São Paulo, O Estado de São

Paulo, 18 fev. 1943.

Nos itens seguintes, verificar-se-á como Gomes Machado colhe essa valorização da atitude artística em posicionamentos de Wilhelm Worringer, o teórico apreciado pelos expressionistas alemães no início do século XX. Interessa ao crítico que o surrealismo, bem como o expressionismo, constituam “atitudes” artísticas que se voltam para o indivíduo.

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Ainda em 1943, seu segundo texto para Clima é dedicado ao pintor português surrealista Antonio Pedro, cuja exposição, segundo o crítico, os integrantes da revista ajudaram a trazer para São Paulo. No entanto, não foi possível precisar o local da mostra.

A primeira série137 se inicia por um balanço do movimento138, no qual o autor frisa a relevância de uma quase metafísica proposta pelo surrealismo, preocupado com o universo interior do indivíduo e não com o exterior139. Grosso modo, o surrealismo opera na libertação do indivíduo em relação à organização racional dominante no mundo moderno, ao mesmo tempo que as ações surrealistas extravasam o campo artístico dando-se na própria realidade.

Yves Tanguy é considerado pelo crítico o artista que melhor desenvolveu sua própria iconografia simbólica. O desenvolvimento de uma simbologia nova é o segundo aspecto relevante do surrealismo indicado pelo autor, pois crê que se fornecem assim instrumentos para uma nova maneira de pensar a realidade. Entre os artistas citados, o crítico repreende apenas Salvador Dali, que, para ele, perdeu-se no processo por excesso de presunção:

Um artista assim, mau grado a sinceridade da obra, tende à distorção dos próprios valores, à desaparição pela auto-mutilação. Porque deixa que valores estranhos perturbem sua missão e, então, se esquece de que não possui a arte e seus símbolos e que sua tarefa é criá-los dentro da incompreensão coletiva, para que adquiram vida própria, se tornem úteis e necessários, se vulgarizem pela circulação e, finalmente, desapareçam pelo uso ou se eternizem pelo exemplo140.

Na série sobre De Chirico, o crítico interpreta a obra do pintor em relação ao legado que deixou aos surrealistas como um precursor fundamental, que se pauta ainda pela tradição. A aproximação inusitada de objetos já aparece em De Chirico, embora trabalhe com a reprodução de objetos elaborados pelo homem como entidades individuais numa “complicada mecânica de composição entre a figuração de massas e a aparência de espaços vazios141”. De Chirico “consegue o milagre, o supremo milagre surrealista, empregando os elementos da própria pintura dentro das leis tradicionais da plástica consagrada pela história. Nisso vai, acreditamos, seu maior valor142”.

No âmbito artístico brasileiro, Gomes Machado aponta a filiação de Maria Martins ao surrealismo, notando como foi a “corrente moderna que menos se fixou em nossa terra143”.       

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MACHADO, Lourival Gomes. “Diante do mistério - O surrealismo ameaçado”. São Paulo, O Estado de São

Paulo, 18 fev. 1943; Idem. “Abismos do símbolo – O surrealismo ameaçado”, 1 jan. 1944; “O cabotinismo

ultrapassado - O surrealismo ameaçado”, 26 dez. 1943; “Crepúsculo pouco melancólico - O surrealismo ameaçado”, 6 jan. 1944. 138 MACHADO, 18 fev. 1943. 139 Idem. 140 MACHADO, 1 jan. 1944.

Aliás o autor refere-se com freqüência às memórias de Dali publicadas em Secret Life of Salvador Dali, publicadas em 1942.

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“Lázaro anda”. 3 nov. 1946;

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Idem.

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MACHADO, Lourival Gomes. “Escultura Brasileira nos Séculos XIX e XX”. [c.1952]. Texto datiloscrito inédito. Acervo Lúcio Gomes Machado. Este texto foi encontrado sem referência entre os papéis do crítico. Por meio de pesquisa, foi possível apurar que se trata de um capítulo para o segundo volume de As Artes Plásticas

Durante a análise, o crítico demonstra seu conhecimento sobre o surrealismo e os manifestos da vertente, aproximando a obra da escultora, para ele, fortemente intuitiva, à noção de “beleza convulsiva” concebida por André Breton144.

Como se nota, os elogios ao surrealismo elaborados por Gomes Machado focam as possibilidades de criação de poéticas individuais que comunicam coletivamente ao mesmo tempo que vislumbra, por meio de estratégias surrealistas, como o automatismo psíquico e o cadavre-exquis, uma renovação da atitude do indivíduo diante da realidade (fig. 16). Esse dado auxilia para compreender sua concepção de arte moderna: nela, o universo da não racionalidade, da intuição e das questões subjetivas do indivíduo, são primordiais para a produção – e igualmente para entendê-la.

Fig. 16 – MACHADO, L.G.; MILLIET, Sérgio; NEME, Mário. Cadavre exquis, s.d.. CCSP145.

Há uma sintonia de idéias entre o “transbordamento inconsciente146” que transparece na forma, segundo o próprio Gomes Machado, característica do Surrealismo, e os fundamentos da abstração expressiva que, para ele, se dão por duas vias: “uma atitude anti- formal, que seria a aberração formal do expressionismo e a transcendência formal do       

no Brasil, organizado por Rodrigo Mello Franco de Andrade. O primeiro volume foi publicado em 1952,

enquanto que o segundo permaneceu inédito. No ensaio, Lourival Gomes Machado estrutura uma tradição do que entende por escultura moderna brasileira, Para tanto, elege como ponto de partida a obra do Aleijadinho – que aparece apenas no final do texto, uma vez que o ensaio é direcionado especificamente à produção contemporânea e àquela do século anterior –, seguida por escultores e obras que de alguma maneira se relacionam numa espécie de continuum temporal do gênero. A Missão Francesa constituiria o marco divisório a linha orgânica que existiria entre a produção colonial e a contemporânea.

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A expressão “beleza convulsiva” foi desenvolvida por André Breton no livro Nadja, em 1928, para definir uma beleza que não é estática nem dinâmica, entre o animado e o inanimado. Podendo também dizer respeito à beleza que surge num ponto de encontro entre opostos. Para Breton, o termo pode ser aplicado, por exemplo, a uma imagem produzida pela escrita automática ou a uma inovação artística. (ASPLEY, Keith. Historical

Dictionary of Surrealism. S.l.: Scarecrow Press, 2010). 145

Esta obra serviu de mote para a exposição de arte contemporânea do acervo do Centro Cultural São Paulo – CCSP, “Cadavre Exquis”, realizada em maio de 2010.

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surrealismo”. Na terceira parte da tese, inclui-se uma discussão sobre surrealismo no debate sobre abstração expressiva do segundo pós-guerra, apontando para a importância do não- racional e da subjetividade do indivíduo na criação artística e apresentando assim a coerência do pensamento de Gomes Machado147.

      

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Na discussão sobre o barroco mineiro, ver-se-á como Roger Bastide e Gomes Machado trocam artigos sobre o surrealismo. Resumidamente, o sociólogo francês acredita que a estética surrealista seria ideal para a arte brasileira contemporânea devido ao ilusionismo que a aproxima, segundo ele, da soluções barrocas.