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Joana Gonçalves

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III.6. Com nome e sobrenome: a trajetória de vida dos forros senhores de Iguaçu

III.6.6. Joana Gonçalves

Falecida com todos os sacramentos no dia 27 de agosto de 1789, na freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu, a preta forra Joana Gonçalves foi encomendada e enterrada em uma das covas da confraria de Nossa Senhora do Rosário – por ter sido agremiada desta irmandade –, na igreja matriz. O vigário Miguel de Azevedo Santos não informou no assento de óbito sobre a mortalha utilizada por Joana, no entanto, em seu testamento, ela havia determinado que seu corpo fosse amortalhado em hábito de Santo Antônio. Como já dito, nem sempre ocorria de ser o finado enterrado com a mortalha pretendida, pois em muitas ocasiões não havia oferta da que se tinha indicado, optando o testamenteiro pelo hábito que estivesse disponível e fosse mais adequado. Também, como regra para os casos estudados, não foi informada a idade da finada, se morrera por doença ou por ser idosa.

Do testamento de Joana foi trasladada apenas a parte referente ao pio230, pelo mesmo pároco Miguel de Azevedo, no dia 28 de agosto de 1789, dia seguinte ao do falecimento e sepultamento de Joana, de forma que inúmeras informações não foram anotadas, impossibilitando o exame de determinados aspectos e fatos relacionados à esta senhora forra.

229 Os alferes faziam parte dos “oficiais inferiores” das Ordenanças e estavam abaixo dos oficiais de alta patente:

capitão-mor, sargento-mor e capitão, e situavam-se acima dos sargentos, furriéis, cabos-de-esquadra, porta- estandartes e tamboreiros. Cf. COSTA, op. cit. 2007. [s.p.].

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Isto ocorreu em aproximadamente um sexto de todos os 37 testamentos; no caso dos 13 forros, foi o único caso ocorrido; entre os 24 livres houve ao menos 4 ocorrências; em um quinto testamento de livres, não consta a informação de que fora registrada apenas a parte concernente ao pio, no entanto, este testamento praticamente aborda as questões a este tema referentes, com a exceção de dois tópicos.

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A testadora deixou registrado que na data da redação de suas últimas vontades, encontrava-se em seu “perfeito juízo e entendimento”, mas não revelou se, àquela época, estava doente ou com saúde. Tampouco registrou sua idade nesse período; da mesma maneira e seguindo a regra para todos os casos, o escriba não registrou a idade da testadora no assento de óbito, apesar da regra canônica prever seu registro.

Natural de Benguela e na mesma batizada, em localidade e data não informadas, Joana foi casada com João Ramos, de nação Congo, já falecido, de cujo matrimônio não houve filhos. O assento deste matrimônio não foi localizado, tanto quanto o assento de óbito de João Ramos. Nada é informado a respeito de familiares ou parentes da mesma, o que ocorreu com dois terços dos forros. Também não há dados a respeito da trajetória anterior de Joana antes de a mesma se tornar forra, tais como quem havia sido seu senhor ou onde vivera antes de residir na freguesia de Iguaçu. Da mesma forma, de seu marido nada mais se informou além do nome.

Sobre os legados pios, Joana determinou que no dia de seu falecimento, caso fosse permitido, seu testamenteiro mandaria dizer na freguesia de Iguaçu “vinte missas de corpo presente de esmola de cruzado”, e não podendo ser naquele dia, o seria em dias posteriores. O cruzado no final do século XVIII, como já informado, valia 400R231 e as missas de corpo presente na freguesia de Iguaçu, de acordo com Pizarro, custavam 640R, o que quer dizer que Joana reservou e ordenou menos dinheiro para pagar tais missas. Considerando o valor correto das missas de corpo presente, deveriam ser pagos 12$800R, ou o valor de uma dobra, mas de acordo com as informações do testamento, Joana pagou apenas 8$000R, ou seja, 4$800R a menos. A quantia gasta com seus legados pios foi das mais baixas entre os senhores forros e ainda mais baixa se forem levados em conta os valores despendidos pela maioria dos senhores livres.

Para serem seus testamenteiros, Joana Gonçalves rogou, em primeiro lugar, a João Gomes e em segundo, ao capitão João Barboza; segundo a testadora, estes dois primeiros testamenteiros eram residentes na freguesia de Iguaçu; o terceiro testamenteiro, José Duarte, era morador na cidade do Rio de Janeiro. A testadora não forneceu qualquer informação adicional ou da natureza das relações entre a mesma e estes três indivíduos. Conforme visto anteriormente, raramente outros forros estiveram flagrantemente presentes em atos de redação de testamentos, aprovações ou mesmo assinaram documentos de outros forros (com uma cruz); as exceções ocorreram apenas quando cônjuges, familiares e parentes eram mencionados como herdeiros, legatários ou testamenteiros, embora os casos não tenham sido muito numerosos. A maior parte dos testamenteiros e testemunhas dos senhores forros era livre e, em alguns casos, potentados locais, como o capitão acima citado, párocos e ex- senhores, fato que indica de forma indireta a estima social dos forros testadores. Apesar disso, grande parte dos redatores, testemunhas e testamenteiros foram identificados apenas pelos nomes, não permitindo revelar aspectos de tais relações através dos lugares sociais destes indivíduos, pois não foram qualificados. Infelizmente, da mesma forma e, possivelmente, pelos mesmos motivos dos outros senhores forros, não se localizou o inventário post-mortem de Joana para que se averiguasse o cumprimento de seus legados e outras informações importantes que, possivelmente, deixaram de ser anotadas quando da trasladação do testamento original para o livro de assentos de óbitos.

Joana deixou de esmola aos pobres da freguesia meia dobra, ou seja, 6$400R; além desta, deixou à sua irmandade do Rosário 12$800R, esmola equivalente a uma dobra inteira. Em geral, pelo costume e pela lei, se deixava ao testamenteiro, como pagamento pela função, a vintena (20% do valor total dos bens testador, ou um quinto do patrimônio). No entanto, Joana deixou ao seu testamenteiro (aquele dentre os três indicados que o aceitou e o pôde ser)

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duas dobras (25$600R) como “um agradecimento do zelo que [esperava] do [seu] testamenteiro para benefício da [sua] alma”. Como se desconhece o valor total do patrimônio de Joana, não há como avaliar se houve desvantagem para o testamenteiro. A soma obtida apenas das quantias presentes no testamento, alcançou o valor de 168$000R, mas não estão presentes no mesmo todos os bens e seus valores, pertencentes a Joana, como seu sítio. Considerando apenas os 168$000R, o testamenteiro levou uma desvantagem de 8$000R, pois a testadora estava pagando 25$600R quando a vintena de 168$000R equivalia a 33$600R. Pelo menos a metade dos senhores forros gastou até em torno de 50% de seu patrimônio declarado no testamento com os legados232. Parte do patrimônio declarado, em especial o que se empregou nos sufrágios, esmolas e doações, representaria a terça, utilizada geralmente para tais fins. Conforme dito, a trasladação do testamento foi feita apenas da parte concernente aos legados pios (o que era de interesse da Igreja, já que à mesma se destinavam tais quantias, que eram vertidas em ofícios pios), portanto, algumas informações não foram transcritas; é possível que o testamenteiro tenha recebido a vintena e mais as duas dobras, mas isto é apenas uma suposição. O fato é que de nenhum dos senhores forros e de nenhum dos livres foi possível estimar com precisão o valor real do patrimônio apenas através das quantias gastas com os legados pios (relativos às suas terças) ou materiais constantes nos testamentos; no entanto, como dito acima, tais valores forneceram uma aproximação para isto.

Joana Gonçalves determinou que depois de cumpridos todos os seus legados, seu testamenteiro seria obrigado a dispor tudo que restasse de seus bens, em benefício de sua alma e da de seu marido, o que era previsto em lei e foi praxe entre 9 dos 13 senhores forros, já que apenas 4 deles tinham herdeiros descendentes. O prazo deixado por Joana para cumprimento de seus legados e dar conta de seu testamento pelo testamenteiro foi de seis anos, fugindo em muito ao convencional, que era de um ano pela lei, podendo ter mais um ano de prorrogação aprovado pelo juiz dos “defuntos e ausentes”.

Houve menção, pela testadora, à posse de apenas quatro escravos: Joaquim “negro”, Maria “escrava” e as duas filhas desta, que não foram identificadas pelos nomes nem foram informadas suas idades ou a paternidade. A Joaquim, Joana determinou que o mesmo teria um prazo de cinco anos a partir da morte de sua senhora para conseguir cinco dobras (64$000R) para o pagamento de sua alforria (não informou se este seria o valor total do acordo com seu escravo ou apenas parte do valor). Neste período de cinco anos, seu testamenteiro não poderia ocupar os serviços de Joaquim em seu benefício e assistência. Caso no fim deste prazo, Joaquim não tivesse cumprido o trato, seu testamenteiro poderia vendê-lo a quem lhe conviesse. Para a escrava Maria, sua senhora determinou o mesmo prazo de cinco anos, no entanto, com um valor um pouco menor, quatro dobras, ou 51$200R (da mesma forma, não indicou se este seria ou não o valor total da compra da alforria pela escrava). As condições seriam as mesmas: não conseguindo obter a quantia no prazo determinado, poderia ser vendida pelo testamenteiro, que também não poderia utilizá-la em seu serviço. Aqui, aparentemente, percebe-se que o intuito de Joana era o de “ajudar” e facilitar a seus cativos a obtenção dos recursos para poderem pagar por suas alforrias, dando-lhes prazo e proibindo seu testamenteiro, que ficaria com sua assistência e governo, de ocupá-los em benefício próprio, o que certamente atrapalharia as atividades de arrecadação de pecúlio dos ditos escravos e, consequentemente, não haveria arrecadação das citadas quantias que, ao cabo, seriam agregadas ao patrimônio da testadora. É possível que na prática, o testamenteiro tenha passado “Carta de Corte” para estes cativos, pois seria o documento específico para tal permissão de ausência para trabalhar e arrecadar pecúlio, através de atividades laborativas. No caso de insucesso dos escravos Joaquim e Maria estes seriam vendidos e, provavelmente, as

232 Isto poderia representar a terça dos mesmos, o que em tese significaria um sexto do patrimônio do casal, que

era dividido em duas meações e três terças cada uma destas; uma destas terças de cada indivíduo era destinada aos legados pios. Cf. AMORIM, op. cit. p. 6.

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quantias conseguidas com a venda dos mesmos, seriam vinculadas ao patrimônio e revertidas em sufrágios pela alma de Joana e pela de seu marido, João Ramos, conforme determinado pela testadora. De acordo com Joana Gonçalves, seu testamenteiro lhes passaria “logo suas cartas de liberdade, sem haver nisso nenhum impedimento”, quando da entrega dos valores acordados no prazo determinado. De uma ou outra forma, com a dita “ajuda”, o patrimônio da senhora forra seria acrescido de tais somas, fosse pelo pagamento feito pelos escravos por suas cartas de alforria ou com a venda dos mesmos. A respeito das duas escravas, filhas de Maria, Joana não informou nenhum dado referente a alforrias ou venda; no entanto, ordenou que os bens que se achassem de suas “portas a dentro” fossem deixados por esmola às mesmas, o que pode significar que Joana Gonçalves deveria ter as ditas escravas em algum grau de estima.

O redator do testamento foi José Marques Tavares, que o fez a rogo da testadora que, como os outros senhores forros, não sabia ler nem escrever, assim como a maioria dos senhores livres. Tavares também assinou, como de costume, como testemunha do pedido de Joana para que se redigisse o documento, em 16 de abril de 1787, na cidade do Rio de Janeiro. Isto ocorreu dois anos e quatro meses antes de seu falecimento (27 de agosto de 1789), ou seja, como a grande maioria dos testadores forros e livres, o período de tempo entre a feitura do testamento e o falecimento do testador ficou dentro do prazo máximo de três anos. A aprovação foi feita pelo tabelião Antônio Teixeira de Carvalho, na cidade do Rio de Janeiro, onde o mesmo residia e atuava, tendo como testemunhas o redator, José Marques Tavares, Manoel Gomes, Lourenço Pereira e Francisco de Sales Moreira Montes. Como ocorreu na maior parte dos casos de testamentos feitos e aprovados por tabeliães na cidade do Rio de Janeiro, as testemunhas foram pessoas arregimentadas por estarem presentes no momento do ato; dessa forma, provavelmente desconhecidas dos testadores e, portanto, sem qualquer vínculo que pudesse significar alguma relação de estima social dos forros de Iguaçu.

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