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CAFEÍNA, CAFÉ E RUÍNA: GRANDEZA E DECADÊNCIA

66 SÜSSEKIND, Flora op cit., 1987.

CAFEÍNA, CAFÉ E RUÍNA: GRANDEZA E DECADÊNCIA

O ciclo vital

Qual era a cor do Brasil? Para muitos homens de letras, dar cabo desta questão respondia pela existência mesma de uma nação brasileira. A "cor local" não era apenas um critério de definição da nacionalidade literária do país, mas um axioma que arrastava consigo perspectivas históricas e estéticas. O que pintar e como pintar retratos brasileiros eram fundamentos paradigmáticos, pois mostra- vam, mais do que a face de uma identidade, os contornos indefinidos e conflituo- sos de uma pátria inacabada. Se a confecção de quadros coloridos que bem repre- sentavam uma arte nacional ocupava o talento de vários artistas, também revelava paisagens e personagens que ofuscavam e diluíam o brilho das tintas.

Esse paroxismo, que perseguiria por longo tempo a trajetória literária no país, dizia mais respeito às vicissitudes da história nacional do que à literatura propriamente. Desde a remissão a obscuros cronistas até aos antigos fatos remon- tados pelos escritores, a construção de uma vida literária no Brasil era interpretada como formação de uma nacionalidade, de luta por uma autonomia e reconheci- mento de uma tradição própria. Entendida desse modo, a literatura feita no país encaminhava-se continuamente em uma busca exaustiva pelas suas origens e suas cenas de fundação.1 Uma obra de todo brasileira, portanto, tinha o Brasil como seu grande tema, e não necessariamente as proezas da arte.

1 Fundação, em SÜSSEKIND, Flora. Cenas de fundação. In: FABRIS, Annateresa (org.). Moder-

A nacionalidade literária era um programa, e também uma missão, avida- mente perseguida. O drama literário, e nacional, no Brasil, se impôs com a neces- sidade de distinção entre o que era indígena e o que era estrangeiro, local x aliení- gena - um espectro atávico trazido pela independência política.2 O estatuto de na- ção, que implicava a existência de povo, cultura e história, foi transformado na justificativa lógica de um percurso literário, como se desde a sua colonização já estivesse inscrito um projeto artístico particular. Desse modo, literatura no Brasil era aquela que falava da existência de um povo, com sua cultura e sua história.3

Em uma obra dotada de espírito nacional, presumia-se a pintura dos cos-

tumes, a luta das paixões, os quadros da natureza, ...o estudo dos caracteres.4 Em

suas páginas deviam confluir a viva exaltação do passado, no que havia de lendá- rio e mitológico; o culto às tradições, que podiam pertencer às décadas mais re- centes5; a extroversão das paisagens naturais, em sua dimensão pictórica e distan- ciada; a atenta descrição de costumes e a transcrição de uma gramática própria, forjada pela língua brasileira.

Essa literatura tinha de ser, e o foi, um amplo campo de exercício para diversas formas de representação de uma nacionalidade. Debaixo de sua rubrica os motivos geográficos encontraram abrigo, o ensaio sociológico, o registro an-

2 No começo do século atual, com as mudanças e reformas que tem experimentado o Brasil, novo

aspecto apresenta a sua literatura. Uma só idéia absorve todos os pensamentos, uma idéia até então quase desconhecida; é a idéia da pátria; ela domina tudo, e tudo se faz por ela, ou em seu nome. Gonçalves de Magalhães, "Discurso histórico sobre a literatura no Brasil", 1836.

3 Deus... fade bem [o Brasil], para que os poetas, em vez de imitarem o que lêem, se inspirem da

poesia que brota com tanta profusão do seio do próprio país e sejam, antes de tudo, originais - americanos. Francisco Adolfo de Varnhagen, "Ensaio histórico sobre as letras no Brasil", 1847.

4 Machado de Assis, "Instinto de nacionalidade", 1873.

5 Tradições inventadas, em HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

tropológico, a curiosidade etnográfica, a reflexão filosófica, a origem filológica. No momento mesmo que a idéia de literatura moderna estava sendo inaugurada, não sendo mais antiga que grande parte dos Estados nacionais, sua razão era tanto mais autêntica quanto mais próxima fosse às coisas do país.

Tudo isso foi, posteriormente, atribuído às peculiaridades com que o ro- mantismo foi desenvolvido no Brasil. No entanto, mais que uma influência literá- ria, ele se deu muito além da produção de romances, poemas e peças teatrais. Nu- ma ação precursora, forneceu as linhas gerais com as quais deviam ser desenhadas as singularidades da identidade brasileira, assim como serviu para representar uma capacidade estética "à altura" dos seus criadores europeus. Era a progressiva cons- tituição do país como um Estado nacional que devia distanciar, e ao mesmo tempo equiparar, as letras brasileiras à literatura dos povos ditos cultos, civilizados. Eram elas que intentavam criar as particularidades que distinguiam o país das outras nações soberanas, assim como as qualidades que o faziam próximo delas.6

Embora decretado morto enquanto ideal nos anos 1870, o romantismo deu autoridade para os escritores brasileiros descreverem, com uma visão colorida, a vida brasileira. O influxo de novos paradigmas de conhecimento e a adaptação local às novas manifestações estéticas - ambos d'além mar -, não comprometiam a vontade dos artistas do país em narrar, do modo mais brasileiro possível, as suas paisagens, paixões e costumes. As diferentes soluções de linguagem e de narrati- va, as teorias e os conceitos em voga seriam, em grande medida, retrabalhados

6 Dialética do local e do cosmopolita, em CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In: Literatura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1965, p. 129-165.

dentro do programa da nacionalidade literária7, perfazendo novamente o movi- mento de distanciamento e aproximação com os padrões literários europeus.

Este movimento de autonomização e hierarquização, atrelado às novas perspectivas críticas e de criação, formavam certas convenções para a avaliação da literatura do país. Para muitos críticos literários, as letras brasileiras deviam ser uma epifania da história, local e universal. Sua importância podia ser medida em relação direta à relevância dos temas históricos que tratava, ou das proposições científicas que continha, sendo a ciência, como a história, parâmetro, inspiração e juízo da literatura.8 O verossímel, o que estava situado próximo à realidade, devia ser tão mais literário quanto brasileiro fosse.

Diante da urgência do problema, a compreensão da história a partir da ati- vidade artística tornava-se também um programa, uma missão articulada em nome de um projeto nacional. De maneira própria à época, o histórico era reclamado nas obras de modo similar como se compunham as genealogias, como se elaboravam as cronologias, se estabeleciam os fatos políticos marcantes, as tradições, o caráter dos tipos nacionais. História de extração genética, moralizante, de cunho educati- vo, própria à confecção do Bildungsroman, o romance de formação.

7 Esgotado o romantismo como fonte de inspiração literária, não por isto desapareceu a preocu-

pação com a busca do caráter nacional da literatura brasileira. Os críticos da fase naturalista e positivista seguiram na esteira dos românticos, sem embargo da diversa orientação doutrinária que os norteou. COUTINHO, Afrânio (org). Introdução geral: a crítica literária no Brasil. In: Ca-

minhos do pensamento crítico. Vol. 1. Rio de Janeiro: Pallas; INL-MEC, 1980, p. 13-19. Identi-

dade nacional, literatura e estética, em SÜSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Uma ideologia estética e sua história: o naturalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.

8 O futuro deste país deve estar nas convicções sinceras, nos caracteres intransigentes, sacrifica-

dos a honra, disseminados por aí além, desdenhados pelos poderosos do dia; e que ousam dizer a verdade ao povo, como ao rei; não a pretendida verdade dos declamadores; mas a verdade da história, a verdade da ciência. Silvio Romero, "A função da crítica", 1880.

Este posicionamento frente ao passado, mesmo quando interditado pelas motivações presentes, permaneceria firmemente atrelado ao projeto de uma litera- tura brasileira. As implicações do meio, do momento ou da raça, conceitos com os quais passariam a se comprometer artistas, críticos e leitores - em renúncia aos ideais românticos -, não iriam alterar as expectativas quanto às possibilidades re- dentoras que a novidade nacional proporcionava. Do mesmo modo, emancipação e independência política não implicavam necessariamente em ruptura, cisão. Ain- da perseguiam-se os padrões de civilização já instaurados pelos portugueses9, as- pirava-se à semelhança, em condutas e costumes, aos europeus.

Civilizar não significava apagar o passado dependente, colonial, e o que de mais promissor ele continha. A inspiração edênica, os motivos paradisíacos, os mitos doirados, que durante séculos assombraram os colonizadores, encontravam justo abrigo sob o manto da nacionalidade. Diante da nova nação, a nova literatura ia reafirmando potencialidades virtuais extraídas de antigas idealizações, fazia convergir toda a grandeza do país no porvir, naquilo que estava predestinado a se cumprir.

Essa condição de "país novo", de possibilidades latentes e grandiosidade ainda não realizada, dominará por largo período a atividade literária no Brasil. Não só um "estado de euforia", de exaltação das virtudes nacionais e celebrações ideológicas, mas também uma maneira de explicar e um modo de entender o ad- vento da nacionalidade. Seria um estágio de desenvolvimento, ou processo histó-

9 GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 1, 1988, p. 6.

rico, que corresponderia à "fase de consciência amena de atraso". Intrínseco a ela, e já próximo ao fim da primeira experiência republicana, irá emergir o "país sub- desenvolvido", desencantado, miserável e desbotado, "fase de consciência catas- trófica do atraso".10

A perspectiva de uma identidade particular ainda seria dominante: atendia- se aos apelos da tradição, da busca do caráter nacional, da territorialização paisa- gística e da formação de uma língua autônoma. Mas agora a literatura estará re- vestida de conceitos críticos e científicos, que desacreditavam o ornamento e o exotismo do nativismo ingênuo. Uma literatura exercitada como reflexão dos es- tados sociais e culturais do brasileiro, e não tanto como arte transcendente. Litera- tura que não se fará tanto mais em nome de uma nacionalidade, mas apesar dela.

O local e o nacional

Narrar o Brasil, do ponto de vista brasileiro, não era enxergar toda a nação num lance d'olhos. Apreender as coisas do país de uma só vez, como uma totali- dade física e cultural, não era apenas uma ambição descomedida, mas uma contra- riedade aos propósitos da nacionalidade literária. Tomar o Brasil como um todo era renegar a origem telúrica, a memória das gerações, a especificidade que mar- cava o nascimento de cada brasileiro. Brasil era uma abstração a se pensar, um projeto a se firmar - uma nação que renascia perenemente em cada quadro da na- tureza pintado, em cada costume recolhido pelo olhar transeunte do literato.

A emergência da nacionalidade fundava-se, desse modo, na caracterização e na promoção das identidades regionais, num processo relativo à formação cultu- ral do Estado nacional. Longe de ser um espaço geográfico circunscrito por limi- tes naturais ou políticos, a região era tomada como um campo de disputa, entre saberes e poderes, que promoviam o trânsito simbólico do singular ao universal.11 Ao narrarem as peculiaridades do folclore, o caráter da população e a força das tradições, cada autor atestava a hegemonia de sua região como a mais intensamen- te, ou legitimamente, brasileira. A regionalidade do discurso almejava a universa- lidade da nação, isto é, a identidade regional fomentava de modo irredutível a per- cepção fragmentária da nação, do mesmo modo que servia para forjar a unidade dela.

Numa dialética entre o local e o nacional, o país tornava-se mais grandio- so, de fronteiras incomensuráveis e paisagens infinitas se descrito a partir de um lugar, se visto do habitat de um ser nacional, do seu quintal ou de sua janela. E- ram as paixões e os dramas desse sujeito, resgatado à cultura civilizada pela ob- servação de um narrador inebriado de nativismo, que fazia o gosto dos leitores, ainda ciosos da sua nacionalidade.

A busca da identidade através do espaço físico, se era modo ancestral de evocar o sentimento de pertença em relação a uma comunidade e a uma cultura, havia fornecido às primeiras gerações de brasileiros, de diferentes regiões, a moti- vação primordial para se acreditar no futuro próspero do país. A descoberta cientí-