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Lieux e suas constantes transformações

Reiterando então a teoria de que o projeto Lieux está ligado a outros projetos de escrita, vimos em vários momentos o quanto os temas e as reflexões do projeto se reproduzem tanto na escrita de W ou a memória da infância quanto na obra La Clôture. E, por tratar-se de um projeto complexo, que dá origem a diversas obras (e que de alguma maneira têm também relações entre si), é que encontramos as palavras ressoando de um projeto a outro, de um trabalho a outro, numa incessante atualização e reformulação das mesmas questões, em momentos diferentes. Além do termo “ancrage”, que acabamos de analisar, é interessante observar como a noção de “clôture” também está presente em outra obra de Perec, Récits d’Ellis Island, que será tratada com maiores detalhes no último capítulo desta pesquisa.

O que está aqui não são em nada marcas, raízes ou traços, mas o contrário: algo sem forma, no limite do dizível, alguma coisa que posso chamar de fechamento, ou divisão, ou quebra, e que é para mim muito intimamente e muito confusamente ligado ao fato mesmo de ser judeu e não sei precisamente o que é ser judeu isso o que me faz ser judeu [...] não é um sinal de pertencimento [...] será mais um silêncio, uma ausência, uma pergunta, um questionamento, uma flutuação, uma inquietude (PEREC, 1980, p. 42-43)99

98 La découverte de la tombe de mon père, des mots PEREC ICEK JUDKO suivis d’un numéro matricule,

inscrits au pochoir sur la croix de bois, encore tout à fait lisibles, m’a causé une sensation difficile à décrire : […] quelque chose comme une sérénité secrète liée à l’ancrage dans l’espace, à l’encrage sur la croix, de cette mort qui cessait enfin d’être abstraite […] comme si la découverte de ce minuscule espace de terre clôturait enfin cette mort que je n’avais apprise, jamais éprouvée, jamais connue ni reconnue, mais qu’il m’avait fallu, pendant des années et des années, déduire hypocritement des chuchotis apitoyés et des baisers soupirants des dames.

99 Ce qui se trouve ici ce ne sont en rien des repères, des racines ou des traces, mais le contraire : quelque

chose d’informe, à la limite du dicible, quelque chose que je peux nommer clôture, ou scission, ou coupure, et qui est pour moi très intimement et très confusément lié au fait même d’être juif je ne sais pas très précisément ce que c’est qu’être juif ce que ça me fait d’être juif […] ce n’est pas un signe

d’appartenance […] ce serai plutôt un silence, une absence, une question, une mise en question, un flottement, une inquiétude.

É inevitável não levantarmos tais questões, não realizarmos tais análises em casos tão evidentes como estes apresentados. O lugar que se busca, a partir da ideia de “ancrage”, que se descobre ligada à ideia de “errance”, tem seu ponto máximo de exploração na obra Récits d’Ellis Island (o tema principal da obra é a errância, como veremos), mas, ainda assim, está presente a noção de “clôture/scission/coupure” ou todos estes sentimentos relacionados à trajetória de vida e, principalmente, ao fato de o escritor pertencer a uma família judia, mesmo que este assunto só seja tratado direta e explicitamente na obra em questão.

Em Lieux, há apenas uma tentativa de se ancorar àqueles lugares, a partir de um trabalho longo, de errância e descrição; em La Clôture, há a materialização e o jogo de palavras que se transformam no próprio lugar de enclausuramento no primeiro momento e que, numa segunda edição, se liberta para se tornar texto, apenas. Finalmente, a saída de Paris, em direção a Nova Iorque, e a história de errância de outros pode se tornar lugar de “ancrage”. Ao menos da escrita, neste caso, que se libera e que, dando voz aos outros, faz-se também voz de Perec e de seu parceiro em Ellis Island, Robert Bober.

Mesmo desejando que seus poemas sejam lidos, os versos de La Clôture, muitas vezes difíceis de serem apreendidos em seu sentido, são um desafio de leitura, quase como o desafio de encontrar um lugar ao qual se ancorar. Os poemas são, de certa forma, representações também daquilo que se repete em Ellis Island, como vimos no trecho transcrito acima; para retomar as palavras de Perec, as palavras em seu processo de “désancrage” da matriz e das fotos parecem em busca de uma resposta: temos de lê-las como “une mise en question, un flottement, une inquiétude”.

O que parece ainda mais interessante é pensar que, nesta busca por um lugar onde possa se ancorar, fixar-se, Perec conta, invariavelmente, com a presença do outro ao seu lado: se investigar a rue Vilin (e errar pelo lugar) sozinho não foi suficiente, a fotógrafa e seu olhar o acompanharam nesta jornada. Do mesmo modo, a errância e a travessia de Paris a Nova Iorque também não foi solitária. Perec contou com o olhar de Bober para descobrir um lugar de apoio, onde pode refletir sobre todas as questões de Lieux, de La Clôture, de W ou le souvenir d’enfance e, finalmente, chegar à escrita de Ellis Island. Todas estas obras são, de fato, desdobramentos de Lieux e das apropriações de Perec diante de si mesmo e também do olhar do outro.

Figura 20. Cena final do filme “Um homme qui dort”, que mostra o personagem andando pela rue Vilin. O vídeo completo do filme está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UaIXUXdYthA

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A rue Vilin será, portanto, este possível lugar de ancrage. Ou ao menos a busca, como vimos até aqui. Segundo Pierre Nora, “a razão fundamental de ser de um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisa, imortalizar a morte, materializar o imaterial para prender o máximo de sentido num mínimo de sinais, é claro, e é isso que os torna apaixonantes” (1993, p. 22). Perec nos dará pistas deste lugar de memória, primordial, em vários momentos de sua obra e não apenas nos projetos aqui mencionados.

Nora completa definindo tais lugares de memória como uma espécie de lugar duplo: ao mesmo tempo fechado sobre si mesmo, mas constantemente aberto sobre a extensão de suas significações, exatamente como nos parece o lugar de infância de Perec. Para finalizar e ilustrar esta afirmação, relembro um trecho de entrevista em que, ao ser perguntado se os lugares que aparecem na filmagem de Un homme qui dort têm relação com os doze lugares de Lieux e, consequentemente, com aspectos da própria existência, Perec responde que sim, já que, mesmo aparecendo no filme de maneira indireta, todos

os lugares “estão ligados a minha história pessoal”. Ele ainda complementa, afirmando que “o que é mais importante, é que o lugar do plano final é a rua onde nasci”100. Assim, encerramos este capítulo com a ideia de que o lugar de memória estará presente nos dando pistas, fazendo-nos refletir e funcionando com fator essencial para a escrita de Perec.

Podemos concluir, brevemente, que, com a obra La Clôture, Perec recria a seu modo a rue Vilin, partindo da transformação do antigo projeto Lieux em poesia e imagem. Veremos também transformações e recriações de outros lugares, na sequência do próximo capítulo, a partir da análise de dois filmes (La vie filmée e Les lieux d’une fugue), além de outras obras que trazem reflexões complementares às que foram até aqui realizadas, mas que carregam consigo ainda o projeto autobiográfico não concretizado de Lieux.

CAPÍTULO III

Dando continuidade à reflexão sobre as transformações do projeto Lieux, analisaremos nesta parte do trabalho outras obras que dialogam com a nossa hipótese de pesquisa. O presente capítulo está dividido em duas partes: a primeira trata da análise do documentário La vie filmée, criado a partir de um conjunto de imagens amadoras compiladas para reproduzir os costumes da vida na França dos anos 30. Perec faz uma reflexão sobre uma época e também sobre a própria história. Essa reflexão, no entanto, baseia-se sobretudo em descrições de objetos, dando um destaque inicial exatamente para o uso da câmera, que era uma novidade naquela época.

A partir disso, realizamos uma análise da importância dos objetos em algumas obras de Perec (e sua descrição, muitas vezes exaustiva, como maneira de contar uma história, seja ela pessoal ou coletiva) e, especificamente, de alguns objetos que marcam uma época específica, como os carros, por exemplo. Assim, nossa análise parte da descrição dos objetos para sua relação direta com a tecnologia. Observaremos que é pela tecnologia que Perec tem acesso ao rádio e aos equipamentos que fazem com que seu texto, em alguns momentos, dê lugar a sua voz. Isso nos ajuda a refletir também sobre questão da voz e das produções sonoras de Perec nessa primeira parte, em especial na obra Tentative de description des choses vues au Carrefour Mabillon, de 1978. Assim, nas obras apresentadas nessa parte, já podemos perceber que a sua pretendida expansão para outros suportes começa a se realizar, já que La vie filmée e outras obras a serem mencionadas seguem o procedimento de Lieux: observar os lugares, os objetos, tentar fixar o tempo a partir dessas descrições.

Na segunda parte, o filme analisado será Les lieux d’une fugue: realizado em 1976, ele recria um texto autobiográfico de 1965 que narra a fuga de Perec quando criança, da escola, para andar sem rumo pelas ruas de Paris. Dois lugares importantes, rue de l’Assomption e Franklin Roosevelt, são também dois dos doze lugares de Lieux e terão destaque importante no documentário. O primeiro é a casa onde viveu com os tios, sua família adotiva e o segundo, o local onde sua aventura acontece nas cenas iniciais do filme. A relação com o projeto Lieux também fica evidente, principalmente ao constatarmos que, por mais que se trate de uma história autobiográfica, o narrador utiliza a terceira pessoa para contar a história. Há um “il” que não aparece na cena, substituído sempre pelas imagens dos lugares. Perec se valeu de um texto autobiográfico, incorporando a ele as imagens dos lugares percorridos durante o projeto Lieux, o que

resultou numa história sem personagens visíveis, mas com uma carga autobiográfica estritamente ligada à memória em relação aos lugares observados e percorridos.

1. La vie filmée des français (1974): olhar para imagens antigas, contar sua