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4 ALENCAR, José de op cit., p 69.

ancestral, transmissora de lendas, mitos e causos há muito conhecidos; mantene- dora de antigas tradições, práticas e costumes significativos para toda uma coleti- vidade; conselheira, sábia, de muita experiência.5

Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, con- tadas a pais e netos.6

A experiência é a fonte do narrador, porém, por mais familiar que seja seu

nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva.7 A

arte de narrar está em vias de extinção, a comunicação da experiência está empo- brecida, o senso prático e a sabedoria - "o lado épico da verdade" - contidas na narrativa se apagam com a evolução secular das forças produtivas. A emergência do romance e da informação triunfam sobre a arte do narrador, daquele que sabe dizer em meio ao silêncio. Há uma ausência de tempo para a dúvida e a medita- ção, deixando os indivíduos cada vez mais isolados e repletos de explicações so- bre a vida e o mundo. Há mesmo toda uma tradição narrativa sobre o fim da nar- ração.8

5 Como é a personagem Tia Nastácia, do "Sítio do Pica-Pau Amarelo". LAJOLO, Marisa. A figura do negro em Monteiro Lobato. Presença Pedagógica. São Paulo, set.-out./1998.

6 BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 114 (Obras escolhidas, vol. I) ...A

experiência se inscreve numa temporalidade comum a várias gerações. Ela supõe, portanto, uma tradição compartilhada e retomada na continuidade de uma palavra transmitida de pai a filho, continuidade e temporalidade das sociedades "artesanais" diz Benjamin em "O Narrador", em oposição ao tempo descolado e entrecortado do trabalho no capitalismo moderno. Essa tradição não configura somente uma ordem religiosa ou poética, mas desemboca também, necessariamen- te, numa prática comum; as histórias do narrador tradicional não são simplesmente ouvidas ou lidas, porém escutadas e seguidas; elas acarretam uma verdadeira formação (Bildung), válida para todos os indivíduos de uma mesma coletividade. GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e

narração em Walter Benjamin. 2ed. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 57 (grifos do autor).

7 Idem. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: op. cit., p. 197. 8 GAGNEBIN, Jeanne Marie. op. cit., p. 58.

Falas arremedadas

No "romance de casa-grande e senzala", n'O tronco do ipê em particular, aparentemente há a presença de personagens que remetem à figura do narrador. Há indícios da "experiência que passa de pessoa a pessoa", ou seja, de uma histó- ria oral que se cala na transcrição da narrativa romanesca. Personagens que ali- mentam a nostalgia paradoxal não por aquilo que se foi, mas por tudo aquilo que em breve deixará de ser, pois se o tempo que interessa a Alencar é o da saudade e da "alegria de evocar",9 o que verdadeiramente lhe toma a atenção não está no passado, mas nas franjas do presente, naquilo que corre o risco de se tornar sim- ples lembrança.

No entanto, no romance não há um narrador que submerge com a crescen- te incomunicabilidade da experiência. O que há é a retificação de papéis e condi- ções sociais que remetem a experiência para um plano secundário, subalterno, que pouco dizem sobre o fim da narração, mas muito informam sobre os discursos que situam as identidades neste universo escravocrata, patriarcal e latifundiário. O negro, a negra, a mulher, a criança, os agregados, ao serem total ou parcialmente excluídos da história narrada, prestam-se a escutar as vozes que ecoam sob a fala do romancista, sugestionando uma dialogia das relações de força que subsistem na narração.

9 CASCUDO, Luís da Câmara. O folclore na obra de José de Alencar. In: ALENCAR, José de.

O efeito mais significativo dessa audiência no romance se dá em Alice. É ela quem resgata do tempo a tradição do auto de Natal, a festa católica etnografi- camente celebrada por Alencar. A ação da menina sob a memória evanescente se converte na voz evocativa de um passado que vai se ausentando. Ela então faz um duplo jogo da memória, que primeiro inscreve no romance a observação docu- mental de certos costumes religiosos, para em seguida fazer interiorizar no fluxo narrativo uma temporalidade irredutível ao presente reconstruído pelo autor - um tempo outro, agarrado às sombras dos costumes brasileiros, e que com dificuldade vai se transmitindo às coisas e às pessoas.

Alice, entretanto, não tem recordações da festa natalina. Ela apreende seu sentido através de outras memórias, de antigas vozes, abafadas e fugidias.

Desde a fundação da fazenda que datava o costume de festejar-se o Natal com aquelas cantigas e romarias. Durante muitos anos porém, tal- vez pelos desgostos que sobrevieram ao antigo dono, tinha caído em es- quecimento, até que Alice ficando moça a restaurou. A menina ouvia sem- pre pelo Natal falarem as pretas velhas das bonitas festas que se faziam outrora na fazenda; e arremedarem as cantigas e representações que se davam então.10

É desse modo que o tempo resgatado se salva no presente. A restauração da festa religiosa, naqueles anos, significava uma demonstração do poder, prestí- gio e opulência em que vivia a aristocracia rural. Como em outros períodos da história local, ela celebrava sua riqueza ofertando aos céus cristãos a exuberância de uma representação de fé.11 A evocação, por um instante, torna-se sublimação. [...] A cada ano a festa era mais arrojada e esplêndida, até a última que prometia