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Inventários, listas e objetos tecnológicos

1. La vie filmée des français (1974): olhar para imagens antigas, contar sua própria história

1.1.1. Inventários, listas e objetos tecnológicos

Pensando num inventário da obra de Perec que pudesse, de certa forma, ilustrar esta obsessão por descrever objetos e, principalmente, objetos tecnológicos que trazem consigo esta marcação temporal (modelos de carros, por exemplo), anotamos a seguir alguns excertos de Je me souviens108 e de Tentative d’épuisement... A partir destes trechos, podemos observar a incidência de descrições de carros, ônibus turísticos ou outros meios de transporte que poderiam ser vistos na Paris da época, em constante movimento. Interessante pensar no procedimento de escrita de Je me souviens em relação ao filme La vie filmée: se, no primeiro caso, as memórias individuais e autobiográficas fazem alusão a uma memória coletiva da época, no filme, as memórias coletivas registradas por anônimos ajudam Perec a refletir sobre a própria memória individual. Je me souviens é uma rememoração de lembranças individuais que trazem consigo as memórias coletivas da época à qual ele pertenceu, e o inventário de automóveis é algo muito presente entre as lembranças evocadas:

2-Je me souviens que mon oncle avait une 11CV immatriculée 7070 RL2 P. 799

51-Je me souviens des autobus à plate-forme : quand on voulait descendre au prochain arrêt, Il fallait appuyer sur une sonnette, mais ni trop près de l’arrêt précédent, ni trop près de l’arrêt en question p. 807 246- Je me souviens que Citroën utilisa la tour Eiffel pour une gigantesque publicité lumineuse. 838

471 Je me souviens des voitures américaines : les “DeSoto”, les “Studebaker”, les “Pontiac”, les “Oldsmobile”, les “Chevrolet”, les “Packard”, et les V8 que l’on appelait ainsi parce qu’elles avaient “huit cylindres en v”. 874.

108 Todos os excertos referentes a Je me souviens apresentados nas tabelas contêm dois números: o primeiro

indica a ordem numérica dos próprios Je me souviens, enquanto o segundo indica a página, a partir da edição Oeuvres, vol I., Gallimard, 2017.

No caso de Tentative d’épuisement..., a descrição é feita na Paris em movimento e a quantidade de carros, outdoors, propaganda e grandes marcas é bastante expressiva, como também veremos em Tentative des choses vues au Carrefour Mabillon:

Un car “Cityrama” à deux étages (p. 823)

Les phares seuls signalent le passage des voitures (p. 841) Un car : “Percival Tours” (p. 844)

Cityrama : une Japonaise absorbée dans ses écouteurs (p. 849) Car Paris-Vision (p. 851).

Descrever os ônibus turísticos, observar suas marcas, além dos carros (que em Mabillon terá inventários exaustivos, como veremos mais tarde) será também a estratégia de escrita de Tentative d’épuisement..., relembrando a importância da descrição como maneira de dar um novo sentido ao cotidiano, conforme a célebre reflexão de Perec publicada no texto “Approches de quoi?”109:

Descreva sua rua. Descreva uma outra. Compare.

Faça o inventário de seus bolsos, de sua bolsa. Interrogue-se sobre a proveniência, uso e sobre o futuro de cada um dos objetos que retirou de lá.

Questione suas pequenas colheres. O que há sob seu papel de parede?

Quantos gestos são necessários para discar um número de telefone? Por quê? Por que não encontramos cigarros nas mercearias? Por que não?

A mim importa pouco o que sejam essas questões, aqui, fragmentárias, pouco indicativas de um método, no máximo de um projeto. Importa para mim que pareçam triviais e fúteis: é precisamente o que as torna tão, se não mais, essenciais que tantos outras através daquelas tentamos em vão capturar nossa verdade. (PEREC, 1985, pp. 12-13)110

109 Publicado em Penser/Classer, em 1985. O texto publicado em sua versão integral, será disponibilizado

na seção “Apêndices”, já que representa uma reflexão importante sobre todas as questões levantadas na pesquisa.

110Décrivez votre rue. Décrivez-en une autre. Comparez.

Faites l’inventaire de vos poches, de votre sac. Interrogez-vous sur la provenance, l’usage et le devenir de chacun des objets que vous en retirez.

Questionnez vos petites cuillers. Qu’y a-t-il sous votre papier peint ?

Combien de gestes faut-il pour composer un numéro de téléphone ? Pourquoi ? Pourquoi ne trouve-t-on pas de cigarettes dans les épiceries ? Pourquoi pas ?

Il m’importe peu que ces questions soient, ici, fragmentaires, à peine indicatives d’une méthode, tout au plus d’un projet. Il m’importe beaucoup qu’elles semblent triviales et futiles : c’est précisément ce qui les rend tout aussi, sinon plus, essentielles que tant d’autres au travers desquelles nous avons vainement tenté de capter notre vérité.

Será, então, a descrição exaustiva da place Sant-Sulpice, do Carrefour Mabillon e de tantos outros lugares aqui já citados, uma vã tentativa de captar nossa “verdade”? Que resultados podem ser percebidos a partir dessa busca incessante de Perec? Como podemos inferir o sentido de “verdade” a partir das reflexões apresentadas? Simplesmente mudando a nossa maneira de olhar para o que já está posto, procurando outros possíveis ângulos, questionando nossos gestos cotidianos e, por que não, nosso movimento de produção, seja ela literária ou não. O que eu observo e posso transformar, a partir do meu olhar? O que vejo no meu texto, ou em outros textos, que podem ser uma espécie de reflexão sobre uma possível verdade, já que intrinsecamente ligada à nossa própria vida? Onde está a “verdade”, a não ser na vida banal e cotidiana que nos cerca, para todos os lados que olhamos?

Podemos pensar no projeto Tentative d’épuisement d’un lieu parisien como uma espécie de fechamento, de encerramento definitivo do projeto Lieux, da maneira como foi concebido originalmente, e que deu origem a tantos outros projetos, como já dito inúmeras vezes aqui. O curioso desse projeto específico é que recria fielmente o procedimento de escrita de Lieux, mas com a regra do tempo muito mais definida: apenas durante três dias (entre 18, 19 e 20 de outubro de 1974, como já explicamos no capítulo I.), alterando completamente a contrainte de doze anos estabelecida por Lieux.

Por ter sido escrita num curto período de tempo, a obra em questão passa inclusive uma falsa ideia de “trabalho cumprido”, contrariamente ao que aconteceu com o projeto original, Lieux. A data da escrita também dá sinais evidentes de que seja uma última tentativa de fixar algo, mesmo que num período de tempo condensado. Lembramos que, a partir de 1975, Perec abandona definitivamente as visitas aos doze lugares. Sendo assim, podemos pensar na relevância de Tentative d’épuisement... como um projeto ao mesmo tempo derivado e condensado do anterior, na impossibilidade iminente já imaginada por Perec de dar continuidade à sua aventura inicial de registro de envelhecimento do tempo.

Tendo acesso recente a um áudio em que Perec descreve Tentative d´épuisement.111 como uma espécie de fechamento de Lieux, foi possível confirmar a nossa hipótese, no que se refere à continuidade e à transformação dos projetos. No link

111 Para ouvir o áudio em que Perec levanta tais questões em relação ao projeto Lieux, seu desenrolar e sua

do áudio disponibilizado a seguir, podemos entender que escrever em poucos dias algo que estava programado para anos foi uma espécie de reformulação de Lieux, o que já vinha sendo aqui defendido. Vale também ressaltar outra fala de Perec, sobre a importância de Lieux para a escrita de W (como já analisamos no capítulo anterior), visto que ele afirma ter retirado as fotos da rue Vilin de seus envelopes para auxiliá-lo no momento da escrita das memórias da infância. Como Tentative d’épuisement... foi publicado também em 1975, parece-nos se tratar da maneira encontrada para atravessar essa barreira, pôr um fim no projeto e iniciar os outros que estavam em fase de transformação e encerrar esse ciclo com a sensação de ter deixado ao menos algo “concluído, acabado”, mesmo que isso seja bastante improvável em Perec, já que sabemos que há diversos projetos simultâneos, não publicados, em suspenso, durante o seu trabalho de escrita, sempre heterogêneo.