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Re (escutando) a voz de Perec em La vie filmée

1. La vie filmée des français (1974): olhar para imagens antigas, contar sua própria história

1.3. Re (escutando) a voz de Perec em La vie filmée

Para concluir, pensando nas questões tratadas até o momento, retomo a obra que abriu o capítulo e que contribuiu para todas as reflexões que se seguiram até aqui: La vie filmée, que também tem como um dos aspectos principais a voz de Perec como objeto fundamental, já que representa a capacidade que Perec possui de lidar com imagens de pessoas e lugares praticamente desconhecidos, e transformar este material bruto em momentos importantes de sua própria reflexão como escritor (e, nesse caso especificamente, um escritor que lê, que produz som, e que transforma sua voz em parte integrante do filme).

Também fica evidente que observar estas imagens funciona como combustível para o processo de escrita, principalmente para uma escrita que se volta para as questões mais profundas e dolorosas de sua própria história, que são deixadas de lado por muito tempo. Refletir sobre este tempo passado e sobre estes desconhecidos que se encontram, interagem e confraternizam pode ter como pano de fundo uma grande necessidade de criar para si uma fábula sobre o próprio passado, uma vez que não há muito o que ser lembrado da própria vida. O banal e o cotidiano funcionam, mais uma vez, como motivação para uma escrita carregada de questões sobre si mesmo:

Sob a incerteza do passado e do futuro, a história feliz de uma família se perpetua através de imagens sorridentes destes adolescentes que fazem careta ou deste dinamarquês de boa aparência provando sua cordialidade a um bebê hoje há muito tempo adulto. (PEREC, 2006, p. 78)150.

A história de qualquer família pode ser a dele (aquela que não existiu). Por um instante, escrever detalhes banais sobre famílias que se reúnem para brincadeiras pode

150Sous l’incertitude du passé et du devenir, l’histoire heureuse d’une famille se perpétue à travers les images souriantes de ces adolescents faisant la grimace ou de ce danois débonnaire prouvant sa bonhomie humide à un bébé aujourd’hui depuis longtemps adulte Esta citação e as demais, onde Perec descreve as cenas do filme La vie filmée, fazem parte do texto “La vie filmée”, de Georges Perec (o texto, de fato, é o resultado da transcrição dos comentários do filme, feita por Cécile de Bary), publicado nos Cahiers Georges Perec 9, Ed. Le Castor Astral, 2006, pp.73-82.

parecer uma eternidade de felicidade para aquele que observa, em silêncio, as imagens. É reconfortante imaginar que aquele bebê da imagem hoje é um adulto formado. É a certeza do tempo que passou, da vida que seguiu seu curso. As imagens nos ajudam a questionar esta dinâmica veloz do tempo, nos ajudam também a criar nossas histórias, nossas ficções e, inclusive, reconstruir, de certa forma, nossas próprias memórias. O que a imagem nos diz? Parecem questões sem resposta, parecem-se com pequenos traços quase apagados, dentro da duração de um movimento, de maneira quase sutil. São os detalhes que nos fazem questionar: “Qui-est là? Que fait-il ? Un homme ouvre la bouche, il parle, il répond peut-être à celui qui est en train de le filmer. Mais que dit-il ? Les images sont muettes et restent muettes, on ne peut que les interroger sans fin... (PEREC, 2006, p.76). Assim, Perec afirma que se produz o “milagre da imagem”: a partir destes pequenos detalhes que observamos, podemos encontrar neles um certo charme, uma doçura, um gesto que parecia esquecido, uma leitura quase poética do cotidiano.

O suporte da película carrega traços marcantes, para quem filma e também para quem assiste ao filme. Eventos irrisórios são responsáveis por muitas e agradáveis surpresas, desde que consigamos olhar além do que está nas imagens e, por isso, aprender a interrogá-las, a desconfiar delas, maravilhar-nos com sua simplicidade e grandiosidade. O processo de leitura do cotidiano é, mais uma vez, uma forma de recontar a própria vida. As imagens da câmera podem nos dar o que a fotografia não permite: o movimento, o inconstante, o que não deixa traços definitivos, aquilo que não se pode fixar.

Todas estas questões estão presentes nas obras analisadas nesta pesquisa: a ver, o interrogar do tempo e dos lugares como uma forma de escrever sobre si. O trecho em que Perec comenta o bairro de Ménilmontant é o ponto alto do filme, uma vez que podemos observar questões claramente autobiográficas, mesmo que, para isto, ele se valha de um material produzido por outra pessoa. A citação do próximo trecho, onde descreve o bairro em que sua família viveu, mostra detalhes de uma vida precária na França dos anos 30, local onde seus pais viveram antes mesmo de seu nascimento. As fachadas das casas, as crianças brincando nas ruas e os muros degradados lembram em muito o que ainda viria a ser o bairro que visitou no final dos anos 60, para o projeto Lieux. Ali, naquelas fotos, Perec já consegue reconhecer um pouco do que foi seu passado e do que é seu presente:

O acaso quis que esse filme fosse rodado no bairro onde nasci, em Ménilmontant. O homem que, durante um ano, em 1931, filmou estas fachadas, estas mulheres, estas crianças, estas escadas, percorreu as ruas nas quais, um pouco mais tarde, dei meus primeiros passos: a Rua Sorbier, a Rua Chevreau, a Rua Julien-Lacroix, a vila Faucheur, a rua

da Mare, a Rua Vilin, a passagem Ronce, o impasse Dhéron, a Rua Piat, a vila Ottoz, a cité Billon, a Rua do Transvaal, a Rua dos Envierges, a Rua dos Couronnes. (PEREC, 2006, p. 80)151

Figura 26. Os dois fotogramas acima fazem alusão ao bairro onde os pais viveram: rostos desconhecidos motivam Perec a escrever sobre a sua própria história, além das imagens do bairro degradado, relação direta com as ruas em que passou parte de sua infância

.

151 Le hasard a voulu que ce film soit tourné dans le quartier où je suis né, à Ménilmontant. L’homme qui,

pendant un an, en 1931, a filmé ces façades, ces femmes, ces enfants, ces escaliers, a parcouru les rues dans lesquelles, un peu plus tard, j’ai fait mes premiers pas : la rue Sorbier, la rue Chevreau, la rue Julien-Lacroix, la villa Faucheur, la rue de la Mare, la rue Vilin, le passage Ronce, l’impasse Dhéron, la rue Piat, la villa Ottoz, la cité Billon, la rue du Transvaal, la rue des Envierges, la rue des Couronnes.

Todos os lugares e ruas citados por Perec são aqueles que ele conhece desde a infância, por isso a narração se torna mais interessante. Ele nos mostra que houve uma espécie de mise en abîme entre aquele que filmou o lugar (para a produção do documentário) e ele mesmo, já que está observando a partir das imagens da câmera de um outro, para escrever uma história coletiva, mas, ao mesmo tempo, muito íntima. Seria também este texto de pesquisa uma outra camada deste processo? Também estou aqui comentando os comentários de Perec, revendo o vídeo visto primeiro pelo realizador do filme e depois por Perec. Também estive nas ruas do bairro de Ménilmontant em busca de respostas para meus anseios de pesquisadora.

A minha caminhada por estes lugares pode ser considerada uma pesquisa que segue num movimento de mise en abîme? Perec observa alguém que esteve no lugar, assim como eu observo o lugar onde Perec esteve. É como se tudo girasse em torno deste tema (lugares), como se as buscas nestes lugares remetessem a outras questões importantes (memória, tempo, espaço). Sem ir diretamente aos lugares, Perec os observa pelo olhar de um outro, e ainda assim produz reflexões importantes e continua desenvolvendo seu trabalho de escrita e observação. Sobre as imagens mostradas no filme conclui: “alguma coisa um pouco ultrapassada que não pertence a ninguém, mas talvez pertença a um sonho que todos tínhamos, como uma memória fabulosa que fabrica essas milhares de memórias anônimas arrancadas do tempo perdido para projetá-los sem piedade na vertigem da nossa história.” (PEREC, 2006, p. 80)152

Assim, considero as reflexões acerca de La vie filmée parte essencial para toda a discussão construída nesta primeira parte do capítulo, uma vez que possui algumas semelhanças, mas também diferenças, em relação a Lieux; se nesse projeto o foco foi apenas olhar para o lugar e descrevê-lo, na tentativa de guardar ou recuperar lembranças, nos comentários produzidos para o documentário La vie filmée Perec vai além: ele cria lembranças, a partir do momento em que entra em contato não só com os lugares, mas também com as pessoas que fazem parte daquele lugar.

152 “quelque chose d’un peu suranné qui n’appartient à personne, mais peut-être à un rêve que nous faisons

tous, comme une mémoire fabuleuse qui brasse ces milliers de souvenirs anonymes arrachés au temps perdu pour les projeter sans pitié dans le vertige de notre histoire”

Figura 27. Cena do bairro Ménilmontant no documentário

“Mon père, ma mère, mes grands-parents se trouvent peut-être parmi cette foule qui, tous les dimanches matin, s’amassait sur le boulevard de Ménilmontant... Ou bien, peut-être, sont-ils près de l’autre, noyés dans ce cortège qui se forme, comme s’il s’en est si souvent formé en 1931, pour aller manifester contre le chômage” (PEREC, 2006, P. 80).

. Ao olhar para diversos lugares que não conhece, cria para eles histórias e lembranças possíveis, a partir do que vê no olhar daquelas pessoas ali filmadas. Quando vê o bairro em que os pais moraram, ainda assim reflete e imagina que tivessem passado pelas mesmas situações que aquelas pessoas passaram. Enfim, o contato com o outro será ainda mais produtivo para Perec: não só o lugar, mas as pessoas ali presentes são fundamentais para a escrita e para as reflexões realizadas no documentário. Esse movimento em direção ao outro ficará ainda mais evidente quando tratarmos de outro documentário, no próximo capítulo, Récits d’Ellis Island, onde o contato com o outro será também fundamental para a escrita e a produção do filme.