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Regras fixas em jogo, autobiografia desvelada

2.1. O lugar fechado se transforma: poesia e regras de escrita

2.1.1. Regras fixas em jogo, autobiografia desvelada

É interessante também pensar no símbolo utilizado por Perec para o uso da letra coringa em cada verso. Mireille Ribière nos lembra, em seu artigo83, que o símbolo §, que comumente interpretamos como significado de parágrafo, adquire um novo sentido: a superposição de duas letras S (SS, no sentido vertical) faz uma analogia ao nazismo, que está diretamente ligado à morte de seus pais. Concluindo, podemos pensar nestes pequenos detalhes ou regras, criados para a composição dos textos, como elementos que dizem muito sobre as questões autobiográficas, mesmo que de forma velada, como nos explica o artigo de Julie Magot84:

Os textos oulipianos de Georges Perec revelam a necessidade para o poeta de se proteger de uma história pessoal difícil de identificar e de contar. Graças à experimentação poética, ele evita o registro da efusão onde a linguagem se revela impotente e vai mais longe quando se destaca do texto literário clássico, legível, coerente, onde o sentido é dominado. Georges Perec oulipiano torna-se como um possuidor legítimo da linguagem, objeto doravante manipulável, jogo de possibilidades infinitas. O domínio do escritor e do poeta é assim libertado de toda angústica, de todo investimento pessoal que viriam perturbar, “corromper” o poeta e sua poesia. (MAGOT, 2010, p. 3)85 Criando uma regra fixa de escrita, ele parece colocar para si limites ao mesmo tempo em que se protege, não se deixa levar pelas questões pessoais, tão difíceis de serem tratadas, como já vimos em diferentes momentos da obra. Há, então, uma espécie de tentativa de controle do que será escrito, o que torna a escrita mais desafiadora para o autor e, ao mesmo tempo, faz com que Perec manipule a linguagem com uma direção certa a seguir. Não há, portanto, investimento pessoal na escrita, como Magot afirma, e sim disciplina para atingir uma regra fixa, mesmo que fique claro, para nós leitores, que todas as questões pessoais vão aparecer, nas entrelinhas, por pequenos detalhes que ficarão visíveis para os leitores mais atentos. Magot parece insistir na importância deste

83 “Le lieu et la forme dans La Clôture”, de 2015.

84 “Essai de poétique comparée : Georges Perec et Jacques Roubaud”, de 2010.

85 Les textes oulipiens de Georges Perec révèlent la nécessité pour le poète de se protéger d’une histoire

personnelle difficile à cerner et à raconter. Grâce à l’expérimentation poétique, il évite le registre de l’effusion où le langage se révèle impuissant et va même plus loin en se détachant du texte littéraire classique, lisible, cohérent, où le sens est maîtrisé. Georges Perec oulipien devient comme le possesseur légitime du langage, objet désormais manipulable, jouet aux possibilités infinies mais contenues. Le domaine de l’écrivain et du poète est ainsi débarrassé de toute angoisse, de tout investissement personnel qui viendraient perturber, “corrompre” le poète et sa poésie.

processo de escrita como uma maneira de dominar os próprios sentimentos, transformando-os em textos, rigorosamente criados a partir de critérios pré-definidos. É como se tal controle nos fizesse refletir exatamente sobre as questões complexas que o envolvem, como a tensão entre o pleno e o vazio, entre o que se lembra e o que é esquecido, intermitentemente:

Os textos oulipianos constroem um todo artificial de signos dominados: a plenitude dos signos é a ausência de sentido oposta ao vazio da memória na qual se inclui uma forma de desarticulação, de de- composição da palavra, do signo linguístico. O poeta é oulipiano acima de tudo, como uma definição de si mesmo, a solução para expessar a ausência e o problema da memória. (MAGOT, 2010, p. 5)86

Paradoxalmente, a ideia de controle sobre a escrita e esta possível tentativa de “esconder” as questões autobiográficas funcionam, de certa forma, como um desafio para esta pesquisa, que se baseia sobretudo nestas questões autobiográficas que estão presentes, mesmo que de maneira indireta. No caso de La Clôture, a principal imagem à qual temos acesso (a porta do imóvel n. 24 da rue Vilin, lugar onde viveu na infância) já nos remete a essa ideia de fechamento, enclausuramento e, por que não, falta? É ali o lugar onde tudo deveria ser esclarecido, onde toda a memória deveria vir à tona, onde todos os mistérios da vida deveriam encontrar uma possível solução. Como vimos, a sensação de estar fisicamente presente no lugar corresponde exatamente à cena da foto de uma porta fechada (a visita não produz memória, não faz Perec se lembrar de nada, não traz à tona a resposta para seus questionamentos). É um caminho estreito, fechado, escuro, abandonado e que não leva a nenhum esclarecimento.

A poesia produzida para o livro La clôture homenageia este percurso de escrita e imagens que se fundem pelas caminhadas na rue Vilin. A escrita de Lieux, interrompida, dá lugar à recriação a partir da poesia, talvez como alternativa de preencher o vazio, a falta, não preenchidos apenas com as descrições objetivas e escassas do local. É como se a escrita em forma de poesia fosse uma alternativa, uma nova forma de fazer este vazio “falar”.

E o que se espera da leitura de La clôture? Uma espécie de enigma que se coloca para o leitor, o reflexo do enigma provocado em Perec? Se não há nada a ser lembrado,

86 Les textes oulipiens construisent un plein artificiel de signes maîtrisés : le plein des signes, c’est l’absence

du sens opposée au vide de la mémoire auquel s’ajoute une forme de désarticulation, de dé-composition du mot, (fin p. 4) du signe linguistique. Le poète est oulipien avant tout, comme une définition de lui-même, la solution pour exprimer l’absence et le problème de la mémoire.

se apenas olhar não traz nenhum significado, como transportar este enigma de difícil resolução para a escrita poética, como fazer o leitor lidar com o enigma da escrita? De um lado, temos as fotografias que são um índice do real e, de outro, a ficcionalização desse real a partir da criação poética.