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Objetos como representantes de uma época, de uma memória

1. La vie filmée des français (1974): olhar para imagens antigas, contar sua própria história

1.1.2. Objetos como representantes de uma época, de uma memória

Interessante pensar que Perec, curioso e observador dos carros (a descrição deles parece excessiva, em vários textos, em vários momentos), nunca dirigiu seu próprio automóvel e sempre preferiu andar pelas ruas de Paris. Se seguirmos a explicação de Baudrillard pelo fascínio exercido pelos carros (o crítico afirma que a posse do automóvel significa uma espécie de “diploma de cidadania”, ou uma “credencial de nobreza mobiliária”), deparamo-nos com duas características que parecem não combinar em nada com um Perec que não se sente “em casa” em lugar algum, estrangeiro em qualquer lugar aonde vá112. Podemos pensar que ele talvez encontre um pouco deste sentimento de cidadania não em possuir um carro, mas em observá-los e entendê-los como integrantes daquela sociedade, cabendo a ele retratar a época a partir destes modelos de luxo e velocidade que estão no imaginário da população.

112 Afirmação com base em vários depoimentos de Perec e na própria história de vida, marcada por questões

Figura 23. Georges Perec no Café de la Mairie, place Saint-Sulpice. Fonte: Album Georges Perec, 2017, p. 126.

Enumerar esses carros em locais públicos, observá-los e produzir literatura a partir destas descrições será para Perec o seu verdadeiro “diploma de cidadania” e não propriamente a posse do objeto.

Ele não apenas observa carros, mas nos mostra nomes de empresas, endereços, e outras marcas que nos fazem pensar na questão da tecnologia, do progresso, da sociedade em movimento e na velocidade das transformações. Sob a perspectiva de Barthes, em seu texto Mythologie de l’automobile113, podemos pensar que em 1963, ano em que foi escrito, já não existia um grande fascínio pelo carro, visto mais como mais um objeto doméstico, deixando seu status social para dar conta apenas das necessidades, tornando- se assim um objeto banal, presente no cotidiano, ainda que de alto valor e não consumido

113 Œuvres Complètes, Vol, II, Éd. du Seuil, 2002, pp. 234-242. Não podemos deixar de mencionar,

também, a importância da leitura das obras de Barthes para a própria escrita de Perec; aluno de alguns seminários, Perec muito provavelmente se inspirou nos escritos de Mythologies para a escrita do seu primeiro livro publicado, Les Choses, assim como pôde aproveitar as aulas do Cours de Linguistique e o seminário sobre a retórica para se inspirar em muitas de suas experimentações literárias.

por toda a sociedade: “l’auto a cessé de fonctionner comme un signe de standing social: elle n’est plus ouvertement um objet de classe ou de promotion; l’homme ne peut plus investir sa vanité dans un instrument dont le projet d’achat est à peu près universel”, e completa, colocando o carro na categoria de objeto de massa: “devenu objet de masse, l’auto cesse d’exciter, du moins en soi, une psychologie de la distinction: l’objet lui-même est devenu socialement neutre, il n’affiche plus”.

Talvez essa reflexão ainda não esteja tão arraigada no pensamento de Perec, que, dois anos após o texto de Barthes, publica Les Choses, que não deixa de ser um livro crítico à sociedade de consumo da época. Já no momento em que descreve Paris, a partir dos projetos que estamos aqui analisando, Perec provavelmente já esteja imbuído desse pensamento, de uma mudança no status do automóvel, de objeto de desejo a apenas um objeto banal, do cotidiano. Nada mais coerente, então, que listar aquilo que parece existir de mais banal num cenário de grandes cidades. Qual o objetivo de enumerar modelos, marcas e quantidades de carros que passam a sua frente? O que há de especial nesses objetos, tão obsessivamente observados por Perec?

Menos o status social e, possivelmente, mais uma marca temporal e (por que não) uma reprodução fiel de uma sociedade que está em constante movimento, cada um dentro de sua própria máquina, da forma mais banal e cotidiana possível. Inclusive o próprio observador, Perec, conta com um automóvel (uma van) para se posicionar estrategicamente e poder realizar seu trabalho sem que pudesse ser observado, de certa forma. Ele é então um voyeur urbano, interessado sobretudo em captar aquilo que está ali todos os dias, e que passa com toda a velocidade sob seus olhos atentos e ávidos pela narração, pelo registro e pela produção dos inventários. Alguns outros dos seus Je me souviens, selecionados abaixo, nos trazem essa ideia das memórias relacionadas ao progresso: cinema, eletricidade, programas de rádio, anúncios publicitários:

129- Je me souviens qu’à Michel-Ange-Auteuil, là où il y a aujourd’hui un Monoprix (ou n Prisunic), i y avait autrefois un cinéma. 819 325- Je me souviens de la grande panne d’électricité qui plongea New York dans l’obscurité pendant plusieurs heures114. 851

339- Je me souviens des programmes de radio (Comme il vous plaira) présentés par Jean-Pierre Morphée115 et ? 854

413- Je me souviens de l’émission de radio du jeudi Les jeunes Français sont musiciens 865

423- Je me souviens des publicités phosphorescentes pendant l’entracte au cinéma Royal-Passy 866.

Na imagem da próxima foto, vemos a adaptação do texto de Perec para o teatro, encenada por Sami Frey: há apenas um objeto como cenário (bicicleta), e a voz como instrumento de transformação do texto (a descrição, aqui no caso, a leitura dos 480 ‘Je me souviens’ que causa uma espécie de vertigem no espectador), assim como no leitor, como nos lembra Burgelin em entrevista à Radio France Culture116, tratando especificamente das descrições e classificações dos lugares feitas no livro Espèces d’espaces que, segundo o crítico, é “le plus charmant livre de Perec”.

Figura 24. Fotograma do vídeo de Je me souviens produzido em 1990 pelo Institut National de L’Audiovisuel (INA), disponível em: https://www.ina.fr/video/CPC90009080.

115 A nota da edição Oeuvres diz que o nome correto do locutor é Pierre Morphé. Este é um dos trechos que

mostram exatamente que Perec optou por deixar a frase incompleta, atestando assim a inexatidão ou falha de sua memória para completar a informação.

116A parceria começou com o próprio Perec, como vemos no artigo “Radio Perec”, citado na próxima nota

com referências completas, que explica, na p. 148: “Perec fut un compagnon de route ponctuel mais bien présent des émissions de Bertrand Jêrome, le grand inventeur de jeux radiophonico-littéraires sur France Culture et promoteur des jongleurs de mots de son époque à travers des émissions multiformes comme Mi- fugue mi-raisin, Allegro ma non troppo, Le Cri du homard, Des Papous dans la tête... ”, nos anos 80, conforme alguns exemplos que aparecerão no corpo do texto.

Nessa mesma entrevista, Burgelin relembra uma célebre frase de Perec, “pour être, besoin d’étai”, do livro W ou le souvenir d’enfance, seguido da explicação: “o suporte para existir, em Perec, encontra-se nos lugares”. E, assim como estes são inclassificáveis, a tentativa realizada em Espèces d’espaces também produzirá um livro inclassificável, já que passível de muitas dúvidas e questionamentos que, por isso, tornam-no tão interessante. Ainda segundo Burgelin, os espaços de Perec são frágeis e se opõem à ideia de lugares felizes de Bachelard (estáveis). Assim, se Espèces d’espaces é um “journal d’un usager de l’espace”, devemos pensar em como entender o espírito de um lugar ou do espaço em geral. Burgelin acrescenta ainda que todos os lugares (ele cita Tentative d’épuisement e Carrefour Mabillon como exemplos) são impossíveis de esgotar, já que tudo que se observa é sempre sob um ponto de vista limitado; se se olha distraído para o lado algo já se perdeu. O fato de esses lugares serem inesgotáveis é que gera uma espécie de “opacidade” do cotidiano e, consequentemente, esta inquietação em interrogá-lo, fazendo com que Perec se torne um explorador, a fim de chegar à conquista do espaço. Curioso pensar em uma entrevista (sonora) incorporada à minha escrita, assim como também notar a quantidade de entrevistas e programas de rádio, em episódios dedicados à discussão da obra de Perec no site da rádio francesa. Essas discussões, juntamente com todas as reflexões sobre a tecnologia realizadas até aqui, fizeram-me pensar na questão da voz de Perec como um componente importante da sua produção literária.