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Luiz Cabral de Mello

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III.6. Com nome e sobrenome: a trajetória de vida dos forros senhores de Iguaçu

III.6.3. Luiz Cabral de Mello

Falecido em 29 de agosto de 1787, na freguesia de Piedade do Iguaçu, o preto forro Luiz Cabral foi enterrado, como todos os outros 12 senhores forros, no interior da igreja matriz da dita freguesia, em uma das covas da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, por ser agremiado desta confraria, exatamente como havia disposto no testamento. Foi amortalhado em hábito branco, embora não tenha definido a cor e o tipo do mesmo em suas disposições testamentárias. Da mesma forma, ordenou que seu corpo fosse levado no esquife de sua irmandade, acompanhado pela mesma e pelo reverendo pároco da matriz. O vigário Miguel de Azevedo Santos o encomendou e sepultou com todos os sacramentos. A respeito de sua idade, o padre apenas informou que era adulto, o que foi raro, pois como já mencionado, dados sobre as idades, ainda que aproximados, foram escassos nos casos estudados, mesmo dentre os 24 livres.

Com relação aos legados pios, deixou ordenadas quatro missas de corpo presente de esmola costumada, que na freguesia de Iguaçu representavam naquele período, 2$560R, já que o valor de cada missa deste tipo era de 640R. Se acaso restasse algum dinheiro após a apuração de seus bens, determinou que seus testamenteiros mandassem rezar por sua alma meia capela de missas (25 missas), pelo valor da esmola ordinária, que era de 320R (uma pataca), somando no total 8$000R. Rogou também aos testamenteiros que se mandassem dizer, pelo pároco da matriz de Piedade, mais quatro missas de intenção por sua alma de 640R cada uma, sendo uma em honra à padroeira Nossa Senhora da Piedade, outra à Nossa Senhora do Rosário, outra à Nossa Senhora da Conceição e outra a São Miguel, somando as quatro 2$560R. O montante total empregado nos legados espirituais por Luiz Cabral alcançou a cifra de 13$120R, que era um valor modesto, mas já entrando dentro da média da maioria dos senhores forros da freguesia de Iguaçu.

Há conflito de informações no testamento acerca de sua localização à época da redação: ao mesmo tempo em que informou estar em seu sítio, na freguesia de Iguaçu, onde teriam sido redigidas suas últimas vontades, consta no final do documento um dado que revela que, supostamente, teria sido redigido na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. De qualquer forma, fora feito o seu testamento em 13 de setembro de 1786, na época em que residia em seu sítio, na freguesia de Iguaçu; isto se deu onze meses e meio antes de sua morte (dentro da média mínima da grande maioria destes 37 senhores de Iguaçu), estando, como ele mesmo declarou, “em [seu] perfeito juízo e entendimento (...) de pé e temendo (...) [a] morte”. Como estava bem de saúde, fato inclusive atestado pelo tabelião na aprovação, seu temor provavelmente poderia ser atribuído à idade.

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Como testamenteiros, rogou em primeiro lugar a seu ex-senhor, Luis de Magalhães Nogueira221; em segundo ao reverendo pároco da freguesia de Piedade, Miguel de Azevedo Santos; em terceiro lugar a Manoel Martins de Ataíde, sem mais dados a respeito deste último além do nome. Nota-se claramente que a escolha de seu ex-senhor (representando sua gratidão e um vínculo orgânico com o mesmo) e do pároco da freguesia (figura importante, ilustre e notória na sociedade local) como primeiro e segundo testamenteiros, respectivamente, tinha um sentido estratégico, com vistas a reforçar sua estima social e dar visibilidade ao lugar social que ocupava como senhor na freguesia.

Luiz Cabral era natural e batizado na freguesia de Nossa Senhora da Conceição222 (embora tenha tido sua qualidade sempre registrada como preto forro e não como crioulo), que segundo ele, estava anexada no final do século XVIII à freguesia de Santo Antônio de Jacutinga, vizinha à Piedade do Iguaçu. Era filho legitimo de Domingos e Antônia, ambos do gentio de Guiné, que haviam sido escravos de João de Faria (não forneceu mais informações sobre este senhor). Nota-se, neste caso, que Luiz havia pertencido a um outro senhor, que não era o mesmo de seus pais; assim, supõe-se que Luiz pode ter sido vendido a Luis de Magalhães Nogueira quando criança ou jovem. De seus pais forneceu apenas os nomes e não informou se eram vivos ou falecidos à época da redação do testamento. Na grande maioria dos casos, os senhores forros registraram poucas ou raras informações a respeito de familiares e parentes ascendentes, laterais e colaterais; possivelmente pela maior parte dos mesmos não os ter mais à época da redação dos testamentos.

Luiz Cabral casou-se em primeiras núpcias com Isabel de Souza, preta forra do gentio de Guiné, como seus pais; deste matrimônio não tiveram filhos. Depois que Isabel faleceu (o óbito ainda não foi encontrado, assim como os registros deste matrimônio ou do segundo), Luiz casou-se pela segunda vez com Luiza Maria, crioula forra que, embora estivesse viva, havia se separado dele. Talvez, por este motivo, embora não tenha deixado claro, Luiz considerava que a mesma não se qualificava em direito para ser sua herdeira e se acaso ela quisesse se opor às disposições de seu testamento e pretendesse entrar na partilha da herança, deveria devolver as 10 dobras e meia (134$400R) que havia recebido de Luiz. Ele acreditava que ela não iria querer devolver a quantia recebida, então, neste caso, instituiu sua própria alma como herdeira universal de todos os seus bens, ou seja, tudo que restasse após o pagamento de seus legados e dívidas, seria vertido em sufrágios por sua alma. Na prática, significava que a paróquia de Piedade receberia o montante em troca pelos ofícios pios realizados após a morte de Luiz. Este segundo casal também não teve filhos. A maior parte dos senhores forros (9), tanto homens quanto mulheres, mesmo os que foram casados mais de uma vez, não teve filhos; dessa forma, como já dito, a lógica da transferência geracional de patrimônio e status social só se deu em quatro casos dentre todos os 13 senhores forros.

Luiz Cabral possuía três escravos e uma agregada: o preto Mateus, dito como “já de idade” pelo próprio testador e que lhe havia sido deixado em herança por sua falecida primeira esposa, Isabel de Souza, para lhe servir enquanto fosse vivo e, por sua morte, passar sua carta de liberdade sem nenhuma obrigação; Luiz Cabral o deixou liberto no testamento,

221 Conforme já informado, Luis de Magalhães Nogueira havia sido senhor de quatro dos treze forros senhores de

Iguaçu: Domingas Cabral de Mello, Luis Cabral de Mello, Manoel Gomes Torres e sua mulher, Gracia Maria. Há grande possibilidade de que realmente Domingas Cabral e Luiz Cabral possam ter sido parentes, já que ambos tinham um neto homônimo, chamado José Cabral, o mesmo sobrenome e foram cativos desse mesmo senhor.

222 Não foi possível descobrir à qual freguesia de Nossa Senhora da Conceição Luiz se referiu, pois segundo

Pizarro, no final do século XVIII havia a freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Marapicu, mas que já não pertencia mais à jurisdição eclesiástica de Jacutinga, da qual tanto Marapicu quanto Iguaçu haviam sido desmembradas; no território da freguesia de Jacutinga havia: a de Nossa Senhora da Conceição do Pantanal, duas léguas e meia para o nascente; a de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira, da família Correa Vasques e a de Nossa Senhora da Conceição de Sarapuí. Cf. ARAÚJO, op. cit. 2000. pp. 33-36.

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incondicionalmente, além de lhe deixar uma peça de roupa e a ferramenta com a qual Mateus trabalhava. A outra escrava, a preta chamada Maria, que era casada com seu outro escravo, Antônio, ficaria liberta dando duas dobras e meia (32$000R), uma vez que ela já havia feito o pagamento de três dobras (38$400R) do acerto que havia feito com seu senhor, de cinco dobras e meia (70$400R) por sua liberdade; Luiz Cabral deixou para esta escrava sua caixa de guardar roupas. O preto Antônio, marido da escrava Maria, Luiz Cabral deixou liberto sem obrigação alguma, “pelo bem que [lhe tinha] servido” e deixou também um “capote” usado e mais as ferramentas com as quais costumava trabalhar. Sobre a agregada, uma preta forra chamada Maria Inês, não se obteve claras informações da natureza de suas relações e de seus serviços no sítio de Luiz Cabral; sabe-se que era casada, embora o nome de seu marido não tenha sido registrado, e que Luiz dizia “achar-se em [sua] companhia”, sem fornecer maiores detalhes; para esta Maria Inês Luiz deixou alguns objetos de utilidade doméstica: uma caixinha, um frasco e um copo.

Além dos três escravos, quantidade que estava dentro da média de posse na freguesia no final do século XVIII, tanto para os senhores forros quanto para os livres, Luiz Cabral possuía casa de farinha, com roda de ralar mandioca, forno para a secagem e torrefação, três caixas e um tacho pequeno. Provavelmente tinha plantações de mandioca e de outros gêneros que, no entanto, não revelou. Ordenou que estes bens fossem vendidos e que de seu produto se rendessem sufrágios por sua alma.

Além dos problemas que Luiz Cabral alegou ter com a (ex-)esposa separada, parece que também havia complicações de relacionamento entre ele e seu neto, o preto forro José Cabral (homônimo do neto de Domingas Cabral de Mello; talvez fosse o mesmo indivíduo) e a esposa do mesmo, pois Luiz Cabral ordenou que seu neto deveria, na ocasião da morte de seu avô, prontamente dar a seu testamenteiro 25$600R para que se rendessem em sufrágios para a sua alma. Da mesma forma cobrou 7 patacas (2$240R) que estavam em poder da esposa do neto; possivelmente fruto de um empréstimo feito por Luiz à mesma e que não fora devidamente devolvido. Além disso, pediu a intervenção das justiças de sua majestade caso o neto quisesse se opor, tal qual sua ex-esposa, às suas disposições. É bem provável que José Cabral fosse filho de algum filho natural não revelado de Luiz Cabral, uma vez que o próprio testador informou que não teve descendência de nenhum de seus dois matrimônios; assim como, da mesma forma, não deixou nenhum registro de que tivesse tido filhos naturais. No entanto, isto é apenas uma suposição; as buscas pelo assento de batismo de José Cabral nos livros do ACDNI não renderam resultados positivos.

A qualidade do suposto neto de Luiz Cabral, José Cabral (preto forro), registrada no testamento, parece ter resistido ao tempo e ao passar das gerações (embora poucas: 4). Como visto, os pais de Luiz eram cativos de procedência Guiné; Luiz, embora crioulo, era qualificado como preto forro, assim como seu neto, tendo ou não este sido cativo anteriormente. Dessa forma, ainda que pertencentes a gerações diferentes, estavam todos ainda muito próximos de sua origem escrava e o estigma se evidenciava pelo registro de suas qualidades, que remetiam ao cativeiro e, possivelmente, se manifestavam em suas relações cotidianas, influindo na definição de seus lugares sociais e na estima da qual gozavam.

Por também não saber ler nem escrever, Luiz Cabral rogou a João Marques Xavier, na cidade do Rio de Janeiro, que redigisse o testamento, em 13 de setembro de 1786 (11 meses e 16 dias antes de seu falecimento, ou seja, como a maioria dos testadores, postergou a preparação de seus legados materiais e espirituais). O mesmo João Marques assinou como testemunha de que fez a redação a rogo do testador, como era o mais comum e previsto em lei; também como de praxe, nenhuma informação adicional sobre o redator foi fornecida além do nome. Luiz Cabral “assinou” o testamento com seu sinal costumeiro (uma cruz). A aprovação se deu na mesma cidade e data, na casa de morada do tabelião, Antônio Teixeira de Carvalho, na qual assinaram o testador, o redator, João Marques Xavier e as testemunhas

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presentes: Félix Marinho de Castro, José Pereira Luis, Manoel Jeorge [sic] Luiz e Joaquim José Trindade; destes indivíduos, da mesma maneira, apenas o nome foi informado. O testamento de Luiz Cabral de Mello foi trasladado ipsis litteris para o livro de óbitos da paróquia de Piedade no mesmo dia de seu enterramento, 29 de agosto de 1787, pelo vigário Miguel de Azevedo Santos.

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