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2.9 O que fisga o sentido?

2.9.1 Alguns apontamentos sobre retórica

A questão da significação para a linguagem encontra ressonâncias desde a Antiguidade. Guimarães e Orlandi (2006) apontam o interesse filosófico que havia na Grécia Antiga pelo estudo do enunciado e de sua estrutura, numa preocupação voltada à questão do juízo. Os autores destacam, ainda, as primeiras classificações

69 Em seu Seminário, livro 20, Lacan ([1975] 2008, p. 22) diz, ainda: “Um dia percebi que era difícil não

76 de Platão e de Aristóteles voltadas à linguagem, o primeiro para a gramática e o segundo para a retórica.

Vamos nos ocupar com a questão da retórica pelo fato de ela dizer respeito diretamente à questão da significação, às técnicas de convencimento para levar um ouvinte a uma conclusão pre-vista, e isto nos diz respeito porque vincula-se à questão do significante e nos permite avançarmos no entendimento de como ele se coloca teoricamente. Trata-se de um “ajuste” da linguagem – isto é, do uso de uma linguagem que seria dotada de sentidos únicos e verdadeiros – numa relação entre um orador e um auditório.

Barthes (1993)70 salienta um ponto importante a respeito da retórica antiga: ela não é antiga porque existe uma retórica nova; ela é, sim, antiga em oposição ao novo que ainda não se cumpriu. O autor aponta que a retórica de que ele trata diz respeito à metalinguagem que esteve presente no mundo ocidental (com suas bases gregas, romanas e francesas) desde o século V a.C. até o século XIX.71

Para nosso propósito nesta seção e para compor nosso quadro teórico, voltaremos nossa atenção à retórica platônica, porque ela lida especificamente com a interlocução, isto é, com o envolvimento de interlocutores numa situação de interlocução. Entendemos que isso se vincula a uma questão de significação e de modos de significar, como mostraremos na sequência.

A retórica, para Barthes (1993), é uma metalinguagem à qual o autor chama “discurso sobre o discurso”. Essa metalinguagem carregou distintas práticas ao longo das épocas, a saber: a) uma técnica, enquanto arte de persuasão e de convencimento do ouvinte do discurso; b) um ensinamento, o ingresso da arte retórica nas instituições de ensino; c) uma ciência, enquanto um campo de observação que delimita alguns fenômenos, como os “efeitos” de linguagem, a classificação desses efeitos, e uma metalinguagem cujo significante é um objeto de linguagem; d) uma moral, por ser uma espécie de sistema de regras atravessado pela “ambiguidade da palavra”, a retórica busca prescrever e supervisar desvios de linguagem; e) uma prática social, enquanto uma técnica do bem falar privilegiada às classes dominantes; e f) uma prática lúdica, um conjunto de práticas que burlavam o sistema institucional da retórica e era

70 Sabemos que outros autores promovem reflexões sobre a historicidade da retórica, bem como

sabemos das leituras de sofistas que revisam o lugar da retórica. Para este trabalho, no entanto, seguimos as considerações de Barthes.

71 Uma discussão mais aprofundada sobre o nascimento da Retórica pode ser encontrada em Barthes

77 constituído por piadas, chistes, paródias, etc. Essa primeira visada metalinguística compõe, de acordo com Ducrot & Todorov (1978), um primeiro olhar reflexivo sobre a linguagem em sua função pragmática, tendo em vista que é tomada, de modo geral, como um modo de convencimento por meio da linguagem.

A gama de práticas que elencamos acima constitui o grande império da retórica no mundo ocidental, ainda que sobre ela tenham incidido muitas variações internas. Sempre com Barthes (1993, p. 88), a retórica,

inmutable, impasible y casi inmortal, vio nacer, desaparecer, sin conmoverse y sin alterarse: la democracia ateniense; las monarquías egipcias, la República romana, el Imperio romano, las grandes invasiones, el feudalismo, la monarquía, la Revolución; la retórica dirigió regímenes, religiones, civilizaciones; moribunda después del Renacimiento, tarda tres siglos en morir; todavía no es seguro que esté muerta.72

Ora, a manutenção da retórica ao longo de dois mil anos e meio foi uma prática por meio da qual a sociedade ocidental reconheceu a linguagem e a soberania da linguagem.

Ao discutir especificamente sobre um tipo de retórica platônica chamado “retórica erotizada”, Barthes (1993) comenta que, para Platão, descarta-se o escrito e se busca a interlocução, isto é, o diálogo entre mestre e discípulo, “unidos por el amor inspirado” (p. 92). Algo importante a se destacar aqui é que os dialéticos realizam dois movimentos, um de ascensão até um termo incondicional, e outro de descida, isto é, de divisão de unidades até chegar ao indivisível. Barthes (ibidem) comenta que em cada etapa no movimento de descida se destacam dois termos e que há de se eleger ou um ou outro para que se descenda até ao próximo binário. Tal retórica é distinta da retórica aristotélica, silogista, e o autor comenta que essa se assemelha à estrutura paradigmática da linguagem. Isso significa que a partir de um termo escolhido em detrimento de outro, coloca-se em funcionamento o jogo de alternativas de que fala Barthes.

A questão colocada por Platão (apud Barthes (ibidem)) a respeito da retórica erotizada cai, então, neste momento: se se pergunta de onde vem a marcação de um termo, a resposta é que ela vem da concessão que se faz entre mestre e discípulo,

72 “[...] imutável, impassível e quase imortal, viu nascer, desaparecer, sem comover-se e sem alterar-

se: a democracia ateniense; as monarquias egípcias, a República romana, o Império romano, as grandes invasões, o feudalismo, a monarquia, a Revolução; a retórica dirigiu regimes, religiões, civilizações; moribunda depois do Renascimento, tarda três séculos para morrer; entretanto não é certo que esteja morta” (tradução nossa).

78 no diálogo platônico. É que a retórica de Platão envolve dois interlocutores e o fato de que um deles conceda/consinta. Importante observar, porém, que os sentidos, aqui, estão colados às palavras. Ou seja, um diálogo será verdadeiro conquanto os dois interlocutores os assumam.

Dentre as muitas noções de significante existentes na linguística, a de Barthes (1971), em sua relação com o significado e constituinte do signo, vem no sentido de corroborar os sentidos que colocamos acima. Para ele, o significante é parte essencial na constituição do signo à medida que opera, num sistema, como um mediador para o significado. Barthes (1971) reconhece o social como elemento que define os sentidos que se atribuem a um significado, mas não faz uma dissociação entre os termos, isto é, para ele, há sempre uma relação entre significante e significado.

No caso da retórica enquanto arte de convencimento, a noção de Barthes nos ajuda a compreender de que modo a significação era, naquele momento, motivo de discussão e de estudo. Para convencer, alcançar um ouvinte, era preciso manejo no trato da língua e uma busca por uma linguagem pura. Como exemplo, poderíamos pensar na escolha de um determinado significante que, numa dada situação, assumisse, supostamente, um sentido próprio, único, verdadeiro. Esse valor de verdade só teria fundamento até o momento em que, para o mesmo significante, outros sentidos irrompessem. Mas a relação era estreita com a própria noção de conhecimento (GUIMARÃES & ORLANDI, 2006); o convencimento de um público por um orador consistia numa previsão/projeção dos sentidos.

Conforme Serra (1996), entretanto, a retórica só atinge um status a que poderíamos chamar científico com Aristóteles, que se dedica mais profundamente ao conhecimento desta técnica de persuasão. Não nos ocuparemos em observar o pensamento aristotélico. Mas, acerca dele, vale dizermos que a sua retórica esteve em cena até o século XVI, quando então entra num processo de apagamento que segue até o século XIX e que a volta ao estudo literário.

Séculos mais tarde, veremos com Foucault ([1966] 1999) que a preocupação da linguagem clássica seria a de um “recolhimento da verdade” (p. 427), conhecimento natural e transparente. Nas palavras do autor, a linguagem clássica “só existe [...] para ser transparente”. Para tanto, excluía qualquer “ciência do homem” (p. 428), porque se suporia uma independência da língua em relação ao homem. Pêcheux ([1975] 2009), inclusive, irá dizer que esse deslocamento da época clássica

79 faz com que o sujeito “subordinado à verdade de seu discurso” se torne “progressivamente a fonte desse discurso” (p. 46, itálicos do autor).

Veremos, na sequência, de que modo o conhecimento sobre a significação alça novo patamar com as mudanças trazidas pelo pensamento de Saussure.