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15 ALENCAR, José de op cit., p 208.

16 FREYRE, Gilberto. Prefácio. In: Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936.

ográficas que se tornarão recorrentes durante gerações no pensamento social do país.18 Essas relações são surpreendidas principalmente nas demonstrações de gratidão do escravo para com o senhor, e deste para com seus subordinados, ou seja, na observação e na objetivação que os autores fazem do "sistema de deveres e expectativas" que fundamentaria a escravidão19 - sistema, efetivamente, media- do pela violência, quer entre senhores e escravos ou entre homens livres.20 A cres- cente desagregação dessa ordem e as tensões geradas por ela ramificam-se na es- trutura das tramas romanescas, reclamando os interditos aos escravos na passagem da experiência; ao mesmo tempo, promovem uma estética da exclusão, formali- zando uma série de estereótipos sobre o negro e sua condição étnica e social: o escravo nobre, o negro vítima, o serviçal, o demônio, o pervertido, o sensual e outros.21

A mocidade de Trajano, de modo exemplar, é profundamente assombrado

por estes estereótipos. É justamente o reconhecimento da gratidão do cativo como contrapartida da benevolência do senhor que multiplica os atritos entre um e ou- tro, influindo na administração dos negócios da fazenda, na sanidade mental do

18 No início dos anos 1960, a idéia de que as relações entre senhores e escravos haviam sido

pautadas pelo paternalismo benevolente dos senhores e que esta característica havia dado origem a uma democracia racial no país foi duramente denunciada e questionada por pesquisas históri- cas e sociológicas de grande envergadura. LARA, Silvia Hunold. Novas dimensões da experiên-

cia escrava no Brasil. Comciência: Revista Eletrônica de Jornalismo Científico. SBPC/Labjor, no. 49, nov./2003 (O Brasil negro).

19 Como na tese de Eugene D. Genovese, "A terra prometida: o mundo que os escravos criaram", RJ, 1988.

20 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. op. cit., 1983.

21 Para uma caracterização desses estereótipos na literatura brasileira, ver PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. Estudos Avançados. São Paulo, n. 50, 2004 (O Negro no Brasil). O personagem negro ou mestiço de negros caracterizado como tal

ganha presença ora como elemento perturbador do equilíbrio familiar ou social, ora como negro heróico, ora como negro humanizado, amante, força de trabalho produtivo, vítima sofrida de sua ascendência, elemento tranqüilamente integrador da gente brasileira, em termos de manifestações

seu proprietário, até redundar no debate sobre o mal produzido pela instituição da escravatura na sociedade brasileira. De início, é D. Amélia, a tísica esposa do co- mendador Roberto Sobral, senhor da fazenda da Mata Grande, quem promove o equilíbrio dos deveres e expectativas entre senhores e escravos.

Quando os escravos, que iam ou vinham dos trabalhos da roça, passavam por junto dela, todos tiravam submissos o chapéu e pediam-lhe a benção, uns de mãos postas, outros estendendo o braço como é de uso nas fazendas. Sempre daqueles lábios descorados saía alguma palavra de meiguice para esses pobres entes que ela, como filha e esposa de fazendei- ro, nivelava com os seres brutos da natureza. Por bondade de coração, era na verdade incapaz de maltratar seus escravos quanto de fazer mal a um animal qualquer.

Supunha-os felizes pelo fato único de terem saúde robusta e senho- res humanos, pois nunca pensara nas aspirações que essas criaturas pu- dessem ter pela liberdade, colocando-se acima do boi de arado ou do ca- valo de tiro. Tratar bem a seus escravos, para ela, tão pura, tão justiceira, nada mais era do que um preceito de moral.22

A sensibilidade da esposa de Sobral, entretanto, menos que um mérito da sua pessoa, era um decoro que as mulheres abastadas deviam sustentar diante da sociedade. Como filhas e esposas de fazendeiros escravocratas, bem lhes cabia a expressão desses sentimentos piedosos à sorte dos cativos, pois em sendo mulhe- res, também eram hierarquicamente inferiores na ordem patriarcal. A mulher de um senhor, exemplar e ideal, era cristã e humana, protetora dos direitos dos mais desafortunados.23

Com o desaparecimento da senhora logo no início do romance, a soberba situação da fazenda começa a se complicar. A dificuldade maior do comendador é

22 TAUNAY, Visconde de. A mocidade de Trajano. 2ed. São Paulo: Academia Paulista de Le- tras, 1984, p. 24-25.

23 AZEVEDO, Célia M. Marinho de. Irmão ou inimigo: o escravo no imaginário abolicionista dos Estados Unidos e do Brasil. Revista USP. São Paulo, n. 28, dez./95-fev./96, p. 96-109 (Dossiê Povo Negro - 300 anos).

dar trato eficiente aos escravos domésticos, principalmente as escravas. Sem a habilidade maternal da esposa, também não consegue ser paternal dentro de casa. Não tem astúcia, não usa de ardis nem de favores. Sofrendo com a aparente con- fusão de papéis em que se vê submetido, Sobral argumenta com o filho Trajano:

[...] É um suplício horrível. O tormento a que me sujeitam estes

servidores forçados e indignos esgota-me a paciência, aniquila-me a exis- tência. Quando tua mãe era viva, repartíamos o ingrato trabalho: eu to- mava conta dos escravos, dirigia-os, castigava-os; ela se ajeitava com as escravas. Hoje tudo isso me toca. Não sei se deveras enlouqueço. Meu gê- nio está mudando. Sinto que vou me tornando mau, caprichoso e que, con- tinuando assim, irei direitinho para o inferno, se é que na terra já não es- tou nele.24

A escravidão, para Sobral, é um escândalo que atenta contra a humanida- de, mas não porque os homens têm os mesmos direitos, e sim porque em se de- gradando o negro, o branco - que deveria ser superior - se degrada também. Dian- te desse suplício, que acorrenta a ambos, o fazendeiro refuta a ignomínia da escra- vidão com um argumento teológico, próprio à ocasião: Deus abençoou o trabalho

que o homem impõe ao cavalo ou ao boi. Deus amaldiçoa o trabalho do escravo,

nivelando o opressor com o oprimido. Deus não quer a escravidão...25

No entanto, como abolicionista brasileiro, Sobral encara o escravo negro como sendo o mais ardiloso e ameaçador dos inimigos. Obrigado a conviver com ele debaixo do mesmo teto, toma-o como um perigo constante à família senhori- al.26 Trajano, também abolicionista, reafirma temor idêntico numa carta ao pai:

24 Idem, p. 46.

25 Idem, p. 105.

26 O escravo, justamente por ser escravo - ou seja, um homem privado de razão, e portanto redu-

zido à condição de besta - e também por ser descendente de uma raça radicalmente distinta da raça do senhor, não podia ser nada mais do que um inimigo da classe dos poderosos. Em outras palavras, enquanto para os abolicionistas americanos o senhor personificava o mal, para os abo- licionistas brasileiros, o mal era o escravo. AZEVEDO, Célia M. Marinho de. op. cit., 1996.

Acredito que o Brasil confia por demais nos seus escravos; que os fazendeiros

formam uma aristocracia obcecada por princípios garantidos pela nossa lei soci-

al, mas que são moralmente falsos...27 Desprovidos de liberdade, portanto bestifi-

cados e irracionais, os cativos ou se voltam contra a mão do senhor, violentos e cruéis, ou se escondem debaixo dela, dóceis e submissos.28

Humildade, obediência, fidelidade: sobre esse tripé vai ser ence- nada a vida desses homens, mercadorias muito particulares pois, apesar de tudo, os compradores-proprietários terminam sempre por se apercebe- rem de que os escravos também são homens e uma certa espécie de inti- midade se pode estabelecer com eles, se são fiéis, obedientes, humildes. A inserção social do escravo, sua aceitação pelos homens livres numa soci- edade fundamentada no trabalho servil, dependerá estreitamente da res- posta que o trabalhador-escravo dá a seus senhores no plano da fidelida- de, da obediência, da humildade. Essas três qualidades essenciais confor- mam a personalidade do "bom escravo"[...].29

A ruptura do "sistema de deveres e expectativas" transforma-se em inimi- zade de classe, e de raça, e se consuma na traição. No romance de Taunay, é a traição de uma escrava que empurra Trajano para sua grande desilusão amorosa, motivando todo o seu sofrimento e a sua busca. Enamorado de uma vizinha, am- bos são manipulados pela mucama dela, que surge em cena como uma mulata sensual, ...bonita de rosto, engraçada, viva, astuciosa, faceira nos modos...30, para logo se transformar em "ente de condição ínfima, de maus instintos, pérfida, de- pravada, caprichosa".31 Por ódio e ressentimento, a mucama atraiçoa sua sinhazi-

27 TAUNAY, Visconde de. op. cit., 1984, p. 114.

28 É interessante observar que a imagem recorrente do escravo bestial podia apontar tanto para

o escravo passivo - aquele que vivia tão resignado quanto um vegetal - quanto para o escravo violento - aquele a quem ninguém conseguiria impedir de cometer os mais bárbaros crimes.

AZEVEDO, Celia M. M. de. op. cit., 1996.

29 MATTOSO, Katia M. de Queirós. O africano adapta-se ao Brasil e aos brasileiros. In: Ser

escravo no Brasil. 2ed. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 102.

30 TAUNAY, Visconde de. op. cit., p. 76. 31 Idem, p. 83.

nha e seduz a Trajano, atribuindo-lhe um filho. Ardilosa, usa de risos e sorrisos, dá muxoxos, faz ar de mofa, encena amuos, solta galhofas, é meiga, gentil, confi- ante. Usa desses expedientes todos para atormentar o rapaz e vingar-se de sua sinhá, que a tem como estimada companheira, pois criadas juntas desde a infância. Por fim, a mulata é acusa de infâmia, açoitada, expulsa da casa e vendida.

É ainda a traição de um "mulato de confiança" que desencadeia o recru- descimento no trato com os escravos. Sobral se indigna profundamente quando flagra-o roubando sacos de café maduro, que iam ser trocados por aguardente. [...]

Um mulato que é cria de casa, que me merecia estima... Dei-lhe uma sova tre-

menda..., confessa o fazendeiro ao filho.

Sim, quase matei-o. Cão... que devia guardar-me a porta e era o primeiro a saquear-me. Fez jus à morte. Vendi-o logo por um conto e du- zentos. Valia contudo muito mais. Nele perdi talvez oitocentos mil réis, mas embora! Vi-me livre daquele infame!32

O episódio do roubo, porém, não ilustra apenas a condição volúvel do ne- gro cativo. Ele dá margem para esclarecer as relações de poder travadas entre os escravos, ao mesmo tempo que serve para reafirmar as observações mais generali- zadas sobre as vicissitudes da instituição escravista, ou seja, a violenta reprodução dela na hierarquia de classes.33 O "mulato de confiança", pois, só é flagrado rou-

32 Idem, p. 47.

33 Da análise dessas vivências emerge o retrato de uma classe senhorial prepotente e freqüente-

mente arbitrária, mas sobretudo ardilosa: uma classe que brande a força e o favor para prender o cativo na armadilha de seus próprios anseios. Dentro de certos limites, os senhores estimulam a formação de laços de parentesco entre seus escravos e instituem, junto com a ameaça e a coação, um sistema diferencial de incentivos - no intuito de tornar os cativos dependentes e reféns de suas próprias solidariedades e projetos domésticos. SLENES, Robert W. Senhores e subalternos no

Oeste paulista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da vida privada no Brasil:

bando porque outro mulato o denuncia ao senhor. Esta lealdade é retribuída com o poder da feitoria.

Vitório, o mulato, investido repentinamente de poderes quase dis- cricionários, assinalara-se logo no seu exercício por extrema rispidez, que muito regularizara o serviço. Sobral o ia cada vez mais estimando, e a es- cravatura todos os dias, todas as horas criava-lhe mais ódio. [...] Depres- sa contraíra hábitos de mando e tão submisso era para com o seu senhor quanto rude ao interpelar os seus, há pouco, companheiros de enxada ou de machado.34

No extremo da traição se encontra a lealdade. Embora aos senhores fosse facultada a transgressão impune dos laços afetivos que os ligavam aos seus escra- vos, pois efetivamente se dispunha deles como mercadorias - isto é, sujeitos valio- sos, mas prescindíveis enquanto indivíduos -, dos escravos se exigia uma fidelida- de própria dos animais domésticos, aos quais se dão tratos, mimos e ração. Assim, é por afeição e lealdade que pai Vicente, velho escravo mina feiticeiro, alerta Tra- jano sobre uma emboscada, salvando-lhe a vida; é por ela ainda que se mete no quarto da ardilosa madrasta do rapaz, reclamando vingança, e mata-a a punhala- das, suicidando-se depois.

Nesse círculo de ferro imposto aos escravos, a lealdade gera a vingança. Atados por uma corrente de solidariedades, obrigam-se a justiçar a desonra que macula a autoridade paternal de quem os protege, fazendo-se de instrumentos pu- nitivos para resguardar uma reputação que não lhes pertence. Ao se prestarem a esse papel vingador, não hesitam em se livrar de suas próprias vidas para cumprir sua missão. Os senhores, alheios aos extremos dessa lealdade, contabilizam a per- da - do trabalhador e do dinheiro - e lamentam as tristes peias da escravidão.