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ecologia, em DEAN, Warren O café desaloja a floresta In: A ferro e fogo: a história e a devasta-

ção da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.

35 ...Para os fazendeiros e negociantes do café, cada uma das realizações no sentido do cresci-

mento foi também, ao mesmo tempo, um passo adiante no caminho da regressão: a prosperidade só pode ser construída à custa da ruína. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na

ordem escravocrata. 3ed. São Paulo: Kairós, 1983, p. 214.

36 Como em relação ao açúcar: Nessa formação [brasileira] grande foi a marca da presença do

açúcar, quer como fator especificamente econômico, quer com base de todo um tipo de sociedade e de toda uma forma de família. O tipo de sociedade e a forma de famílias patriarcais – que desde o século XVI condicionaram as origens e os primeiros desenvolvimentos pré-nacionais do Brasil mais econômica e socialmente estáveis. Condicionam não apenas esses desenvolvimentos pré- nacionais mas os nacionais que a eles se seguiram no século XIX, manifestando-se suas influên- cias nos começos do século atual e atuando algumas das suas sobrevivências sobre o Brasil dos próprios dias que atualmente vivemos. FREYRE, Gilberto. A presença do açúcar na formação

essa literatura garante aos autores a continuidade de uma missão, que se empenha em representar tipos estéticos e sociais do país, imersos no movimento cíclico do tempo.

A frágil imobilidade da lavoura cafeeira aos processos históricos - das no- vas relações de trabalho à urbanização, das exportações às revoluções, das remo- ções florestais às vilas rurais - permite aos autores reforçar a preocupação docu- mentária.37 As ações e os dramas podem ser descritos como um retrato, onde toda a movimentação é observada contra uma historicidade permanente, uma moldura duradoura às passagens do tempo. Nas obras, se em primeiro plano oscilam os novos personagens e os novos lugares introduzidos pela lavoura do café, ao fundo sempre está a atividade fundadora, fundiária e colonial, ancestral ao próprio ro- mance.

O "romance do café", se tomado por documento, transforma-se num acha- do: é uma forma de acesso aos aspectos mais profundos e sutis da vida social, que são inacessíveis se procurados nos registros ordinários do passado. Essa atribuição feita às obras garante a compreensão da narrativa como um mecanismo para o entendimento dos modos de vida antigos. Niveladas com a medida da realidade, a intenção dramática delas torna-se relativa à sua probabilidade histórica.38

O romance, ao portar-se como espelho do real, permite a confusão - e não o conflito - entre ficção e verdade. Literatura e história fundem-se para dar lugar ao testemunho, a versão de quem viu e viveu, e não somente a imaginação artísti-

37 LIMA, Luiz Costa. Documento e ficção. In: Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

38 Como se fosse possível superar o paradoxo do romance: ele é irredutível a uma realidade que contudo traduz. ZÉRAFFA, Michel. Romance e sociedade. Lisboa: Estúdios Cor, 1974, p. 16.

ca ou a hipótese científica. Essa estratégia dá legitimidade ao seu estatuto docu- mental que, por sua vez, forja uma "qualidade historiográfica", isto é, a capacida- de de refletir épocas, ambientes, registrar fatos e acontecimentos de relevo.39

Mas esta é a própria função monumental que os documentos assumem.40 São escolhas - e não evidências - que se destinam a perpetuar a recordação, evocar o passado, etc. O monumento, como documento, não é apenas a luta contra o es- quecimento, mas também a prova de uma intenção, ou seja, peça retórica do dis- curso que institui uma representação do passado. Ambos são construídos por rela- ções de força, são determinados por operações em torno do poder. Esta passagem de uma categoria à outra só é possível porque a literatura se quer história - e é justamente a história que transforma os documentos em monumentos.

Ao fazer do documento o arbítrio da veracidade dos fatos, essa literatura arrisca-se a partilhar com certa história a cruzada cientificista rumo às terras trai- çoeiras do passado. Lido assim, o "romance do café" é rigorosamente capaz de suportar a tribuna probatória, onde sua autenticidade é julgada conforme a reali- dade que representa. Está lá em suas páginas o percurso de um ciclo: a expansão da cultura, o plantio, a riqueza, as crises, a decadência. Estão lá também as marcas do tempo: as transições da mão-de-obra, a modificação dos meios de transporte, as fronteiras da colonização, a manipulação dos preços, a paisagem desoladora das geadas.

39 A exemplo de ELLIS, Myriam. O café: literatura e história. São Paulo: Melhoramentos; Edusp, 1977; Idem. O café – a história na literatura. In: O Café: Anais do II Congresso de História de São Paulo. ANPUH/SP, 1975 (Revista de História, vol. XLIX).

40 LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e memória. 4ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

Embora a objetividade descritiva, a veracidade narrativa ou outras estraté- gias do romance reflitam uma perspectiva empírica, sem se deixar desviar pela imaginação, em nada o documento se torna menos monumental. Ainda assim é uma escolha. Mas também resultado de um jogo aparentemente contraditório entre forma e conteúdo: se a nacionalidade literária, consagrada por meio de um fervor documental,41 fundamenta-se nas escolas estéticas contemporâneas, a intenção mais íntima será épica.42 Ao romance se atribuirá a missão de confeccionar o rela- to primordial dos feitos de um povo. Vai ser erigido como monumento, represen- tação a evocar o passado nacional.

A crônica literária - em jornais, "orelhas" de livros, apresentações e ensai- os - será insistente em atribuir uma função épica a certos "romances do café". De- les são ressaltados as páginas de heroísmo de uma gente e uma terra, onde estão fixados os irretocáveis retratos de época: os personagens e histórias surpreendidos na vida real, a reconstituição minuciosa de costumes, a pesquisa de um linguajar típico, etc. Os relatos vagam entre a documentação e a saga, ora imersos entre os episódios históricos, ora resgatando as variedades da cor local. Embora lido sob a rubrica do regionalismo - exemplo de um momento arrastado, não-decisivo43 -, os romances são celebrados no que tem de instrução, de humanidade, de Brasil.44