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Jean Luc-Joly afirma também, sobre La Clôture, que a obra constitui uma maneira de superar o ‘fracasso’ de Lieux, ou seja, de obter, de certa forma, uma espécie de apreensão total de um lugar parisiense. Sobre a questão do fracasso, muito já foi discutido aqui, anteriormente, ficando claro que o termo não é o mais adequado; assim, podemos falar de esgotamento, transformação e proliferação do projeto, constituindo outros projetos a partir dele. Além disso, se pensarmos na ideia de jogo e de compartilhamento com o leitor, esta apreensão total do lugar, também mencionada por Joly, parece-nos uma ideia bastante inviável. Pelo que vimos e analisamos até aqui, La clôture parece querer recuperar algo que não foi possível a partir de Lieux, mas não necessariamente expor ou apresentar uma “apreensão total do lugar”.

Esta obra nos parece, pelo contrário, uma maneira de representar a rue Vilin exatamente como ela se parece para Perec: um lugar complexo, repleto de significados, em que não se chega a uma definição precisa, onde existem muitas contradições e dúvidas, onde o jogo da memória e da escrita está em vias de acontecer, mas nada ainda é definitivo, nem mesmo a apropriação do material, que será diferente para cada leitor, como se, de certa forma, esta complexidade e essa diferença fossem a única certeza de

Perec, experiência que ele reproduz para os seus leitores. É como se estivéssemos realmente diante das ruínas daquilo que foi a rue Vilin, no momento em que nos deparamos com a leitura dos poemas.

Se não há o que se lembrar, se não há como se filiar a tal lugar, se não há como criar raízes ou memórias a partir dele, então o melhor caminho talvez seja este compartilhamento com os leitores, de forma que cada um crie, à sua maneira, sua própria rue Vilin e recrie, consequentemente, a história da rua e que, numa esfera coletiva, todos façam parte desse lugar, mesmo que indiretamente, a partir desta leitura lúdica e compartilhada entre o autor e todos os seus leitores. Ou seja, para além da ideia de uma obra de caráter pessimista de teor mais denso, ainda há na estratégia de escrita esta forma de brincar, de interagir com o leitor e fazer viver a arte, mesmo que o tema, de certa forma, remeta, mesmo que indiretamente, à morte, ao fim, ao encerramento do lugar/da memória/ da história do lugar:

Além das representações de imagens de abandono e ruína, o que se afirma é a força viva da arte, da escrita como conquista sobre a morte e sobre o silêncio. As conotações positivas do explícito dos poemas 11 (“linceul naît corps”) e 17 (L’accalmie (ton sûr port au silence / conquis): l’art ?” são singularmente reforçadas. (RIBIÈRE, 2015, p.8).91

A arte, a escrita, a partir das fotos, e da poesia, o lúdico e as trocas com o leitor vão prevalecer, mesmo que o tema a ser tratado não seja dos mais leves, mesmo que haja muitas questões ainda não resolvidas. A escrita será uma maneira de transpor-se a estas questões, a arte será a conquista em face do silêncio da morte, do aniquilamento e do esquecimento daqueles que não estão mais presentes para contar sua história.

Analisando isoladamente as imagens, é inevitável não pensar na ideia de enclausuramento, de ruínas e (por que não?) confundirmos tais imagens com espécies de túmulos ou câmaras funerárias. A analogia não é mera coincidência, já que sabemos do histórico da perda dos pais de Perec, na Segunda Guerra Mundial. Mas as imagens, quando sobrepostas aos textos, a partir da ideia de jogo como aqui exploramos, faz com que olhemos novamente para tais imagens e, de certa forma, passemos a observá-las sob uma nova perspectiva: talvez devêssemos pensar em tais imagens como espécies de

91 Au-delà des représentés, des images d’abandon et de ruine, ce qui s’affirme c’est la force vive de l’art,

de l’écriture comme conquête sur la mort et sur le silence. Les connotations positives de l’explicit des poèmes 11 (“linceul naît corps”) et 17 (“L’accalmie (ton sûr port au silence / conquis) : l’art ?”) s’en trouvent singulièrement renforcées.

relíquias de imagens (já que sabemos que não mais existem), ou como homenagens àqueles que um dia fizeram parte do lugar, mas sem que se trate do assunto de uma maneira direta, explícita ou incisiva.

O olhar é aquele que buscaremos dar, ao fazer possíveis associações dos textos com as imagens e perceber o jogo que se apresenta. Observar a partir destas páginas a efemeridade dos lugares como a efemeridade da vida, do que passa, do próprio tempo que se transforma ao nosso redor. Realizar uma leitura poética em todos os sentidos possíveis, desde a busca pelo enigma da construção dos poemas, passando pela forma em que se acomodam e se transformam em versos e, num último momento, como se intercambiam entre si, entre as fotos, como se fixam sob o olhar e nas mãos de cada leitor, individualmente, transformando-se em pequenas experiências coletivas aquilo que pode ter sido a própria experiência do autor ou vice-versa (transformando-se em pequenas experiências individuais aquilo que pode ter sido a própria experiência coletiva daqueles que viveram nesses lugares, há anos, e assim por diante...).

Figura 18. Imagens de fachadas abandonadas na Rue Vilin, que acompanham os textos de La Clôture. Fonte: https://textualites.wordpress.com/2015/09/22/les-lieux-de-georges-perec-une-oeuvre-eclatee

Figura 19. Imagens de fachadas abandonadas na Rue Vilin, que acompanham os textos de La Clôture. Fonte: https://textualites.wordpress.com/2015/09/22/les-lieux-de-georges-perec-une-oeuvre-eclatee/

Nossa experiência de leitura é fluida, assim como as páginas se fundem e se decompõem novamente. Infelizmente, no caso de La clôture, com o número de exemplares reduzido, temos apenas algumas imagens do que foi a obra em si, sem termos acesso integral a uma delas, sem ter a sensação real do processo de leitura vivido por aqueles leitores que receberam um dos cem exemplares confeccionados de forma quase artesanal à época da publicação.

A segunda edição traz apenas os poemas, deixando de lado o caráter lúdico da obra (as fotos estão ausentes e não há mais o jogo de palavras sob a contrainte; a matriz, em formato retangular e com uso do símbolo § para representar uma letra diferente a cada verso, desaparece). Se pensarmos na questão já discutida aqui (de que em determinado momento Perec deseja apenas que ser leitor leia o texto, o poema, e que a contrainte deixe de ter, contraditoriamente, a importância dada a ela quando da publicação inicial), passamos do lúdico para o poético, para a força da palavra, e o suporte da imagem não

mais aparece, nem tampouco os enigmas de escrita. Se, num primeiro momento, Perec parece produzir esta obra “interativa” e lúdica, num segundo, o que prevalecerá será única e exclusivamente o texto poético em si, evidenciado na segunda edição. Desta forma, fica evidente que a intenção de “esconder” do autor aparece novamente, como nos explica Ribière. Esconder, neste caso, significa deixar de “dar a chave”, desvendar o enigma, dando a ver apenas o texto poético:

Se excluir as matrizes, é se recusar a “dar a chave”, não acontece diferente com as fotografias. Trata-se, tanto em um caso como no outro, de quebrar o impasse sobre as condições e modalidades de produção dos poemas afim de fazê-los atingir, segundo Perec, um estatuto verdadeiramente poético. (RIBIÈRE, 2015, p. 6)92

Ribière chega a esta conclusão (de que Perec se recusa a dar a chave de leitura) a partir de uma declaração do próprio autor, quando trata da exclusão das matrizes e das fotos na segunda edição de La Clôture. Perec afirma : “sans donner la clé, le lecteur peut les recevoir comme um poème”. Portanto, assim como já analisamos anteriormente neste texto, esta ambiguidade entre mostrar e esconder as regras de escrita se evidenciam, ao mesmo tempo em que o texto poético é exaltado por Perec que, na segunda edição, dá preferência única e exclusivamente a sua publicação, deixando o lúdico da obra em segundo plano.

Evidenciar o texto em detrimento das imagens que o acompanham é também uma estratégia encontrada em outras obras de Perec. Fica bastante evidente se analisarmos as descrições de fotos do livro W ou le souvenir d’enfance. Ali, as imagens são descritas de maneira bastante detalhada, mas é o leitor quem criará a imagem a partir da leitura do texto93. Sob este mesmo aspecto, Cécile de Bary comenta a série de desenhos produzida por Perec ao longo da escrita de W ou le souvenir d’enfance, e que invariavelmente também não estará presente no momento da publicação do livro.

Sobre tais desenhos, de Bary afirma haver uma espécie de imagem “evacuada”.94 É interessante levantar dois pontos de vista diferentes sobre a mesma questão: enquanto de Bary usa tal termo para tratar da retirada de imagens do livro La Clôture, Mireille

92 Si exclure les matrices, c’est se refuser à “donner la clé”, il n’en va guère autrement pour les

photographies. Il s’agit, dans un cas comme dans l’autre, de faire l’impasse sur les conditions et modalités de production des poèmes afin de les faire accéder, selon Perec, à un statut véritablement poétique.

93 Há um capítulo no meu trabalho de dissertação onde exploro a descrição das fotografias como produtora

de escrita autobiográfica ficcional.

94 Cécile De Bary, “L’image pré-texte”, Agora. Revue d’études littéraires, n° 4 : Perec – Aujourd’hui, op.

Ribière cita a colega pesquisadora justamente para problematizar a ideia, sugerindo ou preferindo o termo “désancrage” no lugar da ideia de “evacuação” da imagem.

Ribière afirma que, na primeira edição, a foto funciona como “ancrage” do texto ao lugar (a rue Vilin), enquanto a matriz de doze letras funciona como “ancrage” do texto a um procedimento fixo (as doze permutações a partir de um heterograma-matriz). Portanto, segundo Ribière, o texto precisa desta “désancrage” para se constituir novamente como texto, a partir das convenções de escrita (o texto poético em versos livres). É claro que os termos “ancrage” / “désancrage” aparecem fortemente influenciados pelo próprio Perec, que os utiliza em um manuscrito de “Vilin Souvenir” de 1970:

O que há de extraordinário aqui, é que de fato, um lugar modelo, é o que somente passo, onde vejo as coisas (as “coisas”, os sinais de ancoragem) [...] que eles me impõem sua nostalgia (lamento de um país natal, de um lar ancestral [...] minha única tradição, minha única memória, meu único lugar é retórico = sinal de tinta (la différance, la diff(icile) errance, ici l’errance)95 (LEJEUNE, 1992, P. 136).96

A partir dessa ideia de lugar como função de “ancrage” (algo a que se possa fixar), as coisas e os lugares com os quais Perec tem contato – em busca de encontrar uma possível estabilidade – são, portanto, lugares nos quais ele poderá refletir sobre a nostalgia de um país natal, suas memórias, num jogo de palavras que leva de ancrage a encrage (tinta/marca), différance/dffi(icile) errance, ici l’errance, ou seja, seu ponto de apoio (ancrage) será exatamente aquele instável, onde pode percorrer, errar; a errância será o ponto de apoio, num ciclo infinito de paradoxos, assim como na frase célebre “je cherche em même temps l’éternel et l’éphémère”. Nesta escrita em movimento, nesta busca de um ponto onde possa finalmente encontrar certa estabilidade, o termo “ancrage” está presente em outros momentos de escrita de Perec. Um dos trechos mais marcantes de W ou a memória da infância mostra exatamente a cena da visita ao túmulo do pai, como representação de um fim, o fim da morte abstrata e um lugar onde de fato a morte do pai encontra um ponto fixo97:

95 Este último trecho da citação não foi traduzido, a fim de preservar o jogo de palavras existente na língua

francesa.

96 Ce qu’il y a d’extraordinaire ici, ce qui en fait, un lieu modèle, c’est que je ne fais qu’y passer, que j’y

vois les choses (les “choses”, les signes d’ancrage) […] qu’elles m’imposent leur nostalgie (regret d’un pays natal, d’une demeure ancestrale […] ; ma seule tradition, ma seule mémoire, mon seul lieu est rhétorique = signe d’encrage (la différance, la diff(icile) errance, ici l’errance).

97 Além desse trecho sobre a visita ao túmulo do pai, há um documento expedido pelas autoridades

francesas, no ano de 1958, dando a Icek o título de “Mort pour la France”, em razão de um ferimento na guerra. O documento estará disponibilizado na seção “Anexos” desse trabalho.

A descoberta do túmulo do meu pai, as palavras PEREC ICEK JUDKO seguidas de um número de matrícula, inscritas na cruz de madeira e ainda bastante legíveis, me causaram uma sensação difícil de descrever:[...] alguma coisa como uma serenidade secreta ligada à ancoragem no espaço, à tinta sobre a cruz, dessa morte que deixava enfim de ser abstrata [...] como se a descoberta desse minúsculo espaço de terra encerrava enfim essa morte que não tinha havia compreendido, jamais provado, jamais conhecida nem reconhecida, mas que me tinha feito, durante anos e anos, deduzir hipocritamente os sussurros mimados e os beijos suspirantes das mulheres. (PEREC, 1975, p. 54)98