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58 ANDRADE, Oswald de op cit., p 54.

ter seu estúdio invadido pelos "artistas da cidade", compreende a natureza crepus- cular do homem nativo. Apequenado, se vê consumido por um bando de miserá- veis e boêmios, os últimos e decaídos descendentes da raça colonizadora dos pla- naltos da antiga Piratininga.

Eram, com exceções, decaídos de famílias estabelecidas no conti- nente num estouvamento de fidalguia, estendendo o seu domínio por gen- tes e escravos, campos e serras. O império dera-lhes baronatos, a terra trabalhada pelos negros dera-lhes ouro. E no país assombrado haviam-se vinculado a preconceitos tentaculares de glória paroquiana, feudais se- nhores de chapelão e barba, gerando numa sexualidade redobrada pelo degredo, rebentos inúteis e pomposos, falhos rombudos de orgulho nativo, pedaços anacrônicos de Meia-Idade portuguesa. O tempo trouxera a li- bertação dos escravos legais e as novas imigrações. E a terra cansara de dar a moeda rubra na ponta verde dos velhos cafezais.59

Negócios à parte

Um anacronismo que bem podia ser uma constância, um mau atavismo que a tradição passadista mantinha como fundamento cultural do brasileiro. Uma praga antiga, revivida por uma classe de gente orgulhosa e amesquinhada, a mes- ma da qual o jovem Carlos Sousa Costa faria parte. Em 1927, ele vai emergir opa- camente da atmosfera cinematográfica de Amar: verbo intransitivo - Idílio. No romance, Mário de Andrade60 refaz a figura e a miséria do tradicional burguês, ou melhor, do sujeito aburguesado pela casca da civilização.

No mesmo ano da publicação do livro, Mário escreve ao redator de um jornal da cidade a respeito das nulas qualidades desse seu personagem.

59 Idem, p. 246.

60 ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo: idílio. 18ed. Belo Horizonte: Villa Rica, 1992.

Carlos não passa de um burguês chatíssimo do século passado. Ele é tradicional dentro da única cousa a que se resume até agora a cultura brasileira: educação e modos.

Em parte enorme: má educação e maus modos. Carlos está entre nós pelo incomparavelmente mais numeroso que inda tem no Brasil de tradicionalismo "cultural" brasileiro burguês oitocentista. Ele não chega a manifestar o estado bio-psíquico do indivíduo que se pode chamar de moderno. Carlos é apenas uma apresentação, uma constatação da cons- tância cultural brasileira. E se não dei solução é porque meus livros não sabem ser tese.61

É justamente para refinar, ou engrossar, essa educação e esses modos maus que o romance conta a história da iniciação sexual entre o adolescente burguês e Fräulein Elza, a governanta alemã balzaquiana que dá lições de piano e de amor.62 Imigrante vitimada pela guerra mundial, a senhorita Elza é uma professora de a- mar. Amor como idealmente deve ser, a princípio "insexual", nascido das "exce- lências interiores", do espírito, e só depois complementado pelo desejo. Leciona o "amor-tese, teoria do amor, amorologia". Profissão que exerce devido a uma "fra- queza", como deixa claro no início da narrativa, e não por virtude.

A profissão dela se resume a ensinar primeiros passos, a abrir o- lhos, de modo a prevenir os inexperientes da cilada das mãos rapaces. E evitar as doenças, que tanto infelicitam o casal futuro. Profilaxia.63

61 Idem, p. 155. Reproduzido nesta edição do livro, o texto foi primeiramente publicado no jornal paulista Diário Nacional em dezembro de 1927. A constância cultural representada por esse bur- guês oitocentista que é Carlos tem parentesco com o burguês de Júlia Lopes de Almeida em "A falência". Publicado no Rio de Janeiro em fins do século XIX como folhetim, o romance trata da derrocada do que seria o maior e mais rico comissário de café carioca, o português imigrado Fran- cisco Teodoro. Um dos dramas familiares é o envolvimento do jovem primogênito Mário com uma meretriz: "era uma francesa gananciosa, podre de rica de cabelos pintados e carne mole. Não valia nada e arruinara muita gente boa".

62 Mário Raul de Moraes Andrade (1893- 1945), logo após as comemorações do Centenário da Independência, retoma suas lições de alemão. Uma das professoras é certa Kaëthe Blosen, que desperta paixões em Mário. É dessa relação, passional e estética com a cultura germânica, que ele dá corpo à sua personagem (Cf. LOPEZ, Têle Porto Ancona. Uma difícil conjugação. In: Idem, p. 34ss.).

Elza vem ao Brasil para educar, enriquecer e voltar à sua terra, onde a a- guarda seu homem, ideal e imaginário. É a encarnação de uma civilidade femini- na, sincera mas melancólica, que oferta corpo e alma para dar lustro aos sentimen- tos pueris e grosseiros de uma nova e mesma geração de burgueses dos trópicos. É cheia de preconceitos e valores patrióticos, mas é adaptável às adversidades da vida e da cultura alheias, como era o prático espírito do seu povo, conta o narra- dor.

Fräulein Elza é contratada pelo senhor Sousa Costa, industrial e pecuarista ocasional, pai de família e residente da avenida Higienópolis, católico e freqüen- tador do vale do Anhangabaú. É sujeito experiente, com "jeitos e sabenças" adqui- ridos nas andanças que faz costumeiramente nessa zona meretrícia. Vive em seu casarão, feliz com os quatro filhos e dona Laura, com a qual divide uma "conven- ção honesta": jamais deixar um aroma ou fio louro apanhado no vale adentrar a porta daquele lar.

Sousa Costa usava bigodes onde a brilhantina indiscreta suava ne- grores nítidos. Aliás todo ele era um cuitê de brilhantinas simbólicas, uma graxa, mônada sensitiva e cuidadoso de sua pessoa. Não esquecia nunca o cheiro no lenço. Vinha de portugueses. Perfeitamente. E de Camões her- dara ser femeeiro irredutível.64

O objetivo de Sousa Costa é salvar o filho de um "desastre": que venha a cair nas mãos de uma "aventureira". Elas se alastravam pela cidade, explorando os melhores jovens das famílias paulistas. Eram viciadas, "morfinômanas, eterôma- nas e cocainômanas"; doentes, sifilíticas, dadas ao jogo e à bebida. Levavam os filhos ilustres de São Paulo à perdição, a viverem moles, empalamados, também

64 Idem, p. 55.

viciados, sifilíticos e enterrados nos subterrâneos da civilização que se espalhava, das esquinas e avenidas ao recesso dos mais ricos lares.

Para livrar Carlos dessas amantes oportunistas, Sousa Costa negocia a compra da salvação por oito contos, mais mensalidades. "Mais caro que o Caxam- bu que me custou seis e já deu um lote de novilhas estupendas", compara. Com esse investimento, pretende evitar que o rapaz tenha um destino, principalmente aquele que se perde nos rende-vouz. Pois salvando-o dessa perdição, também as- segura a manutenção do patrimônio burguês.

Em troca das vivências arrebatadoras da vida moderna, Sousa Costa oferta ao filho a segurança e a tranqüilidade do "amor sincero, elevado, cheio de senso prático, sem loucuras", que seria ensinado por Fräulein Elza. E desse modo, talvez Carlos seguisse a constância de seus passos e vivesse a tradição familiar, respeito- sa e cristã, sem deixar aromas extravagantes ou fios loiros sedosos adentrarem as portas de seu futuro lar.

Mesmo Elza acredita nesse amor, um amor de sonhos, verdadeiro. Não é nenhuma "sem-vergonha nem interesseira", ela esclarece a dona Laura. Não esta- va lá para se vender, se ofertar como uma mercadoria encontrada nas ruas, mas para ensinar "amor puro, sincero, união inteligente de duas pessoas, compreensão mútua", conforme suas próprias palavras. Algo distante, quase impossível, que se não era possível aprender, ao menos servia para a manutenção de certos valores, de certas convenções cultivadas pela gente local. Sua pedagogia sentimental podia garantir aos jovens de família a continuidade das tradições burguesas, a formação de lares felizes, comuns; o lustro de valores tradicionais e constantes da cultura

nativa. Pois toda cultura que ela vai dispor para entreter e polir seu aluno não ser- virá para outra coisa senão torná-lo seguro de sua condição: "chatíssimo".

E talvez por isso o narrador terá duvidas de sua personagem: "E coisa que se ensine o amor? Creio que não. Ela crê que sim." Professora de amar. Quem há de acreditar nela? Quem há de dar crédito a todas as Elzas, corretas ou desacredi- tadas, criadas pela idéia de cada leitor?

Não vejo razão pra me chamarem vaidoso se imagino que o meu livro tem neste momento cinqüenta leitores. Comigo 51. Ninguém duvide: esse que lê com mais compreensão e entusiasmo um escrito é autor dele. Quem cria, vê sempre uma Lindóia na criatura, embora as índias sejam pançudas e ramelentas.

[...] Se este livro conta 51 leitores sucede que neste lugar da leitura

já existem 51 Elzas. É bem desagradável, mas logo depois da primeira ce- na, cada um tinha a Fräulein dele na imaginação. [...] Outro mal apare- ceu: cada um criou Fräulein segundo a própria fantasia, e temos atual- mente 51 heroínas pra um só idílio. 65

Toda a história, a paixão de Carlos, as fraquezas e as convicções de Elza, os preconceitos dos Sousa Costa, as paisagens íntimas, os interiores da casa, quase tudo se dará num clima cinematográfico. Naqueles anos, o romance não vai ape- nas reproduzir a linguagem do cinema, mas também produzir uma, reinventando em prosa a sintaxe das imagens em movimento. Nesse deslocamento de planos narrativos, Amar: verbo intransitivo - Idílio dialogará com as novas técnicas de ver e ouvir que modificavam a percepção dos sujeitos sobre os objetos.

Principalmente o ver, postando os olhos em perspectiva, isto é, fazendo-os medir as distâncias, criar as escalas, compor os enquadramentos e fixar os pontos de convergência. Olhar como se através de uma máquina de retratos, escrever

65 Idem, p. 57.

como quem vê uma fotografia em ação. Uma "literatura-de-corte"66, como bem poderia ter imaginado o poeta francês em passagem por terras brasileiras, sintoni- zando a vanguarda local com as tendências metropolitanas.67

Mas essa linguagem de cinema, ao mesmo tempo que transportava a narra- tiva para junto das técnicas modernas, arriscava pôr em cena somente os senti- mentos passageiros, tipos compostos de traços rápidos, de subjetividade mínima, superficiais, simples figurinos, clichês fotográficos, embora não fosse apenas a fugacidade que colocava em atrito as representações romanescas do tempo e do movimento. A forma mesma com que o público vinha recebendo a arte resultava de transformações profundas em suas estruturas perceptivas e cognitivas: arte para a distração, arte para a massa de crescentes espectadores; não mais arte para a devoção e sim para a recepção coletiva, dispersiva, como na arquitetura, no cine- ma.68

Última sessão

Em 1928, ano seguinte ao lançamento de Amar: verbo intransitivo, ocorre- rão as últimas projeções da cinematografia muda em São Paulo. A partir daí, virá