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In: A educação pela noite e outros ensaios São Paulo: Ática, 1989.

11 BOURDIEU, Pierre. A identidade e a representação: elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região. In: O poder simbólico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

fica do Brasil por meio de conceitos extraídos de uma indefinida disciplina geo- gráfica foi usada como testemunha das potencialidades virtuais observáveis por todo o território nacional.12 A prodigalidade de seus climas, as qualidades de seus solos, a sábia distribuição das águas e a riqueza de sua vegetação eram determi- nantes incontestáveis quanto ao sucesso da nação.

Tanto quanto gênero literário,13 o tema regional era uma resposta às radi- cais transformações que pressionavam os artistas. Como projeção de um senti- mento local, ativo e reativo ao contato com outros povos, repercutia a oposição entre o regional e o cosmopolita, o nativo e o estrangeiro, a tradição e a moderni- dade. Ou de outro modo, entre a dependência e a independência quanto aos pa- drões de civilização adotados como ordem para o desenvolvimento. Como expres- são de um debate interno, refletia ainda a aparente antinomia entre o dentro e o fora, o sertão e o litoral. Aparente, pois a oposição recíproca que se queria gerar distinguindo ambos espaços sempre recuava em favor da nacionalidade literária.

O ponto de vista regional, cultivado pelos escritores no âmbito dessas con- tradições, também refletia a alteração de perspectiva desencadeada pelas mudan- ças sociais entre campo e cidade. Como os primeiros literatos que descreviam geograficamente a nação a partir de seus gabinetes e bibliotecas14, os autores lo-

12 MORAES, Antonio Carlos Robert. Notas sobre identidade nacional e institucionalização da geografia no Brasil. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, p. 166-176, 1991. Conceito de região na Geografia, em LENCIONI, Sandra. Região e geografia. São Paulo: Edusp, 1999. Verbete região, em RONCAYOLO, Marcel. Região. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 8 (Região). Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, p. 161-189, 1986.

13 CHIAPPINI, Ligia. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura. Estudos

Históricos. Rio de Janeiro, vol.8, n.15, p.153-159, 1995, entre outros.

14 Narrador em trânsito, em SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a via- gem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

cais falavam do mundo rural vivendo no espaço urbano.15 Nesse sentido, os temas locais não eram apenas a permanência de uma motivação literária, mas o testemu- nho de um conflito generalizado, complexo e contemporâneo: a urbanização das sociedades segundo as regras do capitalismo.16

A emergência de uma "consciência catastrófica" na literatura brasileira ar- rastará a região, tornando-a não tanto mais folclórica, heróica ou picaresca. Ela também passará a responder aos surtos, criativos e econômicos, do nomadismo do capital. As paisagens, enredos e personagens pintados segundo a cor local passa- rão a oscilar em ritmo às vezes compassado, às vezes claudicante com as dinâmi- cas do mercado doméstico e internacional.17 Ao mesmo tempo que uma opção ideológica, principalmente em favor de um homem rural marginalizado do proces- so de produção, as obras irão traduzir os sentimentos generalizados de uma socie- dade profundamente dependente do trabalho nos campos, mas sujeitada às normas industriais do capitalismo.18

A identificação entre pátria e terra, no qual a grandeza da segunda era en- carada como o desdobramento da primeira, seria revertida em visões menos edul-

15 ...A história do regionalismo mostra que ele sempre surgiu e se desenvolveu em conflito com a

modernização, a industrialização e a urbanização. Ele é, portanto, um fenômeno moderno e, pa- radoxalmente, urbano. CHIAPPINI, Ligia. op. cit., 1995.

16 Rural e urbano, campo e cidade, em WILLIANS, Raymond. O campo e a cidade: na história

e na literatura. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

17 Uma das conclusões que se pode tirar dessa história do regionalismo brasileiro é que a transi-

ção difícil nos reajustes sucessivos da nossa economia aos avanços do capitalismo mundial se trama de modo específico e a literatura tende a recontar o processo ora como decadência ora como ascensão, ora com pessimismo, ora com otimismo, dependendo de que lado está: da moder- nização ou da ruína. CHIAPPINI, Ligia. op. cit., 1995.

18 À tensão entre idílio e realismo correspondem outras constitutivas do regionalismo: entre

nação e região, oralidade e a letra, campo e cidade, estória romanesca e romance; entre a visão nostálgica do passado e a denúncia das misérias do presente. Idem, 1995. Estrutura de sentimen-

coradas, menos promissoras, por parte dos literatos. Nos anos 1930, consagra-se essa "tomada de consciência" com uma irreversível mudança de enfoque: ao invés do pitoresco e do exótico, entram em cena a aridez, o desencanto, a penúria - am- plamente em relação à terra capitalizada: a realidade dos solos pobres, das técni-

cas arcaicas, da miséria pasmosa das populações, da sua incultura paralisante.19

O ponto de vista é reformulado: da passividade passa à agonia, levando os autores a reconhecerem as bases ornamentais da paisagem nacional. O subdesenvolvimen- to transforma-se em força crítica, o romance trata de desmistificar as ilusões e máscaras criadas pela novidade literária.

Uma região brasileira, aos olhos de muitos escritores, passa a ser medida mais por seus limites sociais e econômicos do que geográficos. É a realidade cria- da ou transformada pelas relações de produção, mercantis e simbólicas, que vai delimitar o espaço regional nas obras literárias. Uma região emerge nos romances em função de uma realidade econômica, e em grande medida dela resulta a pró- pria intenção dramática.20

A transformação do tema regional nas letras nacionais, ora baseada num apelo estético, ora numa disposição ideológica, será projetada a partir dessa con- dição de espaço21 atribuído à região, ou seja, de território sujeito a potencial con- quista e exploração de seus recursos. A atualidade dessa literatura, nesse caso,

19 CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. op. cit., 1989.

20 O regionalismo foi uma etapa necessária, que fez a literatura, sobretudo o romance e o conto,

focalizar a realidade local. Algumas vezes foi oportunidade de boa expressão literária, embora na maioria os seus produtos tenham envelhecido. Mas de um certo ângulo talvez não se possa dizer que acabou; muitos dos que hoje o atacam no fundo o praticam. A realidade econômica do subde- senvolvimento mantém a dimensão regional como objeto vivo, a despeito da dimensão urbana ser cada vez mais atuante. CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. op. cit., 1989.

será relativa à apropriação que o capital faz do lugar e das pessoas - atualidade que, por outro lado, arrisca a reiterar a idéia de que, no país, ainda há zonas ou regiões abertas à sociedade nacional, onde o homem brasileiro pode reafirmar sua identidade singular.

O ciclo do café

Essa alteração de valores, se é mérito dos literatos, ainda assim correspon- de a um momento fatídico na história recente: a crise da idéia de progresso. Jus- tamente a partir dos anos 1930, desencadeia-se uma crítica aguda em relação às conquistas promovidas pela razão, indústria e tecnologia. Uma dúvida permanente se instala, percebe-se a radical diferença entre o desenvolvimento técnico e o mo- ral, em que o segundo não se fez acompanhar do primeiro. Progresso não é mais sinônimo de civilização, ciência, democracia e liberdade. O senso de exploração e pobreza se unem a antigos temores: medo, decadência, corrupção.22

Por outro lado, enquanto o progresso é colocado em dúvida, a ausência de- le é que vai humanizar o sujeito posto à margem: é a falta da civilização técnica que revelará a existência de brasileiros incultos, estigmatizados, vivendo como feras nos grotões da nação. Embora largados à própria sorte, resistem tenazmente às adversidades com um mínimo para a sobrevivência. O esforço de muitos litera- tos será restituir a esse brasileiro rústico e pobre a humanidade intrínseca de uma