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Parte I modernismo

Capítulo 2: Renovação pela tradição: ancoragem para uma história da arte expressiva

1.2 Segall e a decifração do fenômeno nacional

Em Retrato, Gomes Machado assim se expressa sobre Lasar Segall:

A aquisição definitiva pela arte nacional desse nome de repercussão mundial, sua assimilação lenta embora arrepelada por vezes, sua fixação definitiva na plástica indígena em forma, cor e espírito, valeu como uma transfusão de seiva poderosa: entrando em sua exposição em 1943, Guignard, grande pintor, diria que ‘graças a Deus este homem é pelo menos brasileiro naturalizado195.

Por meio da apropriação das supostas palavras do pintor Guignard, Gomes Machado reivindica Segall para a arte brasileira, uma estratégia da qual não lança mão em relação a outros artistas, como de Fiori, por exemplo. O fato de Segall ser um grande nome do modernismo, já reconhecido e de grande importância para a cena artística paulista, teve peso significativo nessa decisão: para Gomes Machado, Segall havia constituído uma escola – muitos pintores contemporâneos apresentavam, segundo o crítico, “raiz segalliana”, aliás uma postura em sintonia com aquela de Mário de Andrade, que, nos anos 1930, via o pintor como paradigma para a arte brasileira196. De fato, exemplos como Yolanda Mohalyi e Lucy Citti Ferreira, entre outros, que trabalharam no ateliê do pintor, apresentam soluções formais semelhantes à obra segaliana entre as décadas de 1930 e 1940.

É notável como Gomes Machado não dedica atenção semelhante à obra expressionista de Anita Malfatti produzida particularmente entre 1915 e 1916, quando o emprego de contrastes cromáticos, gesto rápido e solto e, muitas vezes, superfície aplainada, num registro pouco atento à verossimilhança, dominam sua produção. Esse distanciamento de Gomes Machado da pintura mais radicalmente expressionista de Anita mostra como mantinha sua visão próxima daquela de Andrade, ou seja, prezando ainda por uma arte cujo limite era o realismo de viés nacionalista197: “se Segall fez sentir-se na família plástica brasileira, conseguiu a impressão poderosa pelo trabalho constante empregado na decifração do fenômeno nacional”. Porém, como é esse “decifrar” o nacional, na obra do pintor?

       195 MACHADO, 1947, p.49. 196 CHIARELLI, 2008, p.35. 197

Entretanto, quando Gomes Machado dedica um artigo a Anita Malfatti em 1955, por ocasião de uma individual da artista no MASP, nota a mudança de direcionamento da produção: “Seu outro modo, aquele do Farol e da Mulher de Cabelos Verdes, ela já não o vê como exclusivamente seu. Integrou-se na história, e pouco faz que seja na história recente (...). Transformou-se em patrimônio coletivo (...). Tornou-se o símbolo de uma evolução estética que se processa acima das expressões individuais e dos valores particulares”. (MACHADO apud BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti: no tempo e no espaço. Vol.1. São Paulo: 34; EDUSP, 2006, p.467-468.

Ora, Segall era um pesquisador tanto do povo brasileiro, como da paisagem brasileira. O texto sobre o artista, cujo subtítulo “a feição da verdade” dá pistas do encaminhamento do raciocínio, informa melhor como se procede essa “pesquisa” do pintor. No ensaio, Gomes Machado defende a idéia de que a obra segalliana está pautada na realidade. Além disso, Segall é um dos pontos de partida para a pintura desenvolvida depois dele. Uma vez que o crítico entende o modernismo como movimento de “renovação”, “rompimento com o passado e instalação de uma nova realidade”, com Segall, entre outros artistas modernistas, se instaura uma nova plataforma para arte brasileira, nacional e moderna, ou seja, de temática local ao mesmo tempo que consciente de sua autonomia enquanto obra de arte.

Segundo o crítico, a obra segalliana possui duas constantes: 1) “acumulação orgânica das experiências temáticas”; 2) “afirmação pictórica” “progressiva e ascendente198”. Os dois aspectos reúnem-se na recorrência dos temas que servem, assim, para a discussão de problemas formais, como acontece com “os sempre ardentes sóis e girassóis de Van Gogh a queimar de ambição199”. Ao longo de sua trajetória, a linguagem plástica de Segall se torna “mais econômica e mais sutil, ou seja, mais direta e mais eficiente no formular os símbolos desejados”.

Na obra inicial de Segall, para o crítico, é central a figura humana tratada de maneira universalista por meio da inscrição nela de “cargas sentimentais”. Nesse tratamento da figura carregada de sentimento universal, transparece o “sagrado artesanato” de Segall, ou seja, seu domínio do ofício: “é inquietante verificar como, tão logo e tão cedo, instintivamente compreende que, para melhor exprimir-se, deverá simplificar graficamente as figuras e, por vezes, afastá-las da aparência natural, se efetivamente quer transmitir, para além dessa aparência, o seu conteúdo perene”200.

Numa segunda fase, esta expressionista, Segall percebe que a arte necessita de uma “regeneração revolucionária” para reaproximar-se do indivíduo. Segundo o crítico, o artista explora, a partir de temas da terra natal, duas “linhas evolutivas” gerais que se completam: 1) “cor violenta e contundente”; 2) “a linha seca e cortante”. Dentro da primeira, aparece Aldeia Russa, 1917-18, na qual “a grande força do quadro, o ímpeto central que o compõe e anima é contudo, o colorido”, apesar da linha que cria “figuras não-descritivas” e da “explosão da tela no estrelado irregular da composição, que ultrapassa os limites da moldura”. Na segunda

      

198

MACHADO, Lourival Gomes. Lasar Segall: a feição da verdade. São Paulo: Centro Cultural Brasil-Israel, 1957, p.12.

199

Idem, p.13.

200

categoria, encaixa Recordação de Vilna Durante a Guerra201, 1917, de traço “nervoso” e “ângulos anavalhantes202”.

Sobre Família Enferma, atualmente denominado Interior de Pobres II, 1921, Gomes Machado observa que Segall opta por uma palheta rebaixada (“monocromatismo de um castanho quente e sombrio que só abre campo para uns poucos contrastes do verde quebrado em meios-tons ou para as acentuações de ligeiras zonas de amarelo sulfúreo203”). Segundo ele, as figuras sentadas, que formam um triângulo, são colocadas sobre o fundo “compondo o espaço”; para o crítico, apresentam deformação para expor seu conteúdo expressivo. A leitura dessa obra leva Gomes Machado a sublinhar a posição de destaque de Segall no movimento expressionista.

Entretanto, como observa Chiarelli, justamente em Interior de Pobres II mantém-se a temática típica do movimento – são comentários sobre a miséria, a marginalidade e o sofrimento –, porém estão ausentes certos aspectos formais que compõem a estética expressionista como a substituição do espaço ilusionista tridimensional pela ênfase na composição plana204. Esse posicionamento de denúncia por parte do artista diante das desigualdades sociais contemporâneas, como já sublinhou-se, demonstrava, no âmbito expressionista, seu comprometimento com a sociedade.

Mas o que significa essa separação de dados constituintes do movimento expressionista que transparece em certos trabalhos de Segall? De acordo com Chiarelli, trata- se de um comprometimento com o social que, para o artista, exige um tratamento plástico realista e não uma ruptura com a tradição, ou seja, a pedra de toque da vanguarda, o rompimento com a representação tradicional, é suprimido em prol de um registro menos radical formalmente, mas que objetiva garantir uma comunicação clara com o espectador, passando uma mensagem sem ruído. É nesse sentido que Gomes Machado demonstra apreciar a opção de Segall:

Um mestre, contudo, pouco atento aos mandamentos programáticos e às implicações momentâneas do expressionismo, porquanto o interessava, mais que tudo, alcançar o conteúdo de um elemento essencial da nova arte. Apegando-se aos fundamentos do expressionismo e desinteressando-se pelos aspectos exteriores das realizações por ele estimuladas, prefere decididamente o permanente necessário ao fatalmente transitório205.

      

201

Entende-se aqui, pela descrição do autor, que Recordação de Vilna Durante a Guerra seja o álbum de gravuras em ponta-seca Recordação de Vilna, realizado em 1917.

202 Idem, p.17-18. 203 Idem, p.21. 204 CHIARELLI, 2008, p.73. 205 MACHADO, 1957, p.22.

Em outras palavras: para o crítico, Segall descartava radicalizações formais (as “implicações momentâneas” presentes nos “aspectos exteriores”) do movimento porque buscava um tipo de linguagem permanente, uma arte baseada em pressupostos da tradição embora discutisse questões da atualidade e mostrasse uma deformação expressiva.

Sendo assim, não há, na maioria dos trabalhos de Segall, o desapreço pelo métier e uma ênfase contundente na ação que, segundo o historiador da arte Giulio Carlo Argan, era condição da poética expressionista alemã:

É este o material sobre o qual opera o artista: os temas dos expressionistas alemães geralmente estão ligados à crônica da vida cotidiana (a rua, as pessoas nos cafés, etc.). Em suas obras, porém, percebe-se uma espécie de incômodo, de indisfarçada rudeza, como se o artista nunca tivesse desenhado e pintado antes daquele momento. Por que se recusa toda linguagem constituída, por que a expressão se dá de modo deliberadamente penoso, excessivo, sem nuances? (...) O Expressionismo alemão pretende ser precisamente uma pesquisa sobre a gênese do ato artístico: no artista que o executa e, por conseguinte, na sociedade a que ele se dirige. Se no princípio não está o verbo (a representação), e sim a ação, o primeiro problema é o fazer, a técnica. Para os impressionistas, assim como para os clássicos, a técnica era o meio com que se representa a imagem. Mas se a ação deve ser criativa, nem mesmo a imagem comporta um modo de fazer, uma técnica. É um ponto fundamental, que explica a orientação ideológica, tipicamente populista do movimento206.

É fundamental observar que Segall opta por essa poética não devido à sua presença no Brasil, num meio artístico mais reduzido e de história recente, mas porque esse direcionamento já aparecia na cena alemã do entre-guerras. Para Chiarelli,

Se, em algumas pinturas da segunda metade dos anos 1910, o tom expressionista, revestido pelas soluções cubo-futuristas, reforçavam o caráter bidimensional da pintura, logo na continuação de sua produção pictórica percebe-se como Segall começa a exercitar outras possibilidades de expressão, conectadas com a necessidade – também percebida na cena artística alemã naquele período – de conceber pinturas mais atentas à recriação do espaço tridimensional.

Embora tímida no início, em Gestante (1919), Viúva e Filho II (1920), Interior de

Indigentes (1921) e Interior de Pobres II (1921) nota-se como a ênfase à

bidimensionalidade do plano já começa a perder sua força, entrando em colapso ante a necessidade de representação do espaço tridimensional.

O que essas obras atestam é a própria crise da pintura de vanguarda, no processo de adequar-se a uma compreensão menos radical de suas possibilidades. É nessa época que o radicalismo inicial da pintura de vanguarda tende a ser combatido e revisto por aqueles que a desejam mais atrelada às possibilidades de compreensão do homem comum (...).

A Jovem de Cabelos Compridos (1942) (fig. 21), para Gomes Machado, é “obra de coroamento”, “maior pintura de Segall”:

      

206

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p.237-8.

Firmemente implantada na sucessão das três grandes formas, ascendentes e centrais, das mãos e do rosto, a composição pode entregar-se a uma irrestrita movimentação do traço e da pincelada, escachoando, em queda vertical nos cabelos, alçando-se em curvas caprichosas no pano, unindo figura e fundo numa mesma fluidez de matéria.

As anotações do crítico salientam, portanto, que o tratamento pictórico semelhante une figura e fundo, indicando a importância das “valores plásticos” para o artista.

Fig. 21 – Lasar Segall. Jovem de Cabelos Compridos, 1942. Museu Lasar Segall.

Chiarelli, comentando a obra, afirma que o trabalho pertence a uma fase de amadurecimento do artista, na qual existe uma “simbiose entre um conceito de pintura autônoma e a vontade de registro do real”:

Emana aqui um erotismo sutil, não apenas pelo congelamento de uma ação repleta de sensualidade, mas sobretudo pela urgência amorosa com que o pintor cobre a tela com pinceladas céleres, transformando-a em pele, na qual pulsam os planos transformados apenas em sugestões207.

Seguindo essa mesma idéia, na qual se mantém a figuração aliada à ênfase na autonomia do meio, Gomes Machado escreve algo nesse sentido, acerca da série de “florestas” de Segall, seus últimos trabalhos, que tangenciam a abstração, já na década de 1950, quando o meio artístico brasileiro torna-se ambiente propício para essas experiências208. O crítico nota que Segall não adere por completo à arte abstrata, mantendo-se num limite:

Porém, os ritmos puros das “Florestas” – que, reveladas pela primeira vez em 1952, constituiriam sua grande paixão até o momento final, cedendo apenas às entrevistas novidades das “Favelas” – merecerão, por certo, um estudo à parte quando for possível vencer a carga emocional com que o sentimento da ausência ainda os envolve. Neste momento, só se poderá advertir aos menos informados que erraria quem procurasse naquelas claras estruturas formais, uma aspiração a qualquer

      

207

CHIARELLI, 2008, p.48.

208

No começo deste capítulo foi mencionado como a abertura dos museus de arte e as Bienais transformam a cena artística a partir de fins de 1940 e início de 1950.

geometrismo, a qualquer ‘modernismo’ de ocasião. Bastam olhos de ver, para compreender que, na obra admirável de Segall, a constante modernidade flui, direta, do perene e do universal, como nela não há geometria estabelecida que não a das arestas sutis da essência humana a cristalizar-se.

Em outras palavras, Gomes Machado aponta: 1) a importância dessa série de Florestas dentro da obra de Segall; 2) que não se trata de uma produção que tangencia o abstracionismo devido às discussões do meio local no período; 3) que não se trata de adesão à arte abstrata por modismo. Porém, essa produção de Segall é sim uma resposta ao debate que experimenta na São Paulo do início dos anos 1950, buscando uma investigação da geometria, embora de natureza mais livre, por meio da serialização de faixas verticais que exploram o ritmo. Luz e sombra são trabalhadas a partir da variação de tons, demonstrando o apego à figuração, que aparece também nos títulos, como indica Chiarelli. O próprio Segall afirma acerca da arte abstrata em 1924:

(...) o homem está ligado estreitamente à terra, sendo uma parcela da natureza, e nunca poderá livrar-se dela ou de sua vida material, a fim de se esquecer no transcendental, a fim de exprimir-se nos quadros de tela de um modo perfeitamente abstrato. A pura abstração só é possível na arquitetura ou no que se costuma chamar a indústria artística, podendo ali atingir a mais pura arte.

Embora estejamos de pé firme na terra onde domina uma concepção do mundo fortemente materialista, onde as máquinas são o principal fator do nosso progresso, de outro lado, manifesta-se uma forte aspiração ao inconcebível. Que é o inconcebível? Religião, coletivismo, amor fraterno? É o mesmo: tudo se reduz ao transcendental. Assim, de um lado, uma forte tendência ao naturalismo (não falamos aqui do falso naturalismo), de outro lado uma tendência à abstração. Como já mencionei, a pura abstração nos quadros de tela, isto é, pensada como um quadro, é impossível com exceção talvez do jogo estético de formas, enquanto o naturalismo, amarrando-nos à terra, tira-nos a força de criação de novos valores, circunscrevendo-nos estritamente aos dados exteriores imediatos. Essa luta entre o instinto e o intelecto provoca um desejo irresistível de encontrar uma síntese dessas extremidades, e nessa direção deve ser dirigido nosso olhar (...) O expressionismo, o cubismo, o construtivismo e outros “ismos” são tendência na arte de nosso tempo. Uma é mais individual, mais humana; outra é mais objetiva, mais geral; mas todas estão penetradas do mesmo desejo, consciente, de encontrar um meio entre duas extremidades. Nessa direção trabalhamos e ali esta o supremo alvo da arte209.

E se posiciona diante do mesmo assunto em 1939, numa carta para Kandinsky:

Você, meu caro Kandinsky, é o mais feliz; você tem força para fechar-se ao mundo, em seu atelier, dedicando-se com tranqüilidade ao seu trabalho, considerando os problemas da arte como mais importantes que os assuntos do mundo de hoje, com os quais todos nós, querendo ou não, estamos estritamente ligados, e dos quais somos, infelizmente, como pessoas e como artistas, completamente dependentes210.

      

209

Segall apud CHIARELLI, 2008, p.22.

210

Em outras palavras, Segall acredita no compromisso entre artista e realidade, sendo que essa posição leva-o a não admitir a abstração total em seu trabalho, buscando com isso garantir maior clareza na comunicação de sua mensagem. Na citação seguinte é notável como, apesar desse compromisso do artista com sua época, a autonomia artística deve ser condição primeira de qualquer obra:

Vi o celebrado quadro de Picasso – Bombardeio de Guernica [sic]. Não me impressionou como esperava. Demais, tenho a impressão de que gorou a intenção do artista. Justamente porque teve uma intenção ideológica, por assim dizer. O quadro em apreço pretende ser mensagem contra o bombardeio de uma cidade aberta. Mas é obscuro, a intenção é muito subjetiva, não é clara. Prefiro muito mais sentir o drama nítido de um Van Gogh. Os seus depoimentos emocionais são claros e perceptíveis. Continuo, como sempre, fiel ao conceito que me impus: a arte não deve ter intenções outras que não a arte em si mesma. Ela não deve se colocar a serviço de idéias, nem ser trabalhada pelas convicções várias. Que os antagonismos se aproveitem dela, vá lá... Mas a arte, essa deve ser pura, independente e liberta de qualquer influência estranha211.

Essa concepção de Segall que alia compromisso do artista com a sociedade na transmissão da mensagem, um comentário social, ao espectador por meio de uma obra autônoma, no sentido de trabalho que também investiga possibilidades formais, corresponde à posição de Gomes Machado que, entretanto, já apóia, na época da escrita do ensaio sobre Segall, tanto a figuração expressiva como a abstração não-geométrica. A atuação do crítico nessa década confirma esse posicionamento: entre os artistas elogiados em seus artigos estão Fayga Ostrower, Manabu Mabe e Marcelo Grassmann212.