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1.1. Vilin Réels

1.1.1. Algumas reflexões sobre os Réels

O trecho final reproduzido acima é bastante significativo, pois afirma o que já era possível identificar nos anos anteriores: se trabalho=tortura, se não há mais o que ser observado, se nada mais pode ser reestabelecido, se não foi possível estabelecer uma conexão com o lugar, nada mais o motiva a continuar o projeto. São apenas suposições que nos indicam o que pode ter motivado o fim do ciclo de visitas à rue Vilin, e do projeto Lieux. A inscrição trabalho=tortura não deixa de ser, também, uma possível alusão aos campos de concentração. E sobre eles também não há o que se falar. Toda a obra autobiográfica de Perec trará, de maneira indireta, resquícios do trauma vivido em decorrência da morte dos pais na Segunda Guerra Mundial. O pai, morto em combate e a mãe, deportada para os campos de Auschwitz, são o centro de toda a sua dificuldade em escrever sobre sua infância. Portanto, há que se considerar esta imagem reproduzida dos

muros para a escrita de Perec como uma alusão aos campos, inclusive pela semelhança entre a frase “Trabalho=tortura” e o portão de entrada dos campos, que trazia a inscrição "Arbeit macht frei", uma frase em alemão que significa "o trabalho liberta". No trabalho autobiográfico Récits d’Ellis Island, que trata especificamente da migração de refugiados de guerra, a reflexão sobre a perda dos pais se confunde inclusive com a perda de suas origens judaicas:

Em qualquer lugar, eu sou estrangeiro em relação a alguma coisa de mim mesmo; em qualquer lugar, eu sou “diferente”, mas não diferente dos outros, diferente dos “meus”: eu não falo a língua que meus pais falavam, eu não compartilho nenhuma das lembranças que eles pudessem ter, alguma coisa que fosse deles, que fizesse com que eles fossem eles, sua história, sua cultura, sua esperança, não me foram transmitidos (PEREC, 1995, p. 59).

É importante destacar que o segundo capítulo da minha dissertação de mestrado trata com detalhes da dificuldade de rememoração da infância e do uso de fotografias dos pais para a criação de uma “memória autobiográfica ficcional” na obra W ou a memória de infância.

Além da relação direta das frases apresentadas por Perec em Lieux (Trabalho=tortura) com a frase dos portões dos campos, ainda é possível pensar numa outra relação, que será aqui apresentada brevemente: a relação de Perec com as ideias situacionistas, grupo que teve um papel político importante nos anos 60 na França e que teve Guy Debord como um dos fundadores da Internacional Situacionista. Cineasta e escritor, Debord teve A Sociedade do Espetáculo publicada em 1967, obra que alcançou maior notoriedade a partir dos eventos políticos ligados aos movimentos estudantis de maio de 1968, em Paris. Apesar de Perec não ter participado ativamente desse movimento, ele fez parte de um grupo politicamente engajado nos anos 60 (denominado La ligne génerale). Em ambos os grupos, encontramos algumas convergências e, entre elas, a influência das ideias de Henri Lefevbre, conforme afirma o autor Mathieu Rémy:54

Os dois escritores eram uma mesma fonte de inspiração, na pessoa de Henri Lefebvre. Este foi uma das maiores influências da Internacional Situacionista de Guy Debord, pelo menos em seus primeiros anos. Lefebvre soube apresentar uma versão renovada do pensamento marxista porque se interrogava muito rápido sobre urbanismo, cotidiano e alienação, assuntos que irrigaram o pensamento

54 Matthieu Rémy, “Georges Perec dans l’air du temps situationniste”, Archives et documents

situacionista e que encontraremos em filigrana nas ficções e ensaios de Perec. (p.4)55

A cegueira do cotidiano, insistentemente questionada por Perec, também parece ser uma das indagações de Debord, sobretudo neste trecho em que trata da questão da alienação:

A alienação do espectador com proveito do objeto contemplado (que é resultado de sua própria atividade inconsciente) se exprime assim: quanto mais contempla, menos vê; quanto mais aceita se reconhecer em imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo.(DEBORD, 1967, p. 30).56

Também podemos destacar o trecho da obra de Lefebvre, Introduction à la modernité, que explica as inquietações dos situacionistas e nos faz pensar nas semelhanças com o próprio pensamento de Perec em relação à cidade: “c’est dans le cadre et le milieu urbains que peut s’exercer l’activité créatrice de situations, donc d’un style de d’une façon de vivre. Ce groupe a donc concentre son attention sur la description des villes” (LEFEBVRE, 1962, p. 337).

Outros depoimentos, de terceiros e do próprio Perec, também nos ajudam a estabelecer relações entre ele e Debord. Sobre essa relação, David Bellos57, biógrafo de Perec, afirma : “(…) peut-être Perec entendit-il parler de ce mouvement par Henri Lefebvre, qui eut la bonne et la mauvaise fortune d’être le professeur de Debord dans les années 50 ; à moins qu’il soit tombé sur l’une ou l’autre des irrégulières publications de Debord à La Joie de Lire; ou plus simplement capta-t-il les notions situationnistes dans l’air du temps”.

Há ainda um trecho de uma entrevista de Perec, comentado na edição Entretiens et Conférences, onde o escritor evoca o conceito de “deriva” dos situacionistas a um jornalista do Télérama; Ribière e Bertelli assim o reproduzem: “(…) on peut noter que le questionnement perecquien à propos de l’espace urbain n’est pas étranger aux théories psychogéographiques et urbanistiques des situationnistes58”.

55 Les deux écrivains eurent une même source d’inspiration, en la personne d’Henri Lefebvre. Celui-ci fut

l’une des influences majeures de l’Internationale Situationniste de Guy Debord, au moins dans les premières années de celle-ci. Lefebvre a su donner une version rénovée de la pensée marxiste parce qu’il s’interrogea très vite sur l’urbanisme, la quotidienneté, et l’aliénation, sujets qui irrigueront la pensée situationniste et que l’on retrouvera en filigrane dans les fictions et les essais de Perec.

56 L’aliénation du spectateur au profit de l'objet contemplé (qui est le résultat de sa propre activité

inconsciente) s'exprime ainsi : plus il contemple, moins il vit ; plus il accepte de se reconnaître dans les images dominantes du besoin, moins il comprend sa propre existence et son propre désir.

57 D. Bellos, Georges Perec, une vie dans les mots, Paris, Seuil, 1994, p. 300.

E, para complementar, vide um trecho de entrevista do próprio Perec, citando diretamente os situacionistas:

Trabalho lá fora voluntariamente. Faço um pouco como os situacionistas há alguns anos: parto de um lugar que é em geral suficientemente longe daquele onde moro, e então ando muito tempo tentando não seguir os caminhos que conheço ou entrar em pequenas ruas. Às vezes isso pode ser incrível.59.

Figura 4. A célebre frase dos situacionistas. Fonte da imagem: https://thedisorderofthings.com/2013/06/13/work- and-the-politics-of-refusal/

Além dos depoimentos, temos ainda a inscrição realizada em muro da rue de Seine, em 1953, atribuída a Guy Debord, e que também ganhou novos significados com os movimentos estudantis de 1968. Perec fez parte da mesma geração, que contestava os preceitos de uma sociedade capitalista e de consumo e que nos leva, novamente, à inscrição final de Lieux (Trabalho=tortura). Todas essas evidências nos fazem pensar nessa possível convergência de ideias entre Georges Perec e Guy Debord, traçada aqui brevemente para ilustrar um período bastante conturbado na França, mas que trouxe

Jacques Renoux dans G. Perec, Entretiens et conférences, II, Paris, Joseph K., 2003, p. 129.

59Je travaille volontiers dehors. Je fais un peu comme les situationnistes il y a quelques années : je pars d’un endroit qui est en général assez loin de celui où j’habite, et puis je marche très longtemps en essayant de ne pas suivre les chemins que je connais ou de prendre les petites rues. Parfois, ça peut être étonnant. Georges Perec. Les Paris d’un joueur”, Propos recueillis par Jacques Renoux dans G. Perec, Entretiens et conférences, II, op. cit., p. 129.

consequências artísticas para toda uma geração. Perec e Debord parecem não ter se conformado com uma arte mais tradicional, e todas as mudanças políticas e sociais pelas quais a França estava passando foram também uma motivação para terem se lançado às ruas, num movimento de ação que parece ter sido uma bandeira comum para os artistas.

Para recapitular e retomar a relação entre os campos de concentração, sua obra autobiográfica e o projeto Lieux, ressaltamos: Perec acaba de publicar, neste ano de 1975, seu mais importante livro autobiográfico: W ou a memória da infância. Mais um ciclo se fecha. O autor falará sobre os campos de concentração, de maneira oblíqua, como já observado, num texto ficcional, que compõe alternadamente a obra junto de um texto dito autobiográfico. Na leitura do livro, as partes se intercalam e descobrimos que não é possível tratar diretamente da questão autobiográfica na parte destinada a falar sobre sua vida; a solução encontrada é tratar do tema de maneira ficcional.

Com o fim dos trabalhos de Lieux, no mesmo ano de 1975, o fantasma da infância parece ter sido explorado suficientemente na obra autobiográfica. Lieux passa, então, a assumir a função de suporte de iniciação para outros trabalhos. O caráter autobiográfico, ou mesmo o fantasma das memórias, voltará. Aparecerá claramente nos poemas de La clôture, neste capítulo; no filme Les lieux d’une fugue, no capítulo seguinte; e, para encerrar, no quarto capítulo, o tema infância-judaísmo será definitivamente explorado em Récits d’Ellis Island, de maneira bastante explícita.

Antes de partirmos para uma tentativa de leitura dos poemas de La clôture, resta- nos, ainda, refletir um pouco mais sobre estes fantasmas que rondam a infância de Perec. Se, na parte anterior que acabamos de apresentar, as anotações não passam de meras descrições objetivas desprovidas de qualquer emoção ou nostalgia, o que vemos na série Souvenirs é, praticamente, o movimento oposto: aqui, as indagações sobre o lugar (a rue Vilin) torna-se apenas pretexto para o questionamento a respeito de seu passado e suas lembranças (vividas ou imaginadas). Perec sai do espaço físico (está em diferentes lugares agora), apenas refletindo ou idealizando as memórias da rue Vilin. Não precisa mais se valer da observação das ruas (em ruínas) nem tampouco preocupar-se com detalhes objetivos. Agora, a ideia é deixar tomar-se pela emoção e levantar hipóteses, pensamentos, dúvidas, contradições sobre a própria infância, mesmo que não chegue a conclusões muito importantes. Mais uma vez, como em “Vilin Réel”, o banal, o desimportante, aquelas pequenas migalhas de vida serão aqui desenhadas e reconstruídas, num ir e vir de lugares que o fazem viajar de volta à rue Vilin, nem que seja, ao menos, pelo caminho da imaginação.