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Vilin Souvenirs e o processo de análise

1.2. Vilin Souvenirs

1.2.1. Vilin Souvenirs e o processo de análise

Todas estas hesitações na escrita, principalmente ao se referir a situações da própria vida não muito esclarecidas, remetem-nos a uma série de reflexões realizadas por Claude Burgelin acerca do processo de análise pelo qual Perec passou (e que coincide também com o período de escrita de Lieux). A partir do texto Les lieux d’une ruse63 (em que Perec descreve seu processo de análise), especificamente no trecho “De ce lieu souterrain, je n’ai rien à dire [...] Désormais la trace en est écrite en moi et dans les textes que j’écris”, Burgelin levanta a questão de que a escrita pode ser, de certa forma, uma espécie de resumo ou exercício a ser realizado sobre a própria análise que vinha acontecendo, e que estas inúmeras hesitações ou dificuldades na escrita seriam, portanto, análogas ao processo de análise, quando o paciente ainda está trabalhando sobre os próprios pensamentos, levantando ainda questões sem solução e, acima de tudo, questões que ainda são impossíveis de serem ditas.

Esse início do primeiro parágrafo dos “Lieux d’une ruse” impõe e opõe a evidência ou a necessidade de um silêncio (ou de uma pausa ou uma recusa ou uma greve ou uma fobia ou um puder ou uma aporia... “nada a dizer” – nada a dizer realmente?) e a íntima convicção de uma marca inscrita tanto na alma-corpo do escritor como em seus textos. (BURGELIN, 1996, p. 64).64

Ou seja, a escrita que se repete, confusa, funciona quase como o processo de análise em si, no sentido de inicialmente não conseguir dizer nada, seguido de um movimento de dizer e repetir até que se crie uma espécie de “verdade”, movimento pelo qual se busca o aparecimento das palavras, como se algo realmente fosse acontecer, como se realmente a memória fosse reaparecer, simplesmente pelo fato de repetir insistentemente tais afirmações, mesmo que de maneira confusa e desorganizada. Como na análise, Perec escreve desorganizadamente, hesita, repete ideias, como se buscasse, finalmente, a partir da escrita, encontrar a verdade sobre a sua própria história. Além disso, podemos pensar que essa escrita confusa e repleta de hesitações seja inclusive um contraponto de subjetividade e expressão daquilo que ele pretende escrever sobre si, no meio de um texto tão objetivo e composto quase que exclusivamente de descrições minuciosas e precisas sobre o lugar. O sujeito acaba se sobrepondo, de certa forma, somente para evidenciar seus conflitos com a própria memória, trazendo para o leitor, mesmo que em apenas alguns trechos, curtas passagens subjetivas acerca de sua infância:

Quando tentava falar, dizer alguma coisa sobre mim mesmo, afrontar esse palhaço interior que fazia malabares tão bem com a minha história, esse mágico que sabia tão bem iludir a si próprio, imediatamente tinha a impressão de estar prestes a recomeçar o mesmo quebra-cabeça, como se esgotando uma a uma todas as combinações possíveis, poderia um dia chegar enfim à imagem que procurava. (PEREC, 1985, p. 69).65 Esta obsessão por retomar e repetir tais lembranças confusas deu início, durante o processo de análise de Perec, ao exercício de anotar absolutamente tudo que fosse possível, numa tentativa de preservar a memória do presente. Assim, ao mesmo tempo em que busca recuperar a memória do passado, o processo de análise traz à tona um Perec obsessivo, que pretende evitar que o esquecimento do presente se repita no futuro. Aqui

64 Ce début du dernier paragraphe des “Lieux d’une ruse” pose et oppose l’évidence ou la nécessité d’un

silence (ou d’un retrait ou d’un refus ou d’une grève ou d’une phobie ou d’une pudeur ou d’une aporie... “rien à dire” – rien à dire vraiment ?) et l’intime conviction d’une trace inscrite dans l’âme-corps de l’écrivain comme en ses textes.

65 Lorsque j’essayais de parler, de dire quelque chose de moi, d’affronter ce clown intérieur qui jonglait si

bien avec mon histoire, ce prestidigitateur qui savait si bien s’illusionner lui-même, tout de suite j’avais l’impression d’être en train de recommencer le même puzzle, comme si, à force d’en épuiser une à une toutes le combinaisons possibles, je pouvais un jour arriver enfin à l’image que je cherchais.

vemos, de certa forma, que muitas das obras de Perec, incluindo longas listas, inventários e interrogações do cotidiano inúmeras vezes comentados até aqui, podem ter tido origem, portanto, deste processo de tentativa de conservação dos traços do presente, como um reflexo da ausência das memórias do passado.

O escritor que conhecemos, e que está presente em grande parte de suas obras, é aquele que questiona o hoje, que imagina ter controle sobre o que acontece agora, sobre o que é banal e que passa despercebido da maioria. Tendo tal controle, talvez supere as ausências do passado, representadas por escritas confusas e sem grandes conclusões acerca da própria história. Escrever, traçar as letras e anotar tudo o que é possível ver é, de certa forma, o movimento presente em todas as obras analisadas nesta pesquisa. Trata- se de uma espécie de tentativa de inventário do presente, já que não há mais o que ser inventariado do passado: ele ficou para trás, e não deixou respostas. Outro trecho de Les lieux d’une ruse atesta esta ideia de uma acumulação obsessiva dos traços do presente:

Ao mesmo tempo se instaurou como uma falência da minha memória: comecei a ter medo de esquecer, como se, a menos que anotasse tudo, não poderia conservar nada da vida que fugia. Todas as noites, escrupulosamente, com uma consciência maníaca, comecei a manter uma espécie de diário: era o contrário mesmo de um diário: só registrava o que acontecera de “objetivo”: hora que despertei, uso do tempo, meus deslocamentos, compras, o progresso – avaliado em linhas ou páginas – do meu trabalho, pessoas que havia encontrado ou simplesmente vislumbrado, o detalhe da refeição que tinha feito à noite em tal ou tal restaurante, minhas leituras, os discos que tinha escutado, os filmes que tinha visto, etc.(PEREC, 1985, p. 69).66

Burgelin afirma, assim como vimos em outros exemplos, como as obras de Perec serão totalmente influenciadas por esta ideia da acumulação, registro e conservação dos objetos, lugares e acontecimentos que o cercam no presente, traçando uma espécie de “conservação de espaços”, sejam eles imaginários, reais ou relativos à memória. Burgelin classifica as obras La boutique obscure, Espèces d’espaces e W ou le souvenir d’enfance em cada uma destas categorias. Eu estenderia esta possibilidade a muitas outras obras, pensando que muitas delas acumulam inclusive mais de uma classificação, o que é bem

66 En même temps s’instaura comme une faillite de ma mémoire : je me mis à avoir peur d’oublier, comme

si, à moins de tout noter, je n’allais rien pouvoir retenir de la vie que s’enfuyait. Chaque soir, scrupuleusement, avec une conscience maniaque, je me mis à tenir une espèce de journal : c’était tout le contraire d’un journal intime : je n’y consignais que ce qui m’était arrivé d’ “objectif” : l’heure de mon réveil, l’emploi de mon temps, mes déplacements, mes achats, le progrès – évalué en lignes ou en pages – de mon travail, les gens que j’avais rencontrés ou simplement aperçus, le détail du repas que j’avais fait le soir dans tel ou tel restaurant, mes lectures, les disques que j’avais écoutés, les films que j’avais vus, etc.

comum nos escritos de Perec (não há, no autor, obras totalmente homogêneas ou de um único gênero).

Mas é interessante pensar que estas obras refletem sobre espaços bastante heterogêneos, visto que La boutique obscure faz uma reflexão sobre seus sonhos devidamente anotados; Espèces d’espaces faz uma reflexão sobre os espaços do “mundo real”, enquanto W reflete necessariamente sobre o lugar da própria memória, escassa, indizível, conforme nos explica Burgelin:

As três empreitadas de conservação de espaços imaginários, de espaços reais e de espaços da memória que são respectivamente La boutique obscure, Espèces d’espaces e W ou le souvenir d’enfance poderiam ser percebida como momentos de resistência, em todo caso de tensão ativa face à análise (que redobram esses momentos onde, paralelamente ao tempo do divã, Perec se coloca a guardar tudo e arquivar mesmo aquilo mais ridículo). (BURGELIN, 1996, p. 74)67

O que podemos concluir até aqui é que, para Perec, o pânico de perder seus traços fez com que se tornasse obsessivo pela escrita do banal, do cotidiano. O processo de análise desencadeou este exercício de escrita quase obsessivo, que o levou consequentemente a também conservar e classificar documentos. Ou seja, a escrita, juntamente com os objetos conservados, forma esta espécie de “tas de reliquats”68 e que seria uma maneira encontrada para iniciar o processo de rememoração.

A escrita começa necessariamente para preencher esta lacuna deixada pela memória, quase como numa continuação do processo de exercício (um diário) desenvolvido à época da análise. Quanto mais escrever, anotar, guardar todos os detalhes, mais recursos terá para se apoiar. Quanto mais papéis guardados e arquivados, mais “conservada” ficará sua memória do presente. É um processo contraditório, de certa forma, pois, como vimos, a escrita só reforça as dúvidas e hesitações sobre a própria história de vida.

Assim, o fato de continuar escrevendo, insistentemente, sobre detalhes de um passado inalcançável é quase como “simular” o processo de análise realizado (dizer, mesmo sem saber exatamente o que se diz, para que, em algum momento, surja uma

67 Les trois entreprises de conservation des espaces imaginaires, des espaces réels et des espaces de la

mémoire que sont respectivement La boutique obscure, Espèces d’espaces et W ou le souvenir d’enfance pourraient être perçues comme des moments de résistance, en tout cas de tension active face à l’analyse (qui redoublent ces moments où, parallèlement au temps du divan, Perec se met à tout garder et archiver fût-ce le plus dérisoire)

68 Referência ao artigo de Raoul Delemazure, “L’herbier des villes de Georges Perec: un tas de reliquats”,

“cura” para o problema apresentado). Assim, podemos sinalizar um procedimento de análise que se incorpora à escrita, e por isso mesmo torna-a tão hesitante, deceptiva, mas que faz parte de um processo que pode leva-lo a conseguir dizer, a conseguir escrever sua própria verdade.

A única certeza do texto, que também fica bastante evidente em todas as “Souvenirs”, é exatamente a da completa falta de memórias (deceptiva) a respeito da rue Vilin. Como se escrever sobre as memórias fosse, na verdade, afirmar e reforçar, o tempo todo, sua total ausência de memórias, de fato.

Il reste inconcevable que je n’ai aucun souvenir de la rue Vilin où j’ai dû pourtant passer l’essentiel des sept (ou six) premières années de ma vie ; j’insiste sur cet “aucun” cela signifie aucun souvenir des lieux, aucun souvenir des visages (p. 133).