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José da Paixão Ramos

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III.6. Com nome e sobrenome: a trajetória de vida dos forros senhores de Iguaçu

III.6.11. José da Paixão Ramos

José da Paixão foi o único dos senhores forros que não teve um assento de óbito registrado no Livro 11; a busca por este registro em outros livros da freguesia de Iguaçu foi infrutífera até o momento; é possível que tenha havido um ato falho dos responsáveis por este serviço na paróquia e o óbito jamais tenha sido lançado. Assim, algumas informações, tais como o local de enterramento e a mortalha, entre outras, não puderam ser esclarecidas, ficando apenas como determinações no testamento, sem possibilidade de comprovação; outros dados não puderam ser levantados, já que o inventário post-mortem do testador também não foi encontrado. De todos os 37 testamenteiros, apenas de dois não foram registrados os óbitos: este, do preto forro José da Paixão e o de um senhor livre.

Uma das determinações de José da Paixão foi com relação ao local de sepultamento. Ele ordenou que, caso viesse a falecer estando na freguesia de Iguaçu – o que significa a possibilidade de que pudesse se ausentar da mesma – seu corpo seria enterrado no cemitério da igreja de Piedade. Conforme anteriormente informado, o cemitério, o adro e a fábrica eram de competência da paróquia, ou seja, administrados pelo pároco da matriz; como não havia cemitério externo, estes enterramentos eram feitos dentro do prédio da igreja; eram as covas de menor custo e, em muitos casos, facultadas gratuitamente, por caridade, aos mais pobres paroquianos. Outra determinação dizia respeito ao hábito de enterramento. José indicou que seu corpo fosse amortalhado em “um pano branco”, sendo encomendado por seu reverendo pároco, mas sem o assento de óbito não há como confirmar se as duas determinações foram cumpridas.

A respeito dos sufrágios, ordenou que se rezassem por sua alma, quatro missas de corpo presente “de esmola costumada”. Como visto, a esmola costumada para este ofício pio na freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu no final do século XVIII era de 640R por cada missa. Dessa forma, José gastou 2$560R no total com as mesmas. Ordenou poucos ofícios pios; dentre estes o seu testamenteiro deveria entregar ao capitão João da Costa Pinheiro ou ao tenente Bento Antônio Moreira, militares da freguesia, a sua terça (ou o que restasse da mesma), para que os ditos militares a enviassem em moeda corrente para a Santa Casa da Misericórdia de Braga, para que se dissessem missas por sua alma e de sua falecida mulher. José não revelou a quantidade de missas a serem rezadas, nem se descobriu ainda a natureza de sua ligação com a dita Santa Casa de Braga e quanto em moeda restou de seu patrimônio para ser enviado para Portugal.

O testamento de José foi redigido no dia 30 de dezembro de 1796, na freguesia de Piedade do Iguaçu, encontrando-se o testador, segundo suas próprias palavras e como de praxe, “em [seu] perfeito juízo e entendimento”, informação confirmada pelo escrivão quando da aprovação do testamento no mesmo dia e local, possivelmente no mesmo ato, na casa de morada de Joaquim Pedro de Andrade. O redator do testamento de José da Paixão, a seu rogo, foi Joaquim Francisco da Silva Lavro, que também, como era o costume e previsto em lei, assinou como testemunha do pedido de redação do testador. José da Paixão declarou que

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assinou de “[seu] próprio punho e sinal”; é possível que sua assinatura fosse, como no caso de Manoel Gomes Torres, um “sinal costumado que é uma cruz”, já que muito provavelmente, José também se enquadrava no perfil dos forros: não sabia ler nem escrever. As testemunhas presentes na aprovação foram: o redator, Joaquim Francisco da Silva Lavra, Francisco Vieira Leão, Joaquim José Maciel, José Borges de Souza e Antônio José Moreira; segundo o escrivão, José Matheus Gonçalves Molle, “todos residentes na freguesia e maiores de quinze anos”; em geral, a idade prevista para poder assinar como testemunha, testar e representar era de quatorze anos, mas nesta e em mais uma oportunidade, o escrivão Molle registrou as aprovações com a informação de “maiores de quinze anos”243. Como na maior parte das vezes ocorreu, do redator e das testemunhas nada mais foi registrado além dos nomes, dessa forma, impossibilitando qualquer tentativa de estabelecer laços orgânicos entre os mesmos e o testador, com o intuito de estimar seu status social a partir de tais relações. No entanto, o redator, Joaquim Francisco da Silva Lavra, era figura recorrente nos testamentos da freguesia, redigindo e assinando como testemunha em algumas oportunidades. Poucos, na verdade, são os indivíduos que se sobressaem nas fontes, aparecendo mais de uma vez ou ao menos uma, mas com informações sobre sua qualidade, posto, cargo e outros dados.

Como não se encontrou o assento de óbito, não houve como descobrir a data exata de seu falecimento e enterramento; no entanto, é possível que tenha morrido por volta de 24 de janeiro de 1797, pois foi quando o coadjutor da freguesia, o padre Domingos Rosa de Andrade, trasladou o testamento para o livro de óbitos, muito embora tenha-se visto anteriormente em outros casos que alguns testamentos foram lançados posteriormente, inclusive após mais de sete meses depois do falecimento do testador. Isto significa que José da Paixão morreu por volta de vinte e cinco dias após a redação de seu testamento, o menor tempo entre a redação e a morte do testador entre os forros; entre os livres encontraram-se períodos muito mais curtos entre um e outro evento: até de uma semana em mais de um caso e um outro no qual o testamento foi redigido no dia da morte do testador. Não se pôde descobrir sua idade, como, a rigor, o foi com todos os senhores forros (e também com os livres do Livro 11). Seu testamento foi feito na iminência de sua morte; portanto, é provável que, uma vez que José se encontrava em bom estado de saúde, segundo suas palavras e a declaração do escrivão, estivesse, então, em idade avançada para os padrões da época.

José da Paixão Ramos era preto forro natural da Costa da Mina; havia sido casado com Andreza Maria Pereira (sem mais informações além do nome), de cujo matrimônio não houve filhos, logo, sem herdeiros necessários. O assento deste matrimônio não foi localizado. No entanto, José da Paixão revelou que no estado de solteiro teve um filho natural chamado Custódio, com Lourença Maria Ramos, da qual também nada mais se sabe. José instituiu seu filho, Custódio, como seu herdeiro universal de tudo que restasse após o pagamento de suas dívidas e cumpridos os seus legados, mas não informou a idade do mesmo, onde residia e se era cativo ou forro. O testador não prestou informações maiores a respeito de familiares e parentes, possivelmente porque não os tinha, como ocorreu com a maioria dos forros senhores. Também não revelou dados de sua vida no cativeiro, quem havia sido seu senhor ou como se tornou forro, passando a ser senhor; não se pôde saber se sempre viveu, mesmo quando cativo, na freguesia de Iguaçu, ou se viveu em outra localidade antes de ir residir na mesma. Este tipo de informação também não pode ser levantado para a quase totalidade dos forros senhores de Iguaçu.

Como testamenteiros para a realização da tarefa imposta pela função, José nomeou, em primeiro lugar, a José Veloso da Silva, em segundo a Manoel Antônio Bexiga e, em terceiro, ao senhor da casa onde se deram os atos de redação e aprovação do testamento de José, Joaquim Pedro de Andrade. O fato de ter nomeado apenas terceiros e não familiares ou

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parentes se deu, muito provavelmente, porque José não os tinha, embora isso não fosse determinante para os testadores forros, pois muitos tinham familiares, mas nomearam terceiros para a função, fato certamente ligado ao fortalecimento dos laços sociais estabelecidos anteriormente, visando a manutenção, através de tais redes de relações, de seu prestígio social. José não revelou o prêmio ao testamenteiro que assumisse a função, que em geral, pela lei e pelo costume, era de 20%. Como foi comum em todos os 37 testamentos do Livro 11, rogou “às justiças de Sua Majestade se cumprissem todos os seus legados como nele [no testamento] dispostos”, o que não significa que pretendesse ou não que houvesse inventário, fato que também não deixou claro; alguns dos senhores forros e dos livres deixaram explícito se desejavam ou não a entrada do processo de inventário na justiça.

Como exposto no capítulo II, José da Paixão era, possivelmente, o mais atuante, e provavelmente o único senhor forro a atuar no mercado de crédito da freguesia de Iguaçu e o único claramente envolvido no aluguel de escravos por jornais. No mercado de crédito surge praticamente como credor apenas, com créditos a receber de empréstimos a juros, aluguéis de escravos e venda de ferramentas a diversos indivíduos da freguesia, incluindo alguns potentados locais. Os créditos totais eram da ordem de 99$700R. Somando-se a este valor os 172$800R em moeda corrente que declarou possuir em seu poder, provenientes de seus negócios, chega-se à quantia de 272$500R; fora este valor, havia, ainda, seus bens de raiz: sítio com benfeitorias; além de seus cativos e outros bens não declarados, o que demonstra o sucesso econômico e social deste forro, que além de ser o forro mais bem sucedido, tinha mais posses que pelo menos um terço dos livres e equiparava-se em patrimônio à mais da metade destes. Suas dívidas se resumiam a uma pataca (320R), embora tenha determinado ao seu testamenteiro, por costume, que se pagassem módicas quantias a credores fidedignos que eventualmente surgissem após sua morte, lhe apresentando créditos (recibos). No lado oposto, foi um dos que declarou uma das menores quantidades de escravos: dois ou três (não deixou claro quantos escravos tinha), ainda que a posse de três escravos fizesse parte da média geral para os casos estudados. No entanto, como atuava no aluguel de escravos, é possível que possuísse outros cativos, embora não tenha deixado tal dado claro em nenhum trecho do testamento, assim como também não informou se atuava na produção de alimentos, como a maioria dos senhores forros, o que certamente requereria uma quantidade maior de escravos e, talvez, se fosse o caso de plantar mandioca e produzir farinha, possuir uma engenhoca (casa de farinha), o que, da mesma forma, não informou.

A trajetória de José da Paixão Ramos – assim como a do também preto forro, o alferes Antônio Bento da Cruz – ilustra bem o leque de possibilidades de mobilidade social na aparentemente imóvel sociedade de Antigo Regime da América portuguesa: era do sexo masculino, africano, foi cativo, angariou pecúlio, se alforriou e se tornou proprietário de bens de raiz e senhor de escravos, reproduzindo a lógica da sociedade em que vivia, distanciando- se de seu passado no cativeiro e legitimando seu lugar social. Mais importante que a mobilidade social, que poderia estar ligada à riqueza, mas não só a esta, era a estima social do indivíduo, vislumbrada a partir de suas ligações orgânicas com os variados agentes das redes de relações criadas em prol da manutenção de seu status social. No caso de José da Paixão, como visto anteriormente, seus negócios envolviam pessoas de diversos estratos sociais; dentre seus devedores havia desde forros até potentados locais, o que evidencia a grande articulação e inserção deste forro, como exemplo dos outros, na sociedade local, além de seu sucesso econômico.

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