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O jogo com o leitor em La Clôture

2.1. O lugar fechado se transforma: poesia e regras de escrita

2.1.2. O jogo com o leitor em La Clôture

Podemos dizer que há um duplo jogo de adivinhação. Perec olha e descreve, tenta recompor as letras quase apagadas na inscrição “Coiffure dames”, tenta entender o enigma daquele lugar: é assim que ele escreve para o seu leitor. Este terá que desvendar o que se passa dentro do “enclausuramento” de letras que se produz a cada verso dos poemas de La clôture.

Se, num primeiro momento, as letras quase compactadas e as palavras separadas algumas vezes por “§” produzem uma espécie de ilusão de ótica, não menos enigmática será a leitura “convencional” do poema, que segue abaixo da representação experimental inicial, como vemos na imagem:

Figura 15. Imagens das páginas de La Clôture. Fonte: https://textualites.wordpress.com/2015/09/22/les-lieux-de- georges-perec-une-oeuvre-eclatee/

O texto aparece, como que desvendado para o leitor, abaixo da matriz heterogramática apresentada no alto da página. Ainda assim, sua leitura é hermética, fechada e, segundo a análise da seção Notices, nas Œuvres, parece realizar uma homenagem a Mallarmé:

De fato, o livro presta uma homenagem a Mallarmé, com quem partilha o gosto pelo hermetismo. Se a indireção – ou mesmo a dificuldade – de sentido tornou-se na França, desde o fim do século XIX, uma marca usual do gênero poético, os textos super restritos de Perec só podem enriquecer essa opacidade: a significação é construída neles com uma grande relutância, em sucessões descontínuas de breves epifanias. (Œuvres, vol II, p. 1189)87.

A leitura, portanto, torna-se também uma clôture, graças a sua opacidade. Não há pistas que possam ajudar na compreensão do sentido, a não ser as imagens que acompanham os poemas, e o pouco que sabemos a respeito do lugar, para tentar compor algum sentido entre todos os elementos. Tentamos adentrar esta leitura fechada, que parece simbolizar as fachadas muradas de uma rue Vilin em processo de desaparecimento, cercadas de brancos e vazios do texto que funcionam para nos lembrar do tema recorrente ali inseridos: estamos lendo poesia que trata, sobretudo, do tema da ausência. Assim, a análise segue apontando para um tipo de poesia que nos parece, portanto, um tanto quanto precária em sua composição:

Escreve-se assim, letra por letra, uma poesia precária, cujo sentido, sempre à beira do inconsciente, parece magnetizado por um silêncio ao qual o branco do papel fornece uma figura concreta, numa coleção composta, segundo o uso contemporâneo, de mais branco do que de texto, e cuja economia se baseia em uma série de ausências (Œuvres, vol II, p. 1189)88.

São muitos os significados que podemos inferir a partir destas poucas imagens dos textos em sua edição original. Há uma dubiedade em todo o processo de escrita e na maneira como estas palavras aparecem dispostas, formando versos e, por fim, poemas. Se, por um lado, a escrita experimental e repleta de contraintes representa muito bem a escrita de Perec de maneira geral, há também a representação da ideia de enclausuramento

87 Le livre rend, de fait, un hommage appuyé à Mallarmé, dont il partage le goût de l’hermétisme. Si

l’indirection- voire la difficulté – du sens est devenue en France, depuis la fin du XIXe siècle, un marqueur

usuel du genre poétique, les textes hypercontraints de Perec ne peuvent que renchérir sur cette opacité : la signification s’y construit avec une grande réticence, en successions discontinues de brèves épiphanies [...]

88 S’écrit ainsi, lettre à lettre, une poésie précaire, dont le sens, toujours au bord de l’évanouissement, semble

aimanté par un silence auquel le blanc du papier donne une figure concrète, dans un recueil composé, selon l’usage contemporain, de plus de blanc que de texte, et dont l’économie repose sur une série d’absences.

das palavras, que dá origem à relação que fizemos com a imagem da porta do número 24 do imóvel da rue Vilin. Há também uma segunda questão. Perec, em muitas entrevistas, sempre deixou claro um duplo descontentamento: primeiro, que o público não percebesse a contrainte produzida e, num segundo momento, que a obra só fosse importante devido à contrainte, excluindo-se a importância de todo o restante (foi exatamente o que aconteceu no caso do livro La disparition, que não contém a letra e como regra formal de escrita).

No caso de La clôture, Perec parece ter criado a regra e, ao mesmo tempo, ter “revelado” o enigma do texto, simplesmente publicando, na mesma página, o poema escrito da forma convencional (ou em versos livres, de fato e que, como vimos, ainda assim não favorece completamente a leitura e a compreensão dos versos). Segundo o autor, escrever só sob a forma de contraintes faria com que o público não tivesse a oportunidade de ler efetivamente os poemas, tais como aparecem na parte de baixo da página. Esta questão de deixar descoberto/esconder também é algo bastante recorrente na obra de Perec.

É sempre um duplo movimento de trabalho com o leitor, às vezes pregando peças e às vezes trazendo soluções, como se o quebra-cabeças viesse duas vezes na mesma caixa, um desmontado e o outro montado, para que se compreendesse como se chegou à montagem, num ciclo infinito de mostrar/descobrir/montar/desmontar. Assim como as folhas do livro, que chegam soltas para o leitor, permitindo todos os tipos de permutas e associações de inúmeras maneiras.

Impossível, assim, mesmo para os pesquisadores, encontrar um exemplar que pareça representar a configuração inicial imaginada por Perec, como nos descreve Mireille Ribière:

A edição de 1976 fez de La Clôture uma obra aberta cujos elementos são reordenáveis à vontade. Assim a composição das caixas que eu pude consultar varia de um exemplar a outro, sem que se possa afirmar que se trata da ordem original ou do resultado de manipulações de leitores- assinantes curiosos. De fato, se os poemas designados por seus incipit são numerados em uma lista à parte, a ordem das fotografias não é de forma nenhuma precisa: nenhum percurso de leitura é, dessa forma, imposto. (2015, p. 1-2)89

89 L’édition de 1976 fait de La Clôture une œuvre ouverte dont les éléments sont réordonnables à volonté.

Ainsi la composition des coffrets que j’ai pu consulter varie d’un exemplaire à l’autre, sans que l’on puisse affirmer s’il s’agisse-là de l’ordre originel ou du résultat des manipulations de lecteurs-souscripteurs curieux. En effet, si les poèmes désignés par leur incipit sont numérotés sur une liste à part, l’ordre des photographies n’est nullement précisé : aucun parcours de lecture n’est, de ce fait, imposé.

Na verdade, a intenção provável é que houvesse realmente este trabalho de interação com o leitor a partir do livre manuseio das folhas, para que elas se permutassem da maneira como cada leitor pudesse imaginar. Aí está uma das questões bastante interessantes da obra: cada um destes leitores criou, para si, uma história sobre a rue Vilin, diferente, seguindo seus próprios gestos de leitura, montagem, desdobramentos e associações entre textos e imagens das mais variadas configurações. Talvez aqui possamos pensar num Perec que não tinha uma imagem única ou definitiva para oferecer sobre o lugar e que, portanto, sugere este jogo de quebra-cabeças para representar, de certa maneira, toda a complexidade de significações presentes na obra.

Encontramos em La Clôture, portanto, um texto com palavras que trazem um tom pesado, reforçando termos que remetem à ideia de enclausuramento, fechamento, ou à questão da memória inalcançável: “art inscrit à l’enfoui clôturé/ l’inertie d’un roc/ l’intac lac: souvenir/ crois le ciment, sa lourdeur/ la cour démolie”. Além do léxico que remete ao enclausuramento, contamos com uma leitura fechada em si mesma, que recorre a um leitor que precisa tentar decifrar os enigmas, como nos explica Claude Burgelin90: “Le texte fait se conjoindre cette exploration des pouvoirs de la langue mutilée et l’enquête sur les traces de son histoire”. Essa língua mutilada, portanto, é o reflexo da imagem da ruína, presente tanto nas imagens da rua abandonada quanto na própria linguagem apresentada, ainda segundo Burgelin: “Il se crée en même temps un dialogue muet entre cette poésie ruinée et les images de cette rue aux portes murées, vouée à la destruction”. Para finalizar esta ideia do jogo, nada mais evidente do que pensar nas matrizes de escrita (os poemas “enclausurados”) constituídas por doze blocos (ou linhas) de doze letras cada uma, remetendo-nos diretamente ao projeto 12 x 12 de Lieux (escrever doze anos sobre doze lugares).

É como se a escrita de La Clôture representasse uma imagem concreta, no sentido literal, pois há uma construção (em blocos) que nos remete a uma parede ou muro (no caso abaixo, também a imagem de uma cama, e a relação com a primeira palavra do poema: “lit”). Como se fosse uma espécie de poesia concreta formada por uma regra de escrita, mas também carregada de um forte componente visual, já que representa ou remete diretamente à materialidade e à visibilidade proporcionada pelas fotos que acompanham os textos.

Figura 16. Páginas do livro La Clôture. Fonte: Artigo Le lieu et la forme dans La Clôture, 2015, p. 12.

Além da imagem que remete à cama, a ideia de abandono ou destruição do lugar é fundamental para a escolha das palavras: ou seja, além da contrainte de escrita estabelecida (número de letras limitado e seleção de letras específicas), há ainda a seleção do léxico que representa muito bem as imagens que acompanham todos poemas; no caso abaixo, temos, por exemplo, o uso das palavras “démolie, rupture, clôture, mort”, entre outras.

Se observarmos o bloco de escrita abaixo, o formato retangular já fica bastante evidente e podemos pensar nesta relação com o formato das portas fechadas ou cimentadas recorrentes nas fotos tiradas da rue Vilin, como nos mostra Mireille Ribière, a partir de uma montagem, na página 12 do texto já citado.

Ela nos afirma que basta respeitar as proporções da matriz e da fotografia da porta do número 24 e chegaremos a esta sobreposição emblemática e que pode nos dar a pista da escolha do formato da matriz:

Figura 17. Montagem do texto sobre a foto do imóvel 24 da Rue Vilin. Fonte: Artigo Le lieu et la forme dans La Clôture, 2015, p. 12.