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47 RIBEIRO, Júlio op cit., p 84.

margens de uma cultura e de uma etnia marginalizada.48 Negra e escrava, essa cultura, seja em sua dimensão política seja religiosa, seria negada pelo discurso literário, até que uma "literatura do negro" aparecesse para se comprometer com ela. 49

Mas nesse momento, ainda não estão firmadas as cores de um paradigma africanizante, como houve um "paradigma tupinizante", capaz de causar "estra- nhamento" ao idioma vernáculo, abrasileirando-o; capaz de fundamentar uma ver- dade épica projetada sobre um fundo africano mitológico e lendário, até a visuali- zação de sua "infância histórica"; capaz, enfim, de servir como imagem para uma prosódia e um ritmo romanesco, próprios a uma "forma de expressão" nacional.50 No romances, ao contrário disso, o africano é figurado contando apenas "histórias da carocha" em sua "língua bárbara".

Nessa ficção sobre o negro, a razão narrativa se esforça por interditar o

sobrenatural, o bárbaro, o imoral, acomodando-os aos limites do verossímel, ou subordinado-os à realidade patriarcal. O ficcional pressupõe um estranhamento do autor para com a senzala, da casa-grande para com os escravos, dos escravos para com o leitor, para logo em seguida se ajeitar à narrativa e ao discurso do romance. Mas há passagens que escapam à submissão da forma, deixando que os restos de

48 O discurso médico acadêmico tratou de desqualificar as rezas e feitiços dos curandei- ros/feiticeiros que, efetivamente, as relacionavam à sua compreensão dos males do corpo. Para eles, as moléstias e a sua cura tinham origem sobrenatural. Os escravos de origem banta, por e-

xemplo, compartilhavam a idéia de que o desequilíbrio, o infortúnio e a doença seriam causados pela ação malévola de espíritos ou de pessoas, freqüentemente através da bruxaria ou da feitiça- ria. PIMENTA, Tânia Salgado. Terapeutas populares e instituições médicas na primeira metade do

século XIX. In: CHALHOUB, Sidney et al. (org.). op. cit., p. 314. 49 PROENÇA FILHO, Domício. op. cit., 2004.

50 Conforme o "paradigma tupinizante" idealizado por J. de Alencar. CAMPOS, Haroldo de. "Ira- cema": uma arqueografia de vanguarda. Revista USP. São Paulo, n. 5., mar-mai/1990, p. 67-74 (Dossiê Cidades).

uma voz muda, de gestos não compreendidos, caiam das páginas para se mostra- rem como vestígios de uma historicidade desgalhada do tronco senhorial.

Páginas mudas

O romancista, quando se permite entrar em território negro, é como se pi- sasse um espaço indômito, um solo incandescente capaz de desarticular a sua nar- ração, emudecer o seu discurso. Na senzala, livres do tempo do senhor, os escra- vos tem expressões corporais que não se deixam descrever, entoam cantos que não se pode cantar, dançam com passos que não se consegue seguir. Ao adentrar este espaço, o romancista não faz etnografia, não documenta, não se deixa contagiar ao som dos tambores, do jongo.

Em tôrno da fogueira, já esbarrondada pelo chão, que ela cobriu de brasido e cinzas, dançam os pretos o samba com um frenesi que toca o delírio. Não se descreve, nem se imagina êsse desesperado saracoteio, no qual todo o corpo estremece, pula sacode, gira bamboleia, como se qui- sesse desgrudar-se.

Tudo salta, até os crioulinhos que esperneiam no cangote das mães, ou se enrolam nas saias das raparigas. Os mais taludos viram cam- balhotas e pincham à guisa de sapos em roda do terreiro. Um dêsses corta jaca no espinhaço do pai, negro fornido, que não sabendo mais como des- conjuntar-se, atirou consigo ao chão e começou de rabanar como um pei- xe em sêco.51

Em outro romance, em outro tempo, em outra fazenda e senzala, o autor ainda permanece em idêntica posição, sem fôlego, estático e estarrecido com o espetáculo do "samba", do qual só pode falar sobre ele, e não dele.

No terreiro, varrido, em frente às senzalas, uma fogueira crepitava alegre, espancando a escuridão com seu brasido candente, com suas lín- guas de chamas multiformes, irrequietas.

Os negros tinham acabado uma carpa [capina] nesse dia, e o coro- nel dera-lhes permissão para folgar, mandando ao mesmo tempo que o administrador lhes fizesse uma larga distribuição de aguardente.

Ao som de instrumentos grosseiros dançavam: eram esses instru- mentos dois atabaques e vários adufes. Acocorados, segurando os ataba- ques entre as pernas, encarapitados, debruçados neles, dois africanos ve- lhos, mas ainda robustos, faziam-nos ressoar, batendo-lhes nos couros, re- tesados, às mãos ambas, com um ritmo sacudido, nervoso, feroz, infrene.

Negros e negras formados em vasto círculo agitavam-se, palmea- vam, compassadamente, rufavam adufes aqui e ali. Um figurante, no meio, saltava, volteava, baixava-se, erguia-se, retorcia os braços, contorcia o pescoço, rebolia os quadris, sapateava em frenesi indescritível, com uma tal prodigalidade de movimentos, com tal desperdício de ação nervosa e muscular, que teria estafado um homem branco em menos de cinco minu- tos.52

No romance, o "samba" finda-se em si mesmo, não sendo nem cerimônia nem ritual. É talvez a mudez diante da embriaguez causada pela catarse da liber- dade momentânea concedida pelo senhor, ou antes a condenação da consumação degradada do tempo cedido aos escravos, quando a menção aos tambores e corpos frenéticos junta-se a presença da cachaça. Entretanto, desses tambores e desses corpos se depreendem sensações que o autor não consegue suportar.

Ao cheiro da terra pisada, de cachaça, de sarro de pito, sobreleva- va dominante um cheiro humano áspero, aliáceo, um odor almiscarado forte, uma catinga africana, indefinível, que doía ao olfato, que cortava os nervos, que entontecia o cérebro, sufocante, insuportável.53

O "samba", como o observa o romancista, é um jogo, um brinquedo primi- tivo, e como tal, suspenso no tempo, intenso, excitante, fascinante ou, segundo suas palavras, "frenético, infrene, delirante". Circunscrito à senzala, sua observa-