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63 MIRANDA, Veiga op cit., p 254.

64 O interesse ardente do leitor se nutre de um material seco. O que significa isto? "Um homem

que morre com trinta e cinco anos," disse certa vez Moritz Heimann, "é em cada momento de sua vida um homem que morre com trinta e cinco anos." Nada mais duvidoso. Mas apenas porque o autor se engana na dimensão do tempo. A verdade contida na frase é a seguinte: um homem que morre aos trinta e cinco anos aparecerá, sempre, na rememoração, em cada momento de sua vida, como um homem que morre com trinta e cinco anos. Em outras palavras: a frase, que não tem nenhum sentido com relação à vida real, torna-se incontestável com relação à vida lembrada. Impossível descrever melhor a essência dos personagens do romance. A frase diz que o "sentido" da sua vida somente se revela a partir de sua morte. Porém o leitor do romance procura realmen- te homens nos quais possa ler "o sentido da vida". Ele precisa, portanto, estar seguro de antemão, de um modo ou outro, de que participará de sua morte Se necessário, a morte no sentido figurado: o fim do romance. Mas de preferência morte verdadeira. BENJAMIN, Walter. O narrador. In: op.

cit., p. 213-214.

65 Segundo R. Barthes, a Narrativa é uma forma extensiva ao Romance e à História. É ela que, a partir do século XIX, permitiu que ambos se constituíssem como "universos autárquicos", a fabri-

Porém, o leitor do romance, que percorre a trajetória decadente de seus personagens na expectativa da morte, aguarda com ansiedade uma palavra revela- dora, um sentido último que fulgure das páginas encadeadas e aqueça sua "vida gelada" e solitária. Diante desse sujeito agonizante, que morrerá sempre doente e falido, é como se postasse frente a um narrador, à espera de um conselho que nun- ca virá:

Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida - e é dessa substância que são feitas as histórias - assumem pela primeira vez uma forma transmissível. Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens - visões de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso -, assim o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tu- do o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em seu redor. Na origem da narrativa está essa autoridade.66

car as suas próprias dimensões e limites, a dispor o seu Tempo e Espaço, sua população, sua coleção de objetos e seus mitos. A Narrativa, que exprime o ritual artístico das Belas-Letras, tem

como sua pedra angular o "passé simple" (pretérito perfeito do indicativo). Sua função não é a de formalizar uma temporalidade, ao contrário, seu papel é reduzir a realidade a um ponto, e abstrair

da multiplicidade de tempos vividos e superpostos um ato verbal puro, desvencilhado das raízes existenciais da experiência e orientado para uma ligação lógica com outras ações, outros proces- sos, um movimento geral do mundo: ele visa manter uma hierarquia no império dos fatos.

BARTHES, Roland. A escrita do romance. In: O grau zero da escritura. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 27-28.

Capítulo Segundo

TRONCOS E RAÍZES: O CORPO DA MEMÓRIA

O idílio da experiência

Na manhã de 15 de janeiro de 1850, saía da Casa-grande, na fazenda de

Nossa Senhora do Boqueirão, um grupo de três crianças, acompanhadas por duas

mucamas e um pagem agaloado.

Eram duas meninas de onze a doze anos, e um menino de quinze.1

Alice, uma das meninas, era a flor agreste, cheia de seiva e vivacidade,

habituada a se embalar ao sôpro da brisa ou a beber a luz esplêndida do sol. A-

délia, a outra, era uma rosa nascente. Havia em sua beleza certo ar de languidez

que se nota nas flores dos jardins, assim como nas môças criadas sob a atmosfera

enervadora da cidade. Mário tinha os olhos pardos e profundos, nariz aquilino,

andar rijo e movimentos bruscos.2

O passeio, cheio de denguices, arrufos e travessuras, passa pelo jardim, pela horta e o pomar - áreas idealmente consagradas "cultivo refinado do ócio"3 -, até chegar a um local de beleza rústica, porém majestosa. Ficava à beira do rio Paraíba, era formado por uma pequena várzea, o verde da floresta e uma cadeia de penhascos, cujo o mais saliente deles "sustentava na encosta uma cabana de sapé". Este é o destino final do passeio, a morada de Pai Benedito e Tia Chica, dois ve- lhos escravos, deixados a viverem pacificamente nesse ermo pela benevolência do senhor da fazenda do Boqueirão.

1 ALENCAR, José de. O tronco do ipê: romance brasileiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951, p. 40.

2 Idem, p. 43-44.

3 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 3ed. São Paulo: Kairós, 1983, p. 181.

Do paternalismo de José de Alencar o casal herda a lealdade e a solicitude, mantendo uma relação filial com os pequenos senhores, as nhanhãs e o nhonhô. Alice, Adélia e Mário, depois de muito mimados pelos velhos, postam-se ao pé do leito de Tia Chica, que se encontra paralisada por conta de seu reumatismo crôni- co. Alice a incita:

_ Conta a história da mãe-d'água, vovó! _ Ora, nhanhã, eu nem me lembro mais. _ Para Adélia ouvir! Sim, vovó, sim!

_ Já esqueceu! Faz tanto tempo que eu ouvi a minha senhora velha D. Generosa, aquela santa que Deus tem na sua glória entre seus anjos.

_ Era vovó da mamãe! disse Alice para Adélia.

_ Faz tanto tempo que eu ouvia ela contar a sinhá, quando era mais pequena que nhanhã. Sinhá não queria dormir, e então sinhá velha sentava-se junto da cama, com a cabecinha tão branca como um capulho de algodão, e começava... Deixe ver se me alembro, nhanhã. Ah! Foi um dia...

[...] _ "Foi um dia uma princesa, filha de uma fada muito podero- sa, e do rei da Lua, que era marido da fada.4

"História da carochinha" é o título do capítulo no qual se passa a cena. Carocha aqui é a própria Tia Chica, que ao recontar a história da mãe-d'água, co- mo que lança um feitiço sobre as crianças para alertá-las ou amedrontá-las sobre os perigos que escondem certas águas dormentes e profundas de uma lagoa que assombra a fazenda. A hesitação, o esquecimento, as lacunas, tudo se arma como estratégia para capturar a atenção e sugestionar a imaginação de quem escuta. Não são apenas mecanismos para dominar a curiosidade dos ouvintes, mas condições para que a narração encontre eco nas lembranças comuns.

Mas a carocha é velha, negra e escrava. Não fosse isso, não fosse o fato de ser negra e escrava, seria apenas Tia Chica, uma idosa senhora dotada de memória