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Tentativa de descrição de áudios e textos de Carrefour Mabillon

1. La vie filmée des français (1974): olhar para imagens antigas, contar sua própria história

1.2. A tecnologia na voz de Perec: o texto que passa a ser som

1.2.3. Tentativa de descrição de áudios e textos de Carrefour Mabillon

Como dito anteriormente, são vários os pontos do texto de Magné que parecem dialogar com essa pesquisa, mesmo que o acesso ao texto tenha ocorrido tardiamente, quando muitas das ideias aqui apresentadas já estavam parcialmente colocadas em jogo. Uma das questões bastante interessantes é a composição do projeto e suas diferentes camadas de produção, além, é claro, da analogia esportiva, que parece inclusive dar um tom lúdico para a empreitada de Perec. Um ponto a mais em comum entre essa pesquisa e o texto de Magné, entretanto, parece fugir um pouco da questão do lúdico, adentrando as contraintes da escrita, principalmente no que se refere à dificuldade da regra imposta.

Nesse caso, Perec parece ter se dado uma missão bastante ambiciosa. Como descrever em tempo real? Como passar essa sensação de simultaneidade entre o que observa e o que fala, reproduz, num espaço de tempo tão veloz? O que é interessante na leitura de Magné – e que nos ajuda a pensar nessa questão da obsessão pela descrição, em particular dos carros e outros meios de transporte –, parece relacionar-se com a questão da dificuldade máxima imposta a si mesmo; ou seja, encontrar uma forma de escrita (transformada em som, nesse caso) que dê conta do minuto, do segundo, do real enquanto ele acontece.

E nada mais representativo disso do que descrever aquilo que não está estático, mas sim em movimento. Por isso mesmo, Magné dedica uma das seções do seu texto ao sub-item Mobilis em (auto) mobile: “Carrefour Mabillon n’énumère que les éléments mobiles de l’univers urbain: véhicules, passants et quelques rares animaux (chiens, pigeons) et ce seront em outre les seuls éléments repris dans les inventaires dits par Claude Piéplu” (P. 178). Assim, elementos que estejam em movimento serão, de certa forma, a própria representação dessa narração do real, em tempo real, no momento em que

136 Publicados sob o título “Stations Mabillon”, na Revista Action Poétique, n. 81, maio de 1980.

137 Vale lembrar que Carrefour Mabillon faz parte dos doze lugares constantes no projeto Lieux e, segundo

Lejeune, em sua obra La mémoire et l’oblique, esse endereço tem forte ligação com Paulette Perec, com quem Perec se casou em 1960, fazendo com que o lugar tenha uma carga afetiva significativa, além de ser uma clara transformação de Lieux, já que repete as descrições escritas do projeto passando, desta vez, para a descrição sob a forma de som, da própria voz. A lista com todos os doze lugares de Lieux e suas possíveis ligações autobiográficas estão na página 164 da referida obra de Lejeune, e será reproduzida na seção “Anexos”, ao final do trabalho.

acontece, inclusive com indicações dos movimentos repetitivos de determinados itens, como um luminoso de uma pizzaria que acende e apaga, por exemplo.

Magné brinca dizendo que descrever algo estático seria tão simples quanto criar um texto com lipogramas com a letra X ou Y, por exemplo. Ou seja, para ele, enquanto descreve objetos em movimento, Perec torna sua contrainte mais desafiadora e, portanto, muito mais interessante do ponto de vista artístico, já que lida com a questão da fugacidade, do efêmero: “pour ce type de performance descriptive, c’est l’éphémère qui pose problème, pas l’éternel et c’est donc lui qu’il s’agit de fixer sur la bande” (MAGNÉ, 1997, p. 179).

Para iniciarmos algumas reflexões, podemos partir de um trecho final do primeiro inventário:

Um carro amarelo. Uma dezena de pessoas atravessam o boulevard Saint Germain; três ou quatro têm guarda-chuvas abertos; passa um caminhão Solvay; duas pessoas atravessam, uma com um guarda-chuva preto e outra com um guarda-chuva, violeta ou vermelho, uma outra no sentido contrário com um guarda-chuva colorido. Um táxi, outro táxi, mais um táxi.138

A partir desse trecho, podemos exemplificar que há no texto/áudio constantes mudanças de tom da narração, ao longo de todos os inventários: por vezes, ela é bastante acelerada, seguida de vários momentos de silêncio do narrador e de hesitação, causando a sensação de estarmos ao lado de Perec, observando Paris e interagindo diretamente com ele, com suas reflexões e, por que não, com a própria Paris e seus constantes ruídos.

Por outro lado, essas mesmas descrições podem causar em nós, talvez, momentos eufóricos intercalados a momentos de mero cumprimento das regras, numa espécie de representação monótona do que está sendo observado (o que há de relevante em enumerar os tipos/cores de guarda-chuvas ou três táxis, como nas sequências grifadas, por exemplo?). É como se estivéssemos lá, ao lado de Perec, vendo e descrevendo objetos, alguns mais, outros menos interessantes, curiosos e ao mesmo tempo desimportantes, marcando apenas nossa presença como espectadores, criando uma memória coletiva, de um tempo que ficará lá, fixado, a partir do registro da voz.

O primeiro trecho do segundo inventário nos remete a uma nova enumeração (que será constante e, muitas vezes, trará a sensação de “vertigem” já comentadas algumas

138Une voiture jaune, sale. Une dizaine de personnes traversent le boulevard Saint Germain ; trois ont des

parapluies ouverts ; passe un camion Solvay ; deux personnes traversent ,l’une avec un parapluie noir l’autre avec un parapluie , violet, ou rouge, une autre dans l’autre sens avec un parapluie bariolé. Un taxi, un autre taxi, encore un taxi. (Clique aqui para ouvir o áudio do trecho, a partir do tempo 06:12).

vezes): “un taxi, une deux chevaux, une voiture bleue ; une camionnette Pignot ; plusieurs voitures, des gens qui traversent à quelques centimètres de moi”139; o segundo remete à ideia de descrição em movimento, já que traz o próprio movimento para a escrita: “Pizza Verdi allumé, éteint, allumé, éteint , allumé, éteint, allumé”140, conforme análise feita no início desta seção. A mais emblemática enumeração, entretanto, aparece no sexto inventário, quando somos bombardeados por “parapluies” de diversos tipos:

[...] quase todas as pessoas têm guarda-chuvas, um guarda-chuva verde, um guarda-chuva preto, um guarda-chuva com uma, decoração, geométrica, branco vermelho e preto; um guarda-chuva de flores, um guarda-chuva estampado, um guarda-chuva violeta, um guarda-chuva preto; um homem com impermeável sem guarda-chuva, um guarda- chuva com, decorado, um ônibus 63, um ônibus 96, um dois cavalos que tomam a rua onde estamos, um guarda-chuva com espécies de motivos geométricos, um guarda-chuva preto um guarda-chuva com uma decoração, não escocês mas com xadrez; um caminhão de entrega de batata o semáforo está vermelho, um guarda-chuva preto, um guarda-chuva com listras verdes e azuis e amarelas perdão, um guarda- chuva vermelho, um guarda-chuva sem cor.141

É claro que essa enumeração exaustiva tem relação direta com a escrita de Perec, como já dissemos, muito ligada à questão da elaboração de listas e da acumulação como tentativa de preservar a memória, como já vimos em diversas reflexões desde o início do texto.

Uma das características recorrentes será a hesitação de Perec, em diversos momentos. Ao descrever um cão, por exemplo, ele afirma não conhecer a raça à qual pertence: “Je ne sais pas comment s’appellent ces chiens”, deixando evidente o improviso do texto/discurso/voz; ou ainda, em outro exemplo, no trecho: “j’arrive à compter six parapluies, un homme qui porte, un, qui pousse un diable dans lequel il y a quelque chose qui me fait penser à du du des poissons dans une caisse, en matière plastique blanche, je sais pas comment ça s’appelle”142, quando deixa claro não encontrar palavras para aquilo que está prestes a descrever.

139 (Clique aqui para ouvir o áudio do trecho, a partir do tempo 01:35) 140 Idem

141 “[...]presque tous les gens ont des parapluies, un parapluie vert, un parapluie noir, un parapluie avec un,

décor, géométrique, blanc rouge et noir, un parapluie à fleurs, un parapluie à motifs, un parapluie violet, un parapluie noir ; un homme en imperméable sans parapluie, un parapluie à, décoré,un autobus 63, un autobus 96, une deux chevaux qui prend la rue où nous nous trouvons, un parapluie avec des espèces de motifs géométriques, un parapluie noir, un parapluie avec un décor, pas écossais mais à carreaux ; un camion livraison de pommes de terre, le feu est rouge, un parapluie noir, un parapluie à bandes vertes et, bleues et jaunes pardon, un parapluie rouge, très plat, un parapluie, sans couleur” (Clique aqui para ouvir o áudio do trecho, a partir do tempo 06:45)

Outra constante na narração/descrição de Perec será incorporar o texto publicitário à sua própria voz: enquanto descreve, ele acaba se apropriando do discurso publicitário (lendo-o como está escrito), ou seja, tomando para si o discurso do outro, como pode ser observado em: “le feu est rouge boulevard Saint Germain, rue du Four passe une camionnette Uncle Bens le riz qui ne colle jamais ; une camionnette Soliviandes Porc en gros qui tourne dans la rue de Buci”143. Outra frase que aparecerá centenas de vezes é a da publicidade na linha de ônibus que passa frequentemente a sua frente: “Passe un 63 Les cocotiers sont arrivés”, utilizando a mesma técnica de incorporação do texto publicitário. A ideia de valorizar o efêmero fica evidente, também, conforme nos explicou Magné: trata-se de uma propaganda que talvez não seja conhecida pelas futuras gerações, mas que foi muito repetida naquela situação, naquele tempo, naquela época, na mesma medida em que Perec escreveu seus Je me souviens, que representa exatamente a memória coletiva de uma época.

Um outro trecho que chama a atenção para a questão da publicidade, incluindo também a questão do humor, está no trecho: “[...]un gros camion Déménagement Garnier, Conflans Sainte Honorine 78700 tél 9166087 [rire] Déménagements toutes distances (5), qui s’arrête juste devant, mon regard”144. Aqui, Perec narra e ri da própria narração, como se questionasse a importância de ter dito (inclusive) o telefone da empresa que aparece na propaganda do caminhão. É uma forma indireta de se autocriticar, ou ao menos de refletir imediatamente sobre o que está fazendo no momento, e que fica registrado em meio as suas descrições intermináveis. Talvez ele se dê conta da ação mecanizada que acaba de realizar ou, talvez, veja um certo humor na situação. A partir do momento em que descreve exaustivamente, em constante velocidade, ele está produzindo estranheza em algo que deveria ser natural (a paisagem urbana), demonstrando essa paisagem como um lugar em que a acumulação acaba gerando essa velocidade, em acumular, em descrever, em produzir essa narração desenfreada. Ou seja, está olhando para essa paisagem e tentando tirar, do meio dessa multidão, alguns elementos que lhe pareçam peculiares, e nos mostrar tais elementos no meio de tantos outros, acumulados e rapidamente mencionados.

Cabe lembrar dois momentos também bem-humorados, quando Perec parece “sair” do automatismo da descrição e incorporar o olhar daquele que ele observa, o olhar do outro, nos trechos: “une voiture bleue, plein de petits enfants avec des imperméables

143 (Clique aqui para ouvir o áudio do trecho, a partir do tempo 01:35) 144 (Clique aqui para ouvir o áudio do trecho, a partir do tempo 04:40)

bleus, qui passent juste, à côté, de moi, dont une petite fille qui me tire la langue”145 ou “[...] un homme qui me montre du doigt en passant, trois voitures, un oiseau, qui passe dans le ciel”.146 Ao mesmo tempo em que parece haver humor na narração, notamos que, mesmo nessas situações inusitadas, a fala e o ritmo não se alteram; assim, as pessoas parecem descritas como partes dos objetos narrados; não há uma atenção ou narração especial para refletir sobre suas atitudes, apenas sua breve e rápida descrição. Como se no meio caótico da cidade, onde as pessoas passam rapidamente, os olhos de Perec examinassem e descrevessem rapidamente, independentemente do que está observando, e que tudo continuasse em seu movimento normal. A maneira escolhida por Perec para reagir àqueles que cruzam seu caminho não é alterar o tom de voz ou demonstrar indignação: ele prefere apenas continuar narrando, cada vez mais rápido, como se essa fosse a melhor forma de protestar, de reagir ao mundo, a essa velocidade desenfreada com a qual tem que lidar enquanto realiza seu experimento sonoro.

Para encerrar, cabe mostrar um último trecho, que nos parece um dos momentos em que a descrição/narração tem seu ritmo mais acelerado, ratificando nossa reflexão sobre a tentativa de dar conta de um tempo que escapa, de uma velocidade das coisas, do efêmero que deixa de existir antes mesmo de a próxima frase ser proferida:

[...] Rue du Four, duas mobiletes arrancam, carros, uma mobilete passa bem à nossa frente, táxi, méhari, táxi, carro azul, carro vermelho, táxi branco, táxi, táxi verde, táxi branco, mobilete com um homem usando um impermeável, um 2 CV azul, um Peugeot, um não sei o quê, branco, pessoas atravessam correndo pelo boulevard Saint Germain.147

Nesse trecho, confirma-se a sensação de vertigem, velocidade, efemeridade, todas elas muito bem apresentadas a partir da realização de Carrefour Mabillon. Lembrando que a obra tinha contraintes bastante definidas: uma produção oral, destinada a um programa de rádio, com uma duração estipulada (no caso da primeira versão, seis horas seguidas de gravação).

145 (Clique aqui para ouvir o áudio do trecho, a partir do tempo 04:54) 146 (Clique aqui para ouvir o áudio do trecho, a partir do tempo 06:48)

147 [...]rue du Four, deux mobylettes démarrent, des voitures, une mobylette passe juste devant nous, taxi,

méhari, taxi, voiture bleue, voiture rouge, taxi blanc, taxi, taxi vert, taxi blanc, mobylette, avec un homme en imperméable, une deux chevaux bleue, une Peugeot une je sais pas quoi, blanche, des gens traversent en courant le boulevard Saint Germain. (Clique aqui para ouvir o áudio do trecho, a partir do tempo 03:54)

O espaço também foi reduzido, fazendo com que Perec observasse um microuniverso a partir da janela da van em que se instalou. Talvez por isso haja tantas repetições: por ele estar no mesmo lugar, observando ações e objetos muito semelhantes, durante um espaço de tempo considerável. Seria uma tentativa de criar um microuniverso do real que poderia, depois, ser estendido ou definido como uma ideia de real em sua totalidade? Talvez se tratasse de uma tentativa de esgotar, esmiuçar e controlar o tempo, o espaço, de maneira bastante experimental, como muitos dos projetos de Perec. Um discurso marcado por repetições, reformulações e hesitações. Se não foi possível retratar um microuniverso do real, foi possível observar, de certa forma, as práticas de escrita e de trabalho, muito parecidas com as práticas de Perec em sua obra, repleta de regras, improviso, inacabamentos e hesitações.

Carrefour Mabillon pode ser, então, um microuniverso da própria experiência de esgotamento da fala, da escrita e, por que não, do trabalho de escritor, olhando pela janela e criando um mundo de possibilidades. Retomando outro texto de Magné148 para encerrar a sessão, voltamos à questão dúbia presente tanto no projeto Lieux, quanto em Carrefour Mabillon: escrever a partir da descrição exaustiva, criar uma espécie de acumulação, será uma maneira encontrada para preencher um vazio de uma autobiografia impossível de ser contada, da forma tradicional.

Assim, mesmo que Perec olhe para os outros, que descreva incessantemente todos os objetos presentes no lugar, é importante termos em mente que ambos os projetos estão ligados a lugares com os quais ele tem relação afetiva; é a partir desses lugares que ele tenta chegar na própria história, de maneira oblíqua. Essa escrita, que parte de algo externo para falar de si mesmo, estará em muitas das obras de Perec, analisadas ou não neste trabalho. Magné observa, de maneira bastante poética, uma relação entre um trecho final dos áudios de Carrefour Mabillon (“Un homme ayant l’air de souffrir de la pluie”) com as últimas palavras do texto e filme homônimos, de Perec, Un homme qui dort: “Tu as peur, tu attends. Tu attends, place Clichy, que la pluie cesse de tomber”.149 Se em Mabillon Perec olha para o outro e o descreve exaustivamente, em Un homme qui dort ele estabelece a relação com um “tu” que muitas vezes pode ser substituído por “je”,

148 Carrefour Mabillon, “ce qui passe, passe...”, no livro que acompanha a coleção de CDs já mencionada

na nota 28.

149 Este é um dado também autobiográfico presente no livro Un homme qui dort, conforme afirmação de

Perec em entrevista, quando fala das diferenças entre o final do filme (que se passa na rue Vilin) e do livro, que termina na place Clichy: “Dans le livre ça se passe place Clichy car c’est là que j’ai fini le livre un jour de pluie” (Entretiens et conférences, vol. I, p. 161).

continuando seu eterno jogo entre falar do outro e falar de si, um projeto autobiográfico intermitente, presente em grande parte de suas obras.