• Nenhum resultado encontrado

João da Silva

No documento Download/Open (páginas 121-124)

III.6. Com nome e sobrenome: a trajetória de vida dos forros senhores de Iguaçu

III.6.7. João da Silva

Falecido em 25 de maio de 1792, na freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu, João da Silva, que era casado com Rosália Maria, foi encomendado e enterrado em uma das sepulturas da irmandade de Nossa Senhora da Conceição, na igreja matriz de Piedade. Recebeu todos os sacramentos, conforme o assento de óbito feito e assinado pelo vigário Miguel de Azevedo Santos, que não informou qual foi o hábito mortuário usado pelo finado. Este, em seu testamento, ordenou que seu “corpo fosse amortalhado em hábito de São Bento”. Também, como era de seu costume, o vigário não indicou a idade do finado ou qual havia sido a causa mortis. João da Silva era dos 13 forros, um dos dois únicos agremiados à irmandade da Conceição, que congregava os pardos forros. Embora sua qualidade/cor não tenha sido registrada, o fato de ter sido filho de pais pardos e de estar agremiado à tal irmandade, indica que muito provavelmente era também pardo. A confraria do Rosário, a mais antiga da freguesia de Iguaçu (1730) era a que congregava a maior parte dos pretos forros, superando em número até mesmo as irmandades do Santíssimo Sacramento e a de São Miguel das Almas. A irmandade da Conceição também tinha menos agremiados.

Seu testamento foi redigido em 20 de março de 1792 (2 meses e cinco dias antes de sua morte, um dos prazos mais curtos encontrados entre os senhores forros entre um e outro evento), em sua casa de morada no sítio onde residia, do qual não citou a localização, na mesma freguesia de Piedade do Iguaçu. Estava, segundo suas próprias palavras, “em [seu]

107

registrar tal informação, já que os loucos, por lei, não podiam testar233. João da Silva, no entanto, não revelou se estava doente naquela ocasião; como faleceu pouco mais de dois meses depois, as hipóteses são de que estivesse enfermo ou fosse idoso, ou ambas as hipóteses. Segundo a informação fornecida pelo escrivão da freguesia, José Matheus Gonçalves Molle, no dia da aprovação do testamento, o testador “se achava de pé em seu perfeito juízo”, o que poderia refletir a realidade, mas que, no entanto, como visto, era uma expressão corrente em tais documentos, ainda que não fosse fidedigna.

Ao escolher seus testamenteiros indicou, em primeiro lugar, sua esposa, Rosália Maria, da qual nada mais se pôde saber além do nome, pois as buscas pelo assento de matrimônio deste casal foram infrutíferas, assim como o assento de óbito da mesma. Em segundo lugar indicou João de Araújo e, em terceiro, Inácio Domingues, aos quais, João informou que pelo dito “trabalho se lhes [daria] a vintena que lhes [pertencesse], conforme a lei”. Destes, da mesma maneira, apenas os nomes foram registrados. A vintena, conforme visto, dependendo dos bens do testador poderia ser um bom prêmio, pois significava em termos de valor proporcional total, um quinto ou 20% do patrimônio do falecido outorgante. Entre os livres a preferência majoritária foi por nomear familiares e parentes como testamenteiros; entre os forros isso aconteceu em cerca de apenas um terço dos casos. No caso de ambos, forros e livres, a escolha refletia a confiança ao se nomear um familiar, parente ou agregado como testamenteiro; por outro viés, no caso específico dos forros, a escolha de terceiros, dependendo das qualidades destes, indicava a estima social dos testadores. Quando o testamenteiro era um potentado local, punha-se a funcionar, na prática, a rede de solidariedade e ligações orgânicas entre pares; assim, quando o testamenteiro, o redator ou as testemunhas pertenciam a um estrato social igual, próximo ou, preferencialmente, acima ao qual pertencia o testador forro, revelava-se uma parte do prestígio do qual gozavam estes.

Conforme dito, João da Silva era agremiado à irmandade de Nossa Senhora da Conceição dos Homens Pardos e segundo informou, na época da feitura de seu testamento estava em dia com os anuais, cujos valores não puderam ser conhecidos. Sendo assim, sua confraria deveria acompanhá-lo e fazer seu “enterro na forma costumada”, dizendo-se-lhe, no dia de seu enterro, ou em outros posteriores, caso em tal dia não fosse possível, quatro missas de corpo presente. Embora ele não tenha determinado o valor de tais missas, se levarmos em conta o preço da “esmola costumada” na freguesia no final do século XVIII, João pode ter gasto pelas quatro missas 2$560R, uma vez que cada missa de corpo presente custava 640R. Além destas missas, ordenou que se rezassem vinte e seis missas de esmola costumada em intenção à sua alma, o que somaria 8$320R, já que a missa ordinária custava 320R, e mais “quatro missas rezadas pelas mais necessitadas almas que estão nas penas do Purgatório”, com custo total de 1$280R, da mesma forma, de 320R, ou uma pataca cada uma. O valor total

233

Dos 37 testamentos, apenas de um testador houve registro de doença mental. O vigário Miguel de Azevedo Santos registrou no assento de óbito da testadora livre, Clara Maria de Jesus, falecida a 21 de novembro de 1796 na freguesia de Iguaçu, que a mesma fora encomendada e recebera sepultura na cova da fábrica, mas, no entanto, “sem sacramentos, por ser louca”. Ao contrário desta informação do clérigo, no testamento, redigido na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em 6 de janeiro de 1795, como de praxe, a testadora afirmou que estava “doente, mas em seu perfeito juízo” [grifo nosso]. Apesar da contradição e de sua convicção de que Clara Maria sofria de doença mental, o pároco informou que a mesma “faleceu com testamento, que não [lhe] apresentaram por estar [a testadora] na cidade no tempo de seu falecimento”. Isso significa que, apesar de “louca”, a testadora teria (como, de fato teve) o testamento lançado no livro pertinente sem maiores complicações, embora a lei previsse o contrário. Não só o vigário Azevedo desrespeitou a lei nesse sentido, caso fosse Clara Maria reconhecidamente “louca”; seu testamento foi aprovado no dia seguinte à redação na mesma cidade pelo escrivão Inácio Miguel Pinto Campelo, que declarou que encontrou “a testadora doente, porém em seu perfeito juízo”. [grifo nosso]. De acordo com a lei, os loucos não poderiam fazer testamento. Cf. Testamento de Clara Maria de Jesus. Livro 11. ACDNI. CÓDIGO PHILIPPINO (...). “Das pessoas, a que não he permitido fazer testamento”. Tomo III, Título LXXXI. pp. 908-910.

108

gasto por João com as trinta e quatro missas, portanto, alcançou 12$160R, um valor baixo, como o pago por mais de um terço dos senhores forros.

O testador declarou ser natural de Campos dos Goitacazes, no norte da capitania do Rio de Janeiro, e que fora batizado em uma capela de uma fazenda pertencente ao Mosteiro de São Bento naquela região. Não informou a data de seu nascimento (seu assento de batismo ainda não foi localizado), dessa forma, não se pôde descobrir sua idade na época da redação do testamento e na de sua morte; estes dados também, conforme informado, não foram registrados no óbito pelo vigário, embora as normas assim o ordenassem. João havia sido cativo da mesma fazenda de São Bento e era filho legítimo de José da Silva, pardo forro, e de Feliciana Alves Monteiro, que era parda cativa daquele mosteiro e fazenda; ambos já haviam falecido quando João redigiu seu testamento. Não se pôde saber como, quando e os motivos pelos quais João veio a residir na freguesia de Piedade do Iguaçu, nem tampouco como obteve seu patrimônio; no entanto, como seu pai era pardo forro, é possível que este tenha empreendido alguma forma de comprar a liberdade do filho, como costumeiramente se fazia.

João e sua esposa Rosália Maria não tiveram filhos, logo, sem herdeiros deste matrimônio. No entanto, de acordo com as informações prestadas pelo próprio, ele teve, no estado de solteiro, uma filha natural chamada Maria Egipciaca, que era filha de Verônica, também cativa do mesmo mosteiro de São Bento, na fazenda de campos dos Goitacazes. Sua filha, segundo ele, era forra e ele a constituiu como sua universal e necessária herdeira das duas partes que lhe pertenciam da sua meação do casal234. O remanescente de sua terça foi deixado como esmola ao “pardinho” Dezidério, que residia em sua casa “pelo grande amor que lhe [tinha] e descargo [sic] [de sua] consciência”. É possível que Dezidério fosse um filho ilegítimo de João, daí que ele precisasse “descarregar” sua consciência, como ocorria com frequência, tanto entre senhores livres quanto entre forros. Mas, no entanto, isto é apenas uma suposição, uma vez que o testador não deixou registrada nenhuma informação neste sentido.

João tinha apenas dois escravos: Miguel, de nação Benguela, que declarou ter comprado por 1$000R, o que causa estranheza, pois foi um valor muito baixo para a época (ou qualquer época) para um escravo. É possível que tenha havido um equívoco do redator e o erro, tendo passado despercebido, foi reproduzido no traslado para o Livro 11. Sua outra cativa era a crioula Rita, avaliada por ele como valendo “pouco mais ou menos (...) seis dobras”, ou seja, em réis, 76$800R, valor mais apropriado àquele contexto. Em seu sítio, possuía uma casa de farinha, com forno e roda, prensa, cocho e todos os demais pertences utilizados no fabrico da farinha de mandioca, no valor de 16$000R; um cavalo com arreios e demais acessórios, também no valor de 16$000R; dois pares de fivelas, um de sapatos, um de calções e outro de ligas, tudo no valor de 4$000R, segundo sua própria avaliação (João indicou dois pares, mas relacionou três). Além destes bens, havia as benfeitorias e plantações de mandioca do sítio de sua morada, dos quais não estimou valores. Conforme ordenado por João da Silva, todos estes bens deveriam ser avaliados depois de sua morte, visando o cumprimento de seus legados e heranças, a partir da venda dos mesmos. Embora o valor de seus bens de raiz não tenha sido informado na totalidade, a soma dos outros bens listados chegou a 113$800R.

João declarou não ter tido dívidas; no entanto, como praxe da parte dos legados materiais de todos os testamentos, informou que se acaso pessoas “fidedignas” aparecessem cobrando alguma dívida que eventualmente pudesse ter contraído, mas que não se recordasse

234 Como já exposto, o patrimônio do casal era dividido em duas meações (duas metades iguais), sendo cada uma

das metades pertencente a um dos cônjuges; cada meação era dividida em três terças: uma delas destinada aos sufrágios e ofícios pios, as duas outras terças serviam para pagar eventuais dívidas, mas principalmente, para os herdeiros. Em Portugal, no período pombalino, por força de lei, houve alterações nesta prática consuetudinária: os legados para a alma chegaram a ser reduzidos apenas à “terça da terça”. Cf. AMORIM, op. cit. p. 5.

109

no momento da redação do testamento, seus testamenteiros lhes pagariam “sem contenda de justiça”, pois isso certamente geraria custas judiciais. Da mesma forma, não declarou ter tido créditos a receber. Dessa forma, não se enquadrou, como a maioria dos forros e dos livres, como atuante no mercado de crédito da freguesia.

Um dos 37 senhores livres analisados neste estudo, o português Antônio Francisco de Mello, um dos poucos letrados da freguesia naquele período, foi quem redigiu o testamento de João da Silva, entre outros, a seu rogo. Como os demais senhores forros, João não sabia ler nem escrever, por isso, assinou, conforme o mesmo afirmou, de próprio punho no testamento, fazendo seu sinal costumeiro, que era “uma cruz”. Antônio Francisco de Mello, como de praxe dos redatores, assinou o testamento como testemunha do pedido de redação de João da Silva, em 20 de março de 1792.

A aprovação se deu em 30 de março de 1792, dez dias após ter sido redigido, na própria casa de morada de João da Silva. Como descreveu o ato, o próprio escrivão, José Matheus, a aprovação foi

“numerada e rubricada pelo alto delas [das folhas] com o meu cognome, que diz – Molle – e depois com cinco linhas azuis e lacrado com cinco pingos de lacre o tornei a entregar ao dito testador ao que tudo foram testemunhas presentes Antônio Francisco Mello, Manoel Gonçalves de Carvalho, Victorino de Medeiros, João Deveiras da Cruz, Francisco dos Santos, todos maiores de quinze anos, moradores nesta dita freguesia, que assinaram com o dito testador e comigo, José Matheus Gonçalves Molle, escrivão das mandas nesta dita freguesia, que o assinei, digo, que o escrevi e assinei em público e raso [assinaturas]. In testimonium Veritatis, José Matheus Gonçalves Molle”.235

O vigário da paróquia de Iguaçu, Miguel de Azevedo Santos, trasladou o testamento de João da Silva ipsis litteris para o livro de óbitos da freguesia no mesmo dia de sua morte e enterramento, 25 de maio de 1792.

No documento Download/Open (páginas 121-124)