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Parte II barroco

2. Formação da cultura nacional

No item anterior, foi visto como Gomes Machado aprofunda-se nas várias teorias que discutiram o barroco com a intenção de elaborar sua própria abordagem, uma mescla dos pontos de vista formal e sociológico. Tal aprofundamento indica que o crítico se preparava para escrever seus futuros textos sobre o barroco no Brasil, período, para ele, de formação da arte no país.

O interesse pela idéia de formação é compartilhada por muitos intelectuais que buscaram encontrar um ponto de partida para a cultura e sociedade brasileiras. Nos anos 1930, surgem Casa Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Hollanda, grandes interpretações do processo formativo da sociedade brasileira, apesar do termo formação não constar nos títulos.

Já nos anos 1940 em diante, o elenco de trabalhos que faz uso desse conceito é vasto e diversificado: Formação Política do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., 1942; Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado, 1959; Formação Histórica do Brasil, de Nelson Werneck Sodré, 1962; Formação Política do Brasil, de Paula Beiguelman, 1967, ex- assistente de Gomes Machado que assumiu a cadeira de Política após a viagem do crítico para Paris, entre outros341.

Acompanhando essa abordagem disseminada entre os estudos sobre o país, o grupo Clima também vai se preocupar com o período de formação da cultura nacional. Dentre as várias contribuições nesse campo oferecidas pelos membros de Clima, Antonio Candido de Mello e Souza, crítico literário e professor de teoria literária, responsável, na época, pela seção de literatura da revista, foi aquele quem deixou uma obra científica de grande fôlego e principalmente, na qual estabelece com clareza os conceitos com os quais trabalha para formar um sistema literário brasileiro. Tais conceitos, que serão observados a seguir, facilitam a compreensão de seu método de trabalho. Candido iniciou a escrita de Formação da Literatura Brasileira em 1945, embora o tenha publicado apenas em 1959.

Em um trecho de “Literatura e Subdesenvolvimento”, Candido desvenda o sentido dessa busca pela formação da cultura:

      

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PRADO JR., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Martins, 1942; FURTADO, Celso.

Formação Econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959; SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. São Paulo: Brasiliense,1962; BEIGUELMAN, Paula. Formação Política do Brasil. São

Um estágio fundamental na superação da dependência é a capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciadas, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores. Isto significa o estabelecimento de que se poderia chamar um pouco mecanicamente de causalidade interna, que torna inclusive mais fecundos os empréstimos tomados às outras culturas.342

Se superar a condição de dependência cultural, de um país de passado colonial, é possível quando se produz tendo por norte paradigmas nacionais, então o fato de se delinear nossa própria produção, buscando entender o que ela significa em termos de reelaboração da herança européia e constituição de um cânone próprio, como faz Candido, é também vencer essa dependência ao fixar a tradição brasileira num estudo sistemático. Afinal, o próprio crítico literário baseou-se em interpretações da literatura brasileira anteriores para conceber sua própria história do processo formativo da literatura brasileira. Nesse sentido, conhecer sua própria cultura é assegurar que se ultrapassa a subordinação à cultura estrangeira.

Além daquela de Candido, a produção crítica dos outros dois amigos do grupo, Décio de Almeida Prado e Paulo Emilio Salles Gomes, responsáveis pelos setores de teatro e cinema da revista, respectivamente, também perseguiam a formação desses setores das artes brasileiras343. É ainda notável o esforço pela produção de textos que tivessem um sentido amplo e se articulassem de forma a traçar panoramas.

Segundo o crítico de teatro e professor João Roberto Faria, a crítica de Almeida Prado examina “praticamente toda a história do teatro brasileiro, desde suas origens mais remotas com os autos do padre Anchieta, até as manifestações mais recentes da dramaturgia da década de 1970344”. Para Faria, o Romantismo teria mais relevo entre os temas, pois Almeida Prado o       

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CANDIDO, Antonio. “Literatura e subdesenvolvimento”. Em: A Educação pela Noite e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006, p.184. Outro trecho elucida ainda a questão: “As nossas literaturas latino- americanas, como também as da América do Norte, são basicamente galhos das metropolitanas. E se afastarmos os melindres do orgulho nacional, veremos que, apesar da autonomia que foram adquirindo em relação a estas, ainda são em parte reflexas. No caso dos países de fala espanhola e portuguesa, o processo de autonomia consistiu, numa boa parte, em transferir a dependência, de modo que outras literaturas européias não metropolitanas, sobretudo a francesa, foram se tornando modelo a partir dos século XIX, o que alias ocorreu também nas antigas metrópoles, intensamente afrancesadas”. (Idem, p.182).

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Gilda de Mello e Souza, na época de Clima, Gilda de Moraes Rocha, orientou-se também para as artes plásticas. Entretanto, na revista, publicava contos e não possuía uma coluna fixa. Entre os colegas de formação, contando com o próprio Antonio Candido, seu marido, foi a única a encaminhar-se para o Departamento de Estética da Faculdade de Filosofia da USP. Sua crítica de viés ensaístico abrange temas diversos – cinema, moda, pintura, literatura. Há diversos estudos sobre o pensamento dessa intelectual, mas são pontuais detendo-se sobre alguns aspectos e temas. Exatamente por isso seria complexa a tarefa de uma análise comparativa entre seu pensamento crítico e aquele de Gomes Machado. Segundo depoimento de Antonio Candido para a autora, Gilda e Gomes Machado partilhavam idéias e um convívio no meio artístico, mas seria necessária uma pesquisa aprofundada dos textos da autora – e um levantamento do material que ainda pode estar disperso, apesar das coletâneas que existem hoje – para que se pudesse traçar um paralelo entre ambos. (Entrevista concedida em 30 jun. 2010).

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FARIA, João Roberto. Décio de Almeida Prado: um homem de teatro. São Paulo: Edusp, 1997, p.269. Ver: PRADO, Décio de Almeida. História Concisa do Teatro Brasileiro: 1570-1908. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.

via como o marco inicial de um processo, a saber – a constituição de um sistema do teatro brasileiro:

Em outras palavras, é no Romantismo que o teatro brasileiro se constitui como um sistema integrado por autores, atores, obras e público. Desse modo, à semelhança de seus companheiros de geração, Antonio Candido e Paulo Emilio Salles Gomes, que estudaram o processo formativo da literatura e do cinema em nosso país, Décio de Almeida Prado procurou fazer o mesmo com o teatro, investigando o primeiro momento – ou o que Antonio Candido chamaria de “momento decisivo” – em que houve entre nós as condições intelectuais e materiais que puderam proporcionar uma continuidade fecunda do trabalho cênico345.

Já a crítica de Salles Gomes sobre o cinema brasileiro vai na mesma direção, como informa Ismail Xavier, observando-a dentro do quadro da revista346.

Desse modo, observa-se como o grupo de Gomes Machado estava envolvido com a idéia de formação e mais: como, fazendo uso do estudo desse momento de gênese, procuravam conceber um sistema cultural brasileiro. Entretanto, como Antonio Candido, entre todos os integrantes de Clima, foi aquele que alcançou os melhores resultados ao pensar a questão da formação no âmbito da literatura, examinar seu posicionamento metodológico em comparação com aquele desenvolvido por Gomes Machado visa atingir uma compreensão mais dinâmica do pensamento gomesmachadiano. É nesse sentido então que, antes de abordar o pensamento de Gomes Machado sobre o tema, discutir-se-á brevemente o método utilizado pelo crítico literário.