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34 TAUNAY, Visconde de op cit., p 61.

A inimizade de classe, e de raça, se justificava as atitudes imorais dos es- cravos aos olhos dos fazendeiros, pode então ser literalmente naturalizada. Nem a tolhida imaginação romanesca - que ao escravo atribui uma subjetividade frágil e uma personalidade volúvel - nem a razão histórica.- que reconhece o secular em- brutecimento do negro e sua redução à condição de fera - explicam mais o perigo e a hostilidade que a escravidão impõe aos lares senhoriais. O ódio existe porque existe diferenças de classe e raça, ou seja, há sempre que se aguardar uma atitude reativa, brutal, de quem está humanamente submerso, bestificado por outro ho- mem.

Em A carne, o ódio do homem negro ao domínio do senhor branco é re- presentado na figura do feiticeiro Joaquim Cambinda, velho africano35 "inútil para o trabalho". Durante dez anos, ele usa de seus conhecimentos mágicos para preju- dicar ao seu senhor. Ministra aos escravos suas beberagens venenosas a base de sementes de datura, raízes de cicuta, cabeças de serpente. Ao ser apanhado, con- fessa ter matado a dezessete crioulinhos, a Maria Bugra, a Maria Baiana, Antônio Mulato, Chico Carreiro, e uma outra dúzia de negros mais, todos "irmãos de raça".

Não compreende o coronel Barbosa a maldade do negro, pois trata-o como a um forro, cedendo-lhe abrigo, comida e roupa, sem exigir serviço algum. Sinhô

é bom para mim, é verdade, mas sinhô é branco, e obrigação de preto é fazer mal

a branco sempre que pode, declara Cambinda. Mas todos esses pobres-diabos

eram pretos como você: para que os matou?, indaga, incrédulo, o coronel. Para

35 Cambinda, variação de Cabinda, povo banto dessa região, em Angola. Em "As religiões no Rio" (1905), João do Rio comenta que os cambindas são menosprezados por africanos remanes- centes de outras nações, pois são negros que "ignoram a própria língua", mudam o nome "aos santos dos orixás", etc.

sinhô ficar pobre: eu queria ver sinhô se servir por suas mãos,36 responde-lhe o

feiticeiro, para logo depois ser hostilizado e atirado ao fogo pelos familiares dos escravos mortos.

O africano, assassino de seus irmãos de raça e condição, não cuidava de levar seu senhor à morte, mas antes de infligir-lhe a pior das humilhações: a ne- cessidade do trabalho. Não sendo menor o sofrimento, o bruxo havia já maldito contra o corpo e a saúde do coronel octogenário, lançando-lhe a praga de um dolo- rido reumatismo, como também o entrevamento que prostrava constantemente a senhora Barbosa na cama. A ruína dos fazendeiros devia começar pelos seus cor- pos.

História desencantada

Joaquim Cambinda é a figuração mais hostil desse personagem obrigatório nos "romances de casa-grande e senzala", o "preto velho". A princípio, ele dá uma nota pitoresca na paisagem social do latifúndio escravocrata, ao lado do pajem, da mucama, dos escravos do eito. Mas apenas sua presença é capaz de gerar certo clima de mistério, colocando em suspenso ações inexplicáveis e infundindo um horror sobrenatural a certos locais. Antes, porém, de se manifestar na trama roma- nesca, cruel ou docilmente, ao "preto velho" é dada uma significação que, para além do estereótipo, tem reconhecida proeminência no universo escravocrata, as- cendendo da senzala à casa-grande, e desta para a sociedade mais ampla.

Ao "preto velho" se associa uma série de funções e papéis que tornam sua figura quase onipresente na vida social: é sacerdote, curandeiro, conselheiro, feiti- ceiro, líder político e cultural. Em grande medida, é portador de uma experiência que se amplifica na medida em que determina também os fundamentos de uma memória - da escravidão, da religião, da cultura popular - e de uma prática - culi- nária, médica, afetiva.37 É uma entidade, um ser encantado aparecendo assombro- samente nas narrativas romanescas. Uma passagem entre este e o outro mundo.

Transplantado para o Brasil e atuando ocasionalmente no papel de sacerdote, apresenta-se a figura do "feiticeiro" africano conhecido dos es- cravos e das pessoas livres que o consultavam pelos nomes de quimban- deiro, cangirista, curandeiro, ou benzedor. Como fonte de conselho para os escravos; como ponto focal importante de resistência ao sistema da es- cravatura impôsto pelo senhor; e como ser mortal pelo intermédio do qual era estabelecido o contacto com entidades sobrenaturais capazes de influ- enciar as atividades humanas, tinha o quimbandeiro que existir sub rosa.38

Em O tronco do ipê, o negro velho que compõe uma das faces dessa figura

é Pai Benedito. De Alencar, ele recebe uma personalidade nobre, é valente, leal e de uma docilidade comovente, muito ao gosto senhorial:

Pai Benedito [...] era um feiticeiro de bom coração. Em vez de usar de seu poder para soprar intrigas e desavenças, ao contrário servia de conciliador em tôdas as brigas que se davam entre os pretos da fazenda; aconselhava os parceiros nos casos de apêrto por alguma falta; e apadri- nhava o fujão perante o antigo senhor que o tinha em grande estima e muitas vêzes o ia visitar na sua cabana...39

37 Era enquanto curandeiro que o africano e/ou ex-escravo relacionava-se de forma ampla com a sociedade, principalmente a mais pobre. Havia entre essa população e os curandeiros uma identi-

dade e solidariedade que passavam pelas experiências que tinham em comum e pela sua condição social. XAVIER, Regina. Dos males e suas curas: práticas médicas na Campinas oitocentista. In:

CHALHOUB, Sidney et al. (org.). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003, p. 341.

38 STEIN, Stanley J. op. cit., p. 238-239. Sub rosa: secretamente, confidencialmente, às escondi- das.

Embora o negro não tivesse "a fealdade característica da profissão", acaba- ra herdando a reputação de feiticeiro de um outro negro, certo Pai Inácio, quem primeiro vivia pelas redondezas da fazenda, numa velha palhoça. A ele eram atri- buídas as desgraças e reveses acontecidas às gentes do lugar. Com seu sumiço repentino, Benedito, que passara a viver na mesma palhoça, revive a figura do bruxo, aterrorizando a sugestionada vizinhança, "tão acostumada a contar com um mandingueiro" em suas "histórias da carocha".

[...] Todos se temiam dêle; mas não falta também quem recorresse

a seu poder sobrenatural para cura de certas enfermidades, para desco- brimento de coisas perdidas, e realização de ocultos desejos.

Por mais que escusasse, fôrça lhe foi recorrer ao arsenal de bruxa- rias deixado pelo pai Inácio, e satisfazer aos rogos dos parceiros. Algu- mas coisas que disse, aconteceu saírem certas, e tanto bastou para aumen- tar a fé na sua mandinga.40

Em A mocidade de Trajano, é Pai Vicente quem dá conselhos, faz man-

dingas, abençoa patuás com "palavras cabalísticas e em língua da África". É orgu- lhoso, negando mesmo receber a carta de alforria: Não quero carta [...]! Então, o

escravo é cavalo que se atira no pasto, quando está velho e não pode mais co-

mer? Não quero carta; quero fugir, ser quilombola...,41 diz ao seu sinhôzinho.

Seus dons de feitiçaria também são uma atribuição da superstição popular.

Tinha ele fama de feiticeiro, e seu aspecto, sua palhoça - verdadei- ro cafarnaum de todos os rebotalhos da casa-grande, sua nacionalidade - era mina - sua longevidade haviam tão bem assentado essa reputação que muitos passavam por perto dele persignando-se cautelosamente.

Diziam do pobre velho coisas do arco-da-velha e ele, como lucrava com as prerrogativas da especialidade, deixava correr os boatos e até, às vezes, com um sorriso simplório ou com gravidade quase cômica, os cor- roborava por meio de predições espantosas e gestos fantásticos.42