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Domingas Cabral de Mello

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III.6. Com nome e sobrenome: a trajetória de vida dos forros senhores de Iguaçu

III.6.2. Domingas Cabral de Mello

Natural do “gentio de Guiné” e batizada em uma freguesia não informada na cidade de Luanda, a preta forra Domingas Cabral declarou ter vindo para “esta terra com a idade de doze anos”; como não informou em que ano isto ocorreu, não foi possível descobrir sua idade precisa. Supõe-se que fosse idosa para os padrões da época, uma vez que já tinha netos, jovens e adultos. Infelizmente, nenhum dos 13 forros, assim como nenhum dos livres, teve os dados referentes às suas idades precisas registrados nos óbitos.

Domingas não indicou em que lugar viveu até residir na freguesia de Iguaçu ou se, desde sua chegada à América portuguesa, teria vivido na mesma. Quando fez seu testamento, declarou ser moradora em Nossa Senhora do Pilar do Iguaçu, mas provavelmente se equivocou, já que foi sepultada em Piedade, então, é provável que fosse paroquiana da freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu e não da de Nossa Senhora do Pilar, distante para o nascente duas léguas, nas margens do mesmo rio Iguaçu213.

A testadora foi casada com Sebastião Cabral, preto Benguela, já falecido na época da redação do testamento (o óbito e o testamento de Sebastião – caso tenham existido – ainda não foram localizados, logo não se obteve dados a seu respeito, à exceção do nome). Domingas não informou se enquanto durou este matrimônio residia na freguesia de Iguaçu ou outra localidade. O casal teve três filhos: Inácio Cabral, Inácia Cabral e Manoel, todos já falecidos quando o testamento foi redigido. Os dois netos de Domingas, José Cabral e Guadiana, foram nomeados por ela como seus únicos herdeiros. Conforme visto no caso deste casal – Guiné e Benguela – e, anteriormente, com outros casais, parece não ter havido endogamia entre os 13 forros senhores de Iguaçu e seus cônjuges, embora como também observado, a amostra seja de reduzidas proporções.

A respeito dos filhos de Domingas Cabral de Mello há algumas informações conflitantes quanto à sua quantidade. Embora ela mencione em determinado trecho do testamento que tinha apenas três filhos (os acima citados, Inácio, Inácia e Manoel), em outra parte informa que em caso de morte de sua neta Guadiana, sua herdeira, a herança que a esta cabia deveria ser revertida para que se rezassem missas pelas almas de sua mãe (uma das filhas de Domingas, mas não identificada) e de suas tias. O interessante é que aqui Domingas

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menciona a sua filha já citada, Inácia Cabral, como sendo uma das tias de Guadiana, o que a exclui de ser a mãe da mesma; além disso, menciona outras três tias para sua neta: Marcela, Joana e Tereza. Sendo estas, juntamente com Inácia, tias de Guadiana, teria tido, então, Domingas, mais filhos do que mencionara antes? Nominando todos como filhos de Domingas, seriam sete no total: os primeiramente mencionados Inácio Cabral, Inácia Cabral e Manoel, e as outras três tias, Marcela, Joana e Tereza e mais a ainda não identificada mãe de Guadiana. Os dados se complicam ainda mais em outra parte do testamento, quando Domingas ordena que “(...) na minha freguesia se dirão mais doze missas de esmola costumada pelas almas do meu marido e quatro filhas (...).”214 Se nos guiarmos pela primeira informação, Domingas tinha apenas três filhos; na segunda informa-nos, além dos três anteriores, mais quatro, três com nomes diferentes. Na última hipótese, Domingas informa que teve quatro filhas ao todo, o que contradiz a duas afirmativas anteriores, pois a estas quatro deveriam ser acrescentados seus dois filhos homens, tendo um outro resultado: seis filhos. Como Domingas não menciona filhos naturais, as dúvidas permanecem até que se encontrem fontes que as esclareçam. Domingas também não informou qual de seus filhos ou filhas era o pai ou mãe de seu neto José Cabral e se este e Guadiana eram irmãos ou primos. De qualquer forma, este caso foi um dos poucos em que houve transmissão geracional de patrimônio (ao todo, dos 13 forros, apenas 4 casos), ainda que para uma segunda geração (netos), e o único em que, aparentemente, tal transmissão se deu para supostos descendentes legítimos e não naturais como nos outros três casos.

Seu testamento foi redigido em 22 de junho de 1778, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, a seu rogo, por José Pinto Gomes, que também assinou como testemunha da redação, feita pelo próprio, e da aprovação, pois Domingas não sabia ler nem escrever. Nesta ocasião, a testadora encontrava-se enferma, daí que, conforme anteriormente dito, na iminência da morte, resolveu registrar suas últimas vontades215. Nomeou como primeiro testamenteiro seu ex-senhor, Luis de Magalhães Nogueira. Este proprietário também havia sido senhor de três outros senhores forros de Piedade do Iguaçu: Luis Cabral de Mello, Manoel Gomes Torres e Gracia Maria da Conceição do Nascimento Magalhães (os dois últimos formavam um casal e há possibilidade de o primeiro ter sido parente de Domingas Cabral). Se Domingas foi cativa de Luis Nogueira, então possivelmente, ela já deveria viver nas proximidades ou no território da freguesia de Iguaçu há alguns anos, embora ainda não se tenha comprovado exatamente onde residia o dito senhor. Além disso, é possível que na mesma freguesia tenha se casado e tido seus filhos e netos. Como segundo testamenteiro Domingas nomeou Inácio dos Santos, e em terceiro seu neto, José Cabral que, neste caso, para ser indicado a assumir tais funções, conforme a lei, só poderia ser maior de 14 anos de idade. Entre as funções ordenadas pela testadora aos testamenteiros estava a de remeter a herança aos seus herdeiros “aonde quer que eles estiverem, sem que para isso lhes seja necessário dar fiança no Juízo dos defuntos e ausentes ou em outro qualquer”.

É provável que Domingas se referisse neste caso mais ao juízo de resíduos e órfãos, ou, como consta das Ordenações Philippinas, o solicitador de resíduos, que fiscalizava as contas dos testamentos e dos inventários, partilhas e heranças e cobrava o andamento dos legados dos testamentos e as taxas referentes aos processos; os solicitadores de resíduos geralmente acompanhavam os provedores, demandando os testamenteiros nesta questão e, por lei, percebiam a quinta parte de cada resíduo julgado e vencido216. A intenção de não submeter os inventários à esfera judicial, era, possivelmente, uma tentativa de evitar pagar as custas do processo, o que sempre poderia acabar reduzindo o patrimônio, nesse caso, em pelo menos uma quinta parte (ou 20% do total). De acordo com Sheila de Castro Faria:

214 Testamento de Domingas Cabral de Mello, Livro 11. ACDNI. 215 Cf. RODRIGUES, op. cit. 2005. p. 63.

93 “Inventários (...) não eram necessários para os que haviam feito testamento. Caso morresse com testamento, tornava-se desnecessário o inventário, valendo, para tanto, a prestação de contas das determinações testamentárias, feitas pelo testamenteiro. (...). Provavelmente foi a ausência de herdeiros necessários que fez com que muitos forros se preocupassem em redigir um testamento para que os bens amealhados não fossem parar nas mãos de qualquer um, principalmente do Estado. A forma detalhada com que dispuseram de suas propriedades demonstra que havia uma clara intenção de beneficiar certas pessoas, especificamente. (...) acontecia com frequência entre os forros, ou seja, a existência de testamento, mas não de inventário. Os próprios testadores recorriam à legislação para evitar que os bens fossem inventariados, de modo que menos tarifas fossem cobradas. Muitos testadores, tanto do Rio de Janeiro quanto de São João Del Rey, pediram explicitamente que não se fizesse inventário de seus bens e que não os vendessem em praça pública. Afirmavam que bastaria, como comprovação, o recibo da venda realizada amigavelmente pelo testamenteiro.”217

Destes fatos decorre o criterioso comportamento dos testadores, forros ou livres, na escolha de quem seriam os testamenteiros, a quem legariam a tarefa de conduzir seus bens até seus herdeiros após sua morte e o cumprimento de seus legados espirituais. Da mesma maneira, percebe-se que a dificuldade em encontrar inventários post-mortem de forros pode ser fruto da atitude dos mesmos em preferir que o testamento não fosse inventariado e partilhado judicialmente. No caso de Domingas se vê claramente a estratégia geracional utilizada por forros da que versa Roberto Guedes em sua obra218, transmitindo os bens aos herdeiros da geração seguinte ou, na falta desta, aos netos. Isto, no entanto, como sobredito, somente ocorreu em 4 casos entre os senhores forros, uma vez que apenas 4 dos 13 testadores tiveram herdeiros e, portanto, transferência geracional de patrimônio e, quiçá, de status social. Os netos de Domingas, por exemplo, apesar de a avó ter sido escrava e preta Mina, não tiveram suas qualidades referidas, ao menos no testamento, o que pode significar, em parte, que a estratégia de afastamento do passado cativo da família poderia estar tendo efeito positivo.

Quando Domingas se referiu à remessa da herança aos seus herdeiros, isto pode significar a possibilidade de que seus netos, José Cabral e Guadiana, não residissem na freguesia de Iguaçu; o local onde possivelmente viviam, entretanto, não foi informado pela testadora.

Seu testamento foi aprovado na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro na mesma data em que foi redigido por José Pinto, 22 de junho de 1778; possivelmente no mesmo ato. Isto pode indicar que realmente já fosse idosa e que, por estar enferma à época, temesse morrer sem deixar registradas suas últimas vontades. O tabelião, Inácio Teixeira de Carvalho, recebeu a testadora, o redator e as testemunhas em sua casa de morada para a aprovação; a localização exata não foi informada. O redator, José Pinto Gomes, assinou pela testadora também na aprovação, como acontecia em muitos dos casos; além dele, também assinaram as testemunhas presentes: Manoel Gomes da Costa, Manoel Rodrigues da Fonseca, Caetano da Silva Feio e Antônio Henrique Leal; destes nada mais se informou.

Domingas deixou o registro de que possuía três escravos, o que se enquadrava dentro do padrão de posse da freguesia, segundo o Livro 11: José Rebolo, Maria Benguela e um filho desta, Luis (provavelmente menor), o qual cogitava a possibilidade de alforriar, caso recebesse o seu valor correspondente ainda em vida (este valor não foi esclarecido no testamento); em caso contrário, se até sua morte não recebesse tal quantia, Luis continuaria cativo, o que significa que pode ter sido deixado para um de seus herdeiros ou vendido a outro

217 FARIA, op. cit. 2004. pp. 182-183. 218 GUEDES, op. cit. p. 208.

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senhor e o valor revertido ao seu patrimônio. Nada mencionou a respeito de alforriar seus outros dois escravos. Além destes cativos, Domingas tinha outros bens; havia a casa de farinha com as suas peças: um forno de cobre, uma prensa, uma roda para ralar mandioca e demais acessórios; o próprio sítio onde residia, com a casa de morada e suas benfeitorias, além das plantações e algumas jóias: dois pares de brincos de ouro e um de diamantes. Estas jóias foram deixadas em herança à sua neta Guadiana, mas os testamenteiros somente poderiam lhe entregar, conforme a vontade de sua avó, quando a mesma estivesse casada, e caso ainda não estivesse em idade própria para se casar na época em que sua avó morresse, dever-se-ia aguardar para que se lhe entregasse; isso significa que Guadiana certamente era menor de idade (14 anos) no período em que o testamento foi redigido. Se acaso Guadiana viesse a falecer neste ínterim, as jóias seriam vendidas pelos testamenteiros e de seu produto seriam rezadas missas pela sua alma, pela de sua mãe e de suas tias (Inácia, Marcela, Joana e Tereza; o nome de sua mãe permaneceu obscuro).

Falecida na freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Iguaçu, em 14 de julho de 1782, (4 anos após a redação de seu testamento), Domingas foi encomendada e enterrada com todos os sacramentos em cova da fábrica da igreja matriz, amortalhada em pano branco, conforme atestou o vigário Amador dos Santos. No testamento ela não havia especificado a cor da mortalha, mas havia determinado que seu corpo fosse levado em uma rede até a freguesia, a partir de seu sítio. No entanto, nem a distância e nem a localização do sítio foram esclarecidas pela testadora e não se pôde obter tal informação em outras fontes.

Alguns dos senhores forros costumavam viajar com certa frequência para a cidade do Rio de Janeiro, haja vista que alguns dos testamentos foram lá redigidos e aprovados, e alguns outros, redigidos em Iguaçu, foram também aprovados naquela cidade, em especial quando ainda não havia escrivão atuando em Piedade do Iguaçu. A evidência de que Domingas costumava viajar para a cidade e que, mais importante que isto, na mesma tinha vínculos, evidencia-se pelo fato de que a testadora deixou determinações em seu testamento no sentido de que, se acaso falecesse na cidade do Rio de Janeiro, fosse sepultada na freguesia de Santa Rita, igreja que possivelmente frequentava e onde o vigário deveria lhe dar sepultura. Se falecesse em Iguaçu, que foi o que ocorreu, seria nesta freguesia encomendada e enterrada por seu pároco. Deixou, além disso, uma série de instruções com relação aos sufrágios por sua alma, tanto na cidade quanto na freguesia de Piedade do Iguaçu. Caso sua morte ocorresse nesta freguesia, ordenou que se dissessem vinte missas de intenção de “esmola costumada” pela sua alma, o que, segundo Pizarro, para Iguaçu, naquela época, representariam, pelo valor total destas missas, 6$400R, uma vez que cada missa ordinária custava 320R219. Caso seu falecimento ocorresse na cidade do Rio de Janeiro, na freguesia de Santa Rita seriam oito missas; ainda assim, determinou que as vinte missas em Iguaçu fossem rezadas, independentemente da morte na cidade e das missas lá rezadas. Ordenou também, que se rezassem na freguesia de Iguaçu doze missas de intenção às almas de seu marido e “quatro” filhas falecidas. O total gasto por Domingas com todos estes sufrágios, tendo como valor base a esmola costumada de 320R por cada missa, chegou ao montante de 12$800R, ou seja, uma dobra; quantia abaixo da média empregada por outros senhores forros.

Por lei e costume, o patrimônio dos falecidos deveria ser dividido em três partes iguais; uma das terças (partes) destinava-se aos legados; as duas terças restantes seriam as heranças aos herdeiros (quando existiam; não havendo, o testador poderia utilizá-las com sufrágios em beneficio de sua própria alma). Certamente, se o valor apresentado (12$800R) for multiplicado por três não se chegará ao valor total do Patrimônio de Domingas Cabral, já que, como visto, a mesma possuía um sítio, escravos e outros bens, cujos valores não foram declarados. Por isso, a soma total dos valores destinados aos ofícios pios deve ser considerada

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com cautela, uma vez que pode não representar realmente o valor da terça do testador e, logo, não servir como referência para a projeção, mesmo que aproximada, do valor total do patrimônio do finado.

Domingas declarou que o pagamento ao testamenteiro seria o que remanescesse de sua terça, o que fugia ao costume, que era de pagar a vintena, ou seja, 20% ou um quinto do valor total de seu patrimônio. Se levarmos em conta que, abrindo-se processo de inventário post-

mortem, as custas judiciais chegariam também a um quinto do valor, o montante perderia dois

quintos, ou 40%. Este é um dos motivos pelo qual se evitava a abertura de inventários, conforme informado por Sheila Faria220. O vigário Amador dos Santos trasladou o testamento integralmente para o Livro 11 em 18 de julho de 1782, a partir do original apresentado, quatro dias após o falecimento de Domingas Cabral de Mello, na freguesia de Piedade do Iguaçu.

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