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Experimentações, rumo ao fim das “Souvenirs”

1.2. Vilin Souvenirs

1.2.3. A escrita que se transforma, as experimentações

1.2.3.1 Experimentações, rumo ao fim das “Souvenirs”

Perec parece se dar conta deste embate entre a dificuldade em escrever, as hesitações, as pausas para reflexão e os projetos que supostamente vêm sendo transformados, tanto que se vale de outro artifício para acompanhá-lo nesta batalha consigo mesmo para conseguir escrever: a música. Ele anota, nos dois trechos seguintes (ambos de 2 de dezembro de 1972) que realiza uma experiência de audição integral do Ring (faces 3 e 4 – trechos da ópera “A Valquíria”, de Wagner). As versões originais seguidas das transcrições (feitas por mim) aparecem como exemplo desse momento de escrita onde busca inspiração a partir da música, e onde vemos os traços de números e letras de forma bastante experimentais:

Figura 9. Manuscritos de Lieux. Fonte: Lejeune, Philippe. Vilin Souvenirs. Georges Perec. In: Genesis, 1992, p. 146.

Vers 11h30 2 décembre 1972 au début d’une expérience abc 123... d’audition intégrale du

Ring [3o face]

Souvenirs de la rue VILIN au no. 1 vivaient les parents de ma mère. Je ne me souviens plus à quel étage. Je ne me souviens pas davantage de leur appartement ni d’eux mêmes ni de leur enfants (à l’exception de ma mère dont j’ai des photos à défaut de souvenirs plus précis). Je ne sais pas même pas exactement combien ils avaient d’enfants, au moins deux filles : Cyrla ma mère et sa sœur qui que crois qu’elle s’appelait Lili (comme Ela) et sans doute 2

garçons plus âgés (peut-être sont-ils dans la région lyonnaise ou à Lyon, peut-être [....] ou alors, j’invente tout) (p. 146)

Figura 10. Manuscritos de Lieux. Fonte: Lejeune, Philippe. Vilin Souvenirs. Georges Perec. In: Genesis, 1992, p. 147.

2 12 72 a b c d...

Vers 12h12 1 2 3 4...

Au début d’une expérience

d’audition intégrale du “Ring” Souvenirs de la rue Vilin (face 4)

en ce qui concerne mes parents, mes grands-parents et moi-même, j’ai longtemps cru que nous habitions au n. 7, sans doute à cause des propriétés magiques habituellement associées à ce chiffre77

c’est seulement lorsque j’ai commencé ces « Lieux » que je me suis rendu compte que nous vivions au n. 24

Il y a longtemps je suis allé rue Vilin avec P. Getzler. Je crois qu’à cette époque (vers 62 ?) je me suis rendu compte qu’il n’y avait pas du n. 7, mais je ne sais si j’ai reconnu le n. 24 comme ayant été ma maison, en dépit de la vieille inscription encore clairement lisible de « Coiffure pour dames »

en tout cas c’est seulement récemment et dans les années même où toute vie va disparaître de cette rue que j’ai commencé à identifier cette maison même si je ne sais pas à quel étage j’habitais et dans quelles conditions. Combien avions-nous de pièces ? Nous devions être 5 : mon grand Père, ma grand-mère Rose mon père Icek et ma mère Cyrla et moi Georges.

77 A referência mais evidente é sua própria data de nascimento, 7 de março. Esta ideia de ter confundido o

número da sua residência de infância aparece em vários momentos da escrita de Lieux, e também é retomada na parte autobiográfica do texto de W ou a memória da infância, no trecho: “Je ne parvins à identifier ni la maison où avaient vécu les Szulewicz, ni celle où j’avais passé les six premières années de ma vie et que je croyais, à tort, se trouver au numéro 7” (PEREC, 1975, p. 72).

Avions-nous 2 pièces. Dormais-je dans la chambre de mes parents ? (p. 147).

Os dois blocos de anotações reproduzidos livremente aqui seguem um método bastante parecido de composição. Ao lado da data e da referência da música que escuta, Perec anota sequências de letras ou números de forma livre (como se pudesse desenhar ou preparar as letras, já que em tamanhos e formatos diferentes) para depois iniciar a escrita pretendida, em letras minúsculas e que necessitam de ampliação para serem lidas. O tema tratado nas duas folhas continua sendo a confusão anterior de não saber exatamente em que número eles viviam. Mas, para além das tentativas de explicar a própria história, o que percebemos neste texto, ou seja, neste processo de crise da escrita, é uma espécie de fabulação da própria história, recurso muito utilizado por Perec em textos autobiográficos, sobretudo em W ou a memória da infância. Esta estratégia que questiona ou tenta dissuadir a si mesmo sem tanta certeza sobre os fatos aparece claramente no final do trecho do primeiro bloco: “ou alors, j’invente tout”, ou em muitas hipóteses levantadas em trechos do segundo bloco: “Combien avions-nous de pièces? Nous devions être 5 : mon grand-père, ma grand mère Rose mon père Icek et ma mère Cyrla et moi Georges. Avions-nous 2 pièces. Dormais-je dans la chambre de mes parents ?”.

Quatro dias depois das anotações ao som de Wagner, Perec escreve novamente outro trecho, comprovando que a ideia não pode ser executada da maneira como planejou, já que precisou interromper a audição devido à quantidade de tempo que dispensaria para completar a tarefa. Assim, conclui que sua tentativa resultou num “semi-échec”, completando seu comentário com outro questionamento bastante pessimista: “La rue Vilin me semble si loin et je vis actuellement avec l’impression que je ne m’en rapprocherai plus jamais (m’en suis-je déjà approché, même?)”, na página 150. No entanto, a questão da fabulação ou da memória indireta, como acabamos de reforçar, será a principal característica da escrita de W ou a memória da infância e, felizmente para esta pesquisa, damo-nos conta de que grande parte dos escritos de W também tiveram sua origem (ou ao menos foram reproduzidos parcialmente) no projeto Lieux. Prova disso são as passagens de memórias citadas aqui e desenvolvidas com mais detalhes na escrita definitiva do livro.

O encerramento dos manuscritos de Vilin Souvenirs, ao contrário de Vilin Réel, traz um sentimento dúbio: se, por um lado, acompanhamos e registramos todos os momentos de afirmação da falta de memórias e pessimismo em relação à escrita que não

avança – ao mesmo tempo em que outros projetos vão tomando forma, provavelmente –, testemunhamos também este início de escrita de uma autobiografia oblíqua, indireta, que recorreu às fabulações para que pudesse ser realizada. Na última anotação, de 1974, diferentemente das anteriores (onde havia data, horário e local de escrita), o manuscrito traz dois parágrafos escritos de maneira bastante irregular (sem os métodos anteriores) e que já sinaliza a relação profunda entre o projeto que chega ao fim e o início de outro, a escrita de W:

Figura 11. Manuscritos de Lieux. Fonte: Lejeune, Philippe. Vilin Souvenirs. Georges Perec. In: Genesis, 1992, p. 151

Il en va de la rue Vilin

comme de la rue de l’Assomption : cette année je n’ai pas envie de m’en souvenir sans doute parce que c’est cette année que j’ai écrit W

Il faut pourtant que je note ce vrai ou faux souvenir retrouvé : le matin j’allais dans le lit de mes parents ; ma mère se

levait mais mon père qui avait été aux Halles dans la nuit somnolait encore. Mon jeu favori consistait à plonger entièrement sous les draps et à aller toucher les pieds de mon père, chaque fois avec de grands éclats de rire.

Esta passagem feliz (acredito que uma das poucas) encerra assim o último documento encontrado no envelope Vilin Souvenirs. Ao contrário da última anotação de Vilin Réel (Trabalho=tortura), que nos trouxe algumas questões para reflexão de maneira um tanto quanto pessimista, as memórias de Vilin (embora constantemente afirmadas como não existentes) dão lugar a um encerramento supostamente feliz. Verdadeira ou falsa, não importa: a lembrança está registrada e foi belamente reproduzida no livro W ou a memória da infância, livro com o qual toda a minha história de pesquisa começou, e com o qual encerramos as reflexões sobre o lugar mais importante da vida e, de certa forma, do processo de escrita das obras autobiográficas de Perec: a rua de sua infância, mesmo que fabulada, oblíqua, inexistente, mas carregada de uma escrita que se encerra de maneira otimista, singela, feliz.

Esta escrita fabulada dará lugar (ou caminhará juntamente) a uma escrita poética, numa nova transformação da rue Vilin, quando Perec cria poemas a partir das fotos tiradas no lugar. Assim, iniciamos a próxima seção do capítulo, onde texto e imagem recriarão novas paisagens e histórias sobre um mesmo lugar, só que agora sob um novo olhar.

2.La Clôture: a transformação de Lieux em poesia com imagens

A primeira edição de La Clôture, de 1976, um livro de poemas composto de “17 fotografias de Christine Lipinska acompanhadas de 17 poemas heterogramáticos78 de Georges Perec, em edição não comercial e através de assinatura”79 (NEEFS, 1993, p. 140), cujas páginas poderiam ser alteradas, dissociadas, já que dispostas em uma caixa, e não um livro convencional, evidencia mais um exemplo de obra em formato de “álbum”. Constituía-se de fotos da rua Vilin, acompanhadas de textos de Perec (que na foto acima – figura 16 – aparece embalando os exemplares).

Perec apresentava esse livro a partir de um prospecto que mandava aos assinantes juntamente com a obra: “no curso desses últimos anos, voltei à rua Vilin para tentar descrever ao mesmo tempo as lembranças que me ligavam a essa rua e os vestígios cada

78 Mireille Ribière, em seu trabalho sobre a descrição dessas fotos, destaca que são 17 textos para 16 fotos,

sugerindo a participação do leitor na montagem entre textos e imagens. Em: La photographie dans La Clôture, Revista Cabinet d’amateur, 7-8, dezembro 1998.

79 No original: “17 photographies de Christine Lipinska accompagnées de 17 poèmes hétérogrammatiques

vez mais apagados do que foi uma rua”80, texto no qual mencionava o trabalho de parceria com Lipinska. La Clôture, em sua edição original, é uma manifestação artística que trata de uma investigação do passado, a partir dos traços encontrados nas fotos e na observação do lugar, tão marcadamente ligado a sua infância.

Edições posteriores (comerciais) não trouxeram as fotos reproduzidas. Além de Lipinska, Pierre Getzler também acompanhou Perec algumas vezes à rua Vilin, sempre com o intuito de recuperar traços para a escrita de Lieux.

Fica evidente que este trabalho resulta de um primeiro momento de preparação, que consistia nas idas constantes aos lugares, acompanhado de fotógrafos, para descrevê- los e compor, juntamente com as fotos tiradas, material para futuras consultas no momento em que fosse finalmente escrever ou publicar/finalizar o projeto Lieux. Por algum motivo, estas fotos foram, muito antes de “encerrado” o prazo de doze anos, utilizadas lado a lado da escrita de poemas, o que nos mostra já uma “transformação”. Como descrições detalhadas acompanhadas de fotos puderam dar origem a poemas que (para dificultar ainda mais o processo) seguiam uma regra fixa de escrita? Esse é mais um exemplo de transformação de Lieux em outro tipo de produção artística, neste caso a escrita poética acompanhada das fotografias.

Mais interessante ainda é perceber que esta edição foi limitada, ou seja, apenas poucas pessoas tiveram acesso a ela, como se fosse uma espécie de “presente” a alguns amigos mais próximos. A edição comercial, publicada depois, não trouxe as fotografias e nem o modelo de “caixa de memórias” criado inicialmente por Perec, muito provavelmente por questões de custo editorial. Mais uma vez, um projeto ambicioso parecia não ir adiante por questões que desconhecemos, mas que nos fazem pensar na “mutação” de Lieux em projetos criativos, inovadores, que puderam de certa forma se concretizar, mesmo que resultando em apenas poucos e raros exemplares.

Na transcrição do trecho completo em que Perec apresenta a obra, reproduzida a seguir, é curioso notar que a última frase do texto o classifica como um “duplo trabalho”, já que resultado das descrições de Lieux e das fotos de Lipinska. Podemos, no entanto, ir um pouco além e pensar neste trabalho com uma segunda etapa do duplo trabalho, uma vez que a primeira resultou apenas em descrições e fotos e que, posteriormente, a escrita foi transformada em poesia para a composição final da obra.

80 No original: “au cours de ces dernières années, je suis revenu rue Vilin pour tenter de décrire à la fois les

Afirmar que na primeira etapa só existem descrições da rue Vilin é para nós uma constatação pensada a partir dos documentos analisados para pesquisa (em nenhum dos envelopes do projeto Lieux há qualquer menção ou anotação de textos poéticos que viriam a compor o livro La Clôture). Muito provavelmente Perec não escreveu estes poemas enquanto realizava o projeto Lieux, primeiramente porque, como já dissemos, não há tais anotações no material dos envelopes e, num segundo momento, porque a composição dos poemas (heterogramáticos)81 exigiu de Perec uma elaboração criteriosa, visto que os poemas seguem regras fixas de escrita (as contraintes, realizadas por ele e pelo famoso grupo do qual fazia parte, o Oulipo), uma atividade um tanto quanto complexa para se realizar em pé, com um bloco de anotações em mãos, tendo as descrições para serem anotadas e com todas as influências externas do local acontecendo em tempo real, enquanto caminha pelas calçadas da rue Vilin. Vale ressaltar a importância do grupo citado, o Oulipo, sigla criada para fazer referência ao grupo Ouvroir de Littérature Potentielle, que tinha como parâmetro seguir determinadas restrições no processo de escrita dos textos literários. Fundado por Raymond Queneau e François Le Lionnais em 1960, reagrupou também escritores de nacionalidades diversas, como Italo Calvino, Harry Mathews, e matemáticos como Claude Berge, escritores-matemáticos como Jacques Roubaud, um historiador e poeta como Marcel Bénabou. O trabalho realizado por esses artistas, em parceria, sabemos que influenciaria toda a carreira de Perec, sempre interessado em novas experimentações da literatura e sua1 relação com outras artes.

Além disso, fica evidente que o processo de escrita a partir das contraintes terá outros objetivos, como, por exemplo, evocar lembranças, como veremos em análises mais detalhadas a seguir. O uso das regras também será a maneira como Perec escolhe manipular seu texto literário, já que, a partir da escrita fechada e poética, faz-nos refletir a respeito de tais escolhas.

J’ai vécu rue Vilin de ma naissance, en 1936, à l’été 1942.

La rue Vilin, dans le 20e arrondissement, entre la rue des Couronnes et la rue Piat, est depuis plusieurs années en train de disparaître. Une à une les boutiques ont été fermées, les fenêtres ont été aveuglées, les maisons ont été abattues laissant place à des terrains vagues et à des palissades de ciment. À plusieurs reprises, au cours des dernières années, je suis revenu rue Vilin pour tenter de décrire à la fois les souvenirs qui me rattachent à cette rue (la maison de mes grands-parents au n° 1, la maison de mes parents et le magasin de coiffure de ma mère, au n° 24) 81Segundo a definição do Atlas de Littérature Potentielle, um heterograma significa um énoncé qui ne répète aucune de ses lettres” (p. 231).

et les vestiges chaque fois plus effacées [sic] de ce qui fut une rue. En même temps, Christine Lipinska photographiait les traces de cette clôture. Le résultat de ce double travail est un livre que nous vous proposons aujourd’hui (OC II, 803).

O trabalho duplo necessário para a composição de La Clôture, como mencionado na citação, foi uma espécie de apropriação de Lieux, e uma reformulação a partir dele. Há ainda, assim parece, uma carga afetiva nessa relação do trabalho duplo entre Perec e Lipinska, conforme nos lembra David Bellos: “La filiation émotionnelle de La Clôture est complexe. Les dix-sept poèmes renvoient indirectement à Suzanne par le biais de sa fille, qui prit les photos, mais aussi par celui de Lieux, dont ils sont la suite et comme le détournement” (BELLOS, 1994, p. 605). Ou seja, além da carga afetiva que já conhecemos, por lidar com a rua da infância e todos os desdobramentos e questões que essa rua suscita, ainda temos uma parceira de trabalho, que tira as fotos (Christine) e que é a filha de Suzanne Lipinska, envolvida provavelmente em uma das questões vividas por Perec e, portanto, indiretamente responsável pelo início do projeto Lieux (iniciado com o final do relacionamento entre ela e Perec), situação já mencionada no primeiro capítulo.

Como vimos na seção anterior, quanto mais se avança nos anos, mais o texto se de Lieux se torna escasso, como se também se abandonasse rumo ao silêncio e à impossibilidade. Como se o lugar se esgotasse juntamente com a escrita. Quanto mais avança, há menos a dizer, menos a escrever. Perec, um escritor sempre interessado na escrita exaustiva, começa então a renunciar à escrita e ao projeto, ao longo de seis anos. Escrever sobre este lugar traz à tona o pressentimento do que acontecerá em breve: seu apagamento progressivo rumo à total destruição.