• Nenhum resultado encontrado

Alferes Antônio Bento da Cruz

No documento Download/Open (páginas 115-118)

III.6. Com nome e sobrenome: a trajetória de vida dos forros senhores de Iguaçu

III.6.5. Alferes Antônio Bento da Cruz

Falecido na freguesia de Iguaçu no dia 10 de dezembro de 1788, o alferes Antônio Bento da Cruz foi encomendado e enterrado com todos os sacramentos em uma das covas da irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da igreja matriz da freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu, confraria à qual, como a maioria dos senhores forros, era agremiado. Foi amortalhado com hábito de Santo Antônio (embora tenha ordenado em seu testamento que se utilizasse um hábito branco), fato que contraria a ideia de que este, e outros detalhes dos legados, fossem sempre seguidos literalmente pelos testamenteiros, ainda que dos mesmos se esperasse o cumprimento do inteiro teor das ordens deixadas pelo finado. Isso poderia ocorrer, em alguns casos, por indisponibilidade de um ou outro hábito mortuário na ocasião do falecimento do testador.

Fez seu solene testamento no dia 11 de novembro de 1788 (um mês antes de sua morte, o que foi o mais comum entre os 13 senhores forros de Iguaçu e mais corriqueiro ainda entre os 24 senhores livres) em sua casa de morada, no sítio onde residia na freguesia de Piedade do Iguaçu. Como praxe dos 13 sitiantes forros, Antônio Bento também não indicou com maiores detalhes a localização e a extensão do mesmo, ao contrário de pelo menos um terço dos senhores livres. De acordo com o testador, na época da redação de suas últimas vontades, estava em seu “perfeito juízo e entendimento”, porém “doente na cama e [temendo] a morte”; em razão da idade ou da doença (ou ambas, não reveladas), veio a falecer, como visto, um mês depois da redação do testamento, ou seja, os legados foram planejados e redigidos com a proximidade de sua morte, anunciada pela idade avançada, por enfermidades, ou ambas.

Antônio Bento ordenou em seu testamento que se rezassem vinte missas de corpo presente na matriz de Piedade; tomando como referência o valor indicado por Pizarro226 para

225 DURÃES, op. cit. 2005. p. 7. 226 ARAÚJO, idem, ibidem. 2000. p. 60.

101

este ofício pio na freguesia no final do século XVIII, que era de 640R cada missa, chega-se à quantia total de 12$800R, ou o valor equivalente a uma dobra. Além destas missas, ordenou também que se dissessem duas capelas de missas (100 missas)227, uma em intenção de sua própria alma e a outra dividindo-se, sendo metade (25 missas) em intenção à alma de sua primeira esposa, Quitéria, e a outra metade pela alma de seu ex-senhor, Antônio Bento da Cruz. As duas capelas de missas custaram no total 32$000R. Ordenou, ainda, que se dessem doze esmolas aos pobres necessitados da freguesia, no valor de quatro vinténs cada uma; como cada vintém valia 20R, cada uma das esmolas foi de 80R, somando no total 960R em esmolas. O total gasto com estes sufrágios alcançou a cifra de 45$760R, valor este mediano entre os 13 senhores forros; no entanto, nesta soma não estão incluídas despesas como a sepultura, a mortalha e outros custos com os funerais, que certamente ocasionaram um acréscimo ao valor indicado e que, certamente, seriam ou foram lançados no inventário post-

mortem. Seu inventário, assim como dos demais senhores forros, não foi localizado. Antônio

Bento ordenou que após sua morte, sua esposa e testamenteira deveria dar de esmola a quantia de 12$800R (uma dobra) a Jacinta, forra que havia sido sua cativa, “para a ajuda do seu luto [e] pelos bons serviços” que havia prestado ao seu então senhor.

A referência de Antônio Bento ao seu ex-senhor, Antônio Bento da Cruz, à cuja alma deveriam ser rezadas missas de intenção, demonstra que apesar de costumeiramente terem sempre sido consideradas as ex-cativas como as que mais faziam tais referências a ex- senhores, havia exceções. Como exemplo, dos 13 senhores forros, 4 homens, de um total de 6, fizeram tais menções, enquanto apenas 2 das 7 mulheres o fizeram; estes 6 forros que aludiram aos ex-senhores perfazem praticamente a metade do total de forros. Certamente, consideradas as reduzidas proporções da amostra. Antônio Bento não só o fez como, costumeiramente ocorria, também carregava o sobrenome de seu ex-senhor, o que representava o vínculo orgânico de submissão e de gratidão entre o liberto e seu ex-senhor após a alforria concedida por este. Conforme visto acima, da mesma forma, Antônio havia estabelecido o mesmo tipo de vínculo com sua ex-escrava, a supracitada Jacinta, reproduzindo esta lógica das relações entre senhores e escravos e ex-senhores e ex-escravos. Antônio Bento, no entanto, não foi o único destes forros a fazê-lo, já que estes vínculos com os ex-cativos faziam parte da rede de relações que ajudava a estabelecer a legitimidade social dos forros. Alguns senhores forros deixaram determinações em seus testamentos para legar heranças a seus cativos e ex-cativos após seus falecimentos.

Antônio era natural de Angola, onde fora batizado em freguesia e época não mencionadas. Era casado em segundas núpcias com Jerônima Maria Loba, preta forra da Costa Verde, e não tiveram filhos. Antônio Bento fora casado anteriormente com a já mencionada falecida Quitéria Maria dos Prazeres, liberta de nação Mina, com a qual também não teve filhos. Os dois casamentos demonstram que, se por um lado poder-se-ia considerar como hipótese, ainda que remota, o fato de ter havido entre estes forros algum tipo de endogamia entre “africanos” em algum nível, não o foi se consideradas as diferentes procedências. O que se percebe, no entanto, entre os 13 senhores forros, é que os casamentos não seguiam nenhum padrão de endogamia ou exogamia, visto que os cônjuges, tanto dos primeiros quanto dos segundos matrimônios, eram quase sempre de procedências e qualidades variadas e diferentes de seus pares. Por não ter tido filhos legítimos de nenhum de seus dois casamentos e nem naturais, conforme afirmou, não tendo outros herdeiros, Antônio instituiu sua esposa, Jerônima, como herdeira universal de todos os seus bens móveis e de raiz, depois de satisfeitos seus legados pios e materiais. A condição imposta por Antônio Bento para que sua esposa fosse instituída sua herdeira universal foi apenas de que ela mandasse fazer seu

227 Cada capela de missas representava 50 missas e em Piedade do Iguaçu, o valor costumado para cada uma das

50 missas era de 320R, logo, uma capela de missas custava 16$000R. Cf. Livro 11. ARAÚJO, op. cit. 2000. p. 60. RÖWER, op. cit. pp. 61-62.

102

enterro e pagasse seus legados, a qual, para todos os efeitos, seu marido deixava livre e desembargada para tal função.

Tendo como base os dados gerais expostos no capitulo II, no subitem Produção de

alimentos, comércio, mercado de crédito, compra, venda e aluguel de escravos, acerca das

dívidas dos senhores forros, a dívida aproximada de Antônio Bento foi, no mínimo, de 56$540R, não considerando os valores de dívidas que não foram revelados. No entanto, sua viúva herdeira e testamenteira, incumbida de quitar tais débitos, não pagou todas as dívidas conforme ordenado no testamento de seu finado marido. Antônio Bento deu à mesma a tarefa de cobrar as dívidas que se lhe deviam, as quais não expôs no testamento, pois sua esposa era “sabedora” dos detalhes: objetos, valores, serviços e pessoas. Em seu testamento, Jerônima também não declarou os créditos que Antônio tinha a receber, de forma que não se pôde computar tais quantias ao balanço de suas dívidas e créditos, mas relacionou as dívidas de seu marido que deixara de pagar, deixando em testamento ordens para que se quitassem tais débitos.

Antônio declarou ter rogado a Alexandre Joaquim para que este redigisse o testamento, por ele “não poder escrever”, o que deixa a dúvida se ele sabia escrever, pois não

poder é diferente de não saber. Como ao fim do testamento Antônio Bento assinou com seu

sinal costumado, que era “uma cruz”, esclareceu-se a questão: seguindo a regra para a maioria dos forros (e da população em geral daquele período), Antônio Bento não sabia ler e escrever. Foram testemunhas deste ato o reverendo Bento José da Mota, coadjutor da freguesia de Iguaçu e capelão da capela de Santo Antônio do Mato, Diogo Dias, José Mateus (possivelmente Gonçalves Molle, comerciante e futuro escrivão da freguesia), Antônio Pereira Soares, Francisco Rodrigues de Moura e Isidoro Manoel. A aprovação do testamento foi feita três dias depois, no dia 14 de novembro, na própria casa de morada de Antônio Bento, no sítio em Iguaçu, onde o tabelião, Domingos Ramos Maciel de Queirós, relatou que o encontrou “de cama com doença grave e com seu juízo e entendimento”. Também nesta oportunidade, a doença não foi revelada, tampouco a idade do testador. Segundo o tabelião, assinaram como testemunhas da aprovação: José da Costa Pereira, Manoel Silva, Isidoro Manoel Rodrigues, José Mateus (Gonçalves Molle) e Manoel Rodrigues Lua, “todos desta freguesia, pessoas livres maiores de quatorze anos.” [grifos nossos]. Excetuando-se o tabelião, o padre Bento da Mota e as testemunhas José Mateus e Manoel Rodrigues Lua – os dois primeiros por terem sido qualificados e terem sido figuras de destaque na freguesia (embora seja grande a possibilidade de o tabelião ser da cidade do Rio de Janeiro); os dois últimos por aparecerem em diversos documentos –, das outras testemunhas nada mais se informou além dos nomes. O pároco da freguesia de Iguaçu, o vigário Miguel de Azevedo Santos, trasladou, na íntegra, o testamento para o livro de óbitos da matriz no dia 10 de dezembro de 1788, mesmo dia do falecimento e enterro de Antônio Bento da Cruz.

Como registrado pelo tabelião, todas as testemunhas da aprovação eram pessoas livres; dessa forma, se reforça o que se percebeu nas fontes: os forros não se fizeram presentes nos testamentos dos senhores forros, exceto, em geral, familiares e parentes, como testamenteiros ou herdeiros, se não assinando, já que não sabiam fazê-lo, ao menos com os nomes registrados. As hipóteses seriam: a) de que os forros não sabiam realmente assinar. No entanto, havia o “costumeiro sinal de uma cruz” utilizado por aqueles que não sabiam escrever e assinar; dessa forma, tal hipótese não se tornaria tão plausível. Além disso, se em circunstâncias especiais até cativos poderiam ser testemunhas em testamentos, mais ainda seriam os forros, por seus estatutos jurídicos de libertos228; b) outra hipótese seria a de que os forros realmente não formavam um grupo social com consciência de identidade social e cultural, não tinham relações interpessoais, somando-se a isto a grande extensão do território

103

da freguesia e as diferentes épocas e locais das redações dos testamentos, que teriam impossibilitado tais contatos; c) a terceira hipótese seria a de que, levando em conta que não formavam um grupo social ou até mesmo de que se conhecessem, os forros, aplicando a lógica de suas estratégias de ascensão social, transmissão geracional de patrimônio e status social e manutenção de sua estima social, prefeririam estabelecer ligações orgânicas muito mais com livres do que com outros forros, marcando suas posições, seus lugares sociais, através de tais relações.

A trajetória do alferes Antônio Bento da Cruz é representativa de como a mobilidade social de um (ex)escravo poderia ser bem sucedida em alguns casos: era africano, quando a maior parte dos que alcançavam a alforria era notadamente formada por crioulos; era do sexo masculino, quando as mulheres eram majoritariamente as mais beneficiadas com a liberdade, em especial, também as crioulas. Além disso, embora ainda não se conheça como se deu seu processo de alforria, alcançou a liberdade, passou a ser sitiante e senhor de escravos e outros bens, o que representava um determinado grau de acumulação. Por fim, chegou, por meandros ainda desconhecidos, ao posto de alferes, que ainda que não fosse uma patente muito elevada, lhe conferia um lugar social privilegiado, tendo sido ele um egresso do cativeiro229. O novo

status social de senhor de escravos e de bens de raiz e o posto de alferes colaborava, em certa

medida, na “melhoria” de sua qualidade e o afastava de seu passado cativo, diferenciando-o dos seus iguais, os libertos, ainda que isso pudesse não apagar totalmente o estigma de sua origem escrava. Como é notório, a maioria dos 13 forros senhores e muitos de seus familiares e parentes, teve os nomes lançados nos assentos de óbitos e nos testamentos acompanhados de suas respectivas qualidades – pardo, pardo forro, preto, preto forro –, ou seja, apesar da ascensão social e da acumulação, suas qualidades ainda seguiam seus nomes, sinalizando a origem cativa. Ainda assim, distinguiam-se uns dos outros de acordo com suas possibilidades econômicas e do prestígio social do qual gozavam.

No documento Download/Open (páginas 115-118)