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O conceito de sujeito ideológico e(m) sua relação com o discurso

A partir da discussão feita na seção anterior, compreende-se como as condições de produção estão pautadas nos antagonismos entre as classes sociais. Isso faz com que pensemos, na esteira de Pêcheux ([1975] 2009), que é o modo de produção que determina o que o sujeito diz em/de um determinado lugar.

Teorizar sobre a questão do sujeito não é – e nem poderia ser, a partir de nosso arcabouço teórico – inaugurar sentidos sobre o que determina esse conceito no campo da Análise de Discurso. A propósito, trata-se de um conceito na medida em que, em sua própria fundação teórica, a Análise de Discurso teve como um de seus centros uma discussão muito fortemente voltada à questão das noções de sujeito e de como ela se inseria no campo dos estudos de linguagem. Nessa direção é que Pêcheux, ainda nos anos 1960, época da edificação de uma teoria do discurso que se encontrava em ebulição, trouxe o sujeito para o centro das discussões sobre a linguagem. Está posto, já de início, que, para o autor, a linguagem não poderia ser considerada sem o sujeito. Fiquemos atentos a uma primeira definição, a seguir: com Pêcheux, concordamos que não há língua sem sujeito.

70 A questão é que, à época, outras correntes em estudos de linguagem figuravam com força: uma delas era o estruturalismo tal qual proposto por Saussure (e seus seguidores). Pêcheux, então, recobra do estruturalismo saussuriano a noção de língua enquanto sistema, porém a ressignifica na medida em que transborda seus limites. Isso significa que o sistema linguístico existe, porém sobre ele se levantam processos discursivos que, por sua vez, são mediados pela ideologia (PÊCHEUX, [1975] 2009). A língua, então, não seria por si só uma imanência cujos sentidos poderiam ser apreendidos em sua totalidade porque haveria uma transparência nesse sistema; ao contrário, os sentidos só seriam determinados pelo atravessamento ideológico.

Não se pode, também, esquecer que, para Pêcheux (ibidem), os processos discursivos se inscrevem numa luta ideológica entre as classes sociais, pois, como diz o autor:

o sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o revolucionário e para o reacionário, para aquele que dispõe de um conhecimento dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto, não se pode concluir, a partir disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo discurso: a língua se apresenta, assim, como a base comum de processos discursivos diferenciados [...]. (ibidem, p. 81, itálicos do autor).

Quando os portais de notícias on-line dizem, portanto, de um espaço gay- friendly, alguns sentidos se amarram numa trama e estes sentidos não são quaisquer uns. São sentidos possíveis no interior de uma formação discursiva: é por meio das formações discursivas que os sentidos podem ser atribuídos aos significantes.

A partir do que precede, entendemos que os significantes não carregam significados colados a eles. É por isso que um sentido é sempre capaz de se tornar outros (ORLANDI, 2012a). Conforme lemos em Pêcheux ([1975] 2009, p. 146-7, itálicos e aspas do autor, negritos nossos):

o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição etc., não existe “em si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a

literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas

posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual

as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). Poderíamos resumir essa tese dizendo: as palavras, expressões,

proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido

em referência a essas posições, isto é, em referência às formações

71 Compreendemos assim que significante e significado só fazem laço em virtude das posições ideológicas que os sustentam. Os sentidos, bem como os sujeitos, não são completos, mas se constituem pela falta, pelo movimento, em relação (ORLANDI, 2010a). Por isso, podem sempre ser outro(s).65

A propósito, a constituição histórica do sujeito passa por um processo em que se transita do indivíduo – em sua ideia de indivisibilidade, unidade, identidade, interioridade – para o sujeito; não o sujeito da sintaxe, mas aquele que é dividido pelo inconsciente, interpelado pela ideologia.

Estamos considerando que o sujeito não controla o seu dizer, tendo em vista que desde sempre é atravessado pela ideologia e dividido pelo inconsciente. Isso caracteriza o descentramento do sujeito. Quando falamos, há sempre algo que fala em nós, e isso é fruto de algo que, exterior ao sujeito, o afeta. A evidência de que controlamos o que dizemos ou de que os sentidos do que falamos têm origem em nós mesmos não é senão um efeito determinado pelo próprio funcionamento da ideologia. Para continuarmos a pensar a constituição dos sentidos e dos sujeitos, partiremos de uma questão fundamental para os estudos de linguagem: a da relação específica do sujeito com o significante, tendo em vista que é esta relação que o constitui, como afirma Pêcheux ([1975] 2009, p. 124-125, itálicos e aspas do autor):

Se acrescentarmos, de um lado, que esse sujeito, com um S maiúsculo – sujeito absoluto e universal –, é precisamente o que J. Lacan designa como o Outro (Autre, com A maiúsculo), e, de outro lado, que, sempre de acordo com a formulação de Lacan, “o inconsciente é o discurso do Outro”, podemos discernir de que modo o recalque inconsciente e o assujeitamento ideológico estão materialmente ligados, sem estar confundidos, no interior do que se poderia designar como o processo do Significante na interpelação e na

identificação, processo pelo qual se realiza o que chamamos as condições

ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção.

Nesse fragmento, há dois pontos relevantes. O primeiro em relação a como o autor vincula sujeito e significante, sem que este abraço possa jamais ser desfeito: só há sujeito porque há um Outro que o constitui – um significante que o interpela – enquanto tal. O segundo ponto, que, aliás, não pode ser desmembrado do primeiro a não ser de modo didático, nos remete ao que já dissemos no capítulo anterior, uma

65 Muito embora, conforme dissemos brevemente no capítulo 2.3 (p. 31), esse processo de significação

não seja qualquer um. Como compreendemos a partir de Orlandi (2010a, p. 52), não é porque o sentido é aberto que não é “regido, administrado. Ao contrário, é pela sua abertura que ele também está sujeito à determinação, à institucionalização, à estabilização e à cristalização”.

72 vez que diz das condições de produção: elas se realizam determinadas pelo processo de interpelação e identificação do sujeito.

A formulação teórica de Pêcheux ([1975] 2009) sobre sujeito produz um deslocamento importante porque o ressignifica em relação às teorias linguísticas, históricas e sociais. E é um caminho sem volta.

Para colocar ainda de outro modo, em Análise de Discurso o sujeito que comparece é posição atravessada pela ideologia, isto é, é o sujeito que ocupa uma posição ideológica, e que é cindido pelo inconsciente (PÊCHEUX, [1975] 2009; ORLANDI, 2012a). Pelo próprio funcionamento da ideologia e do inconsciente, que é o de acobertar o seu atravessamento no sujeito, não temos acesso àquilo que nos constitui, e, no entanto, somos por isso constituídos. Como lemos em Orlandi (2012a, p. 48), “O modo pelo qual ele [o sujeito] se constitui em sujeito, ou seja, o modo pelo qual ele se constitui enquanto posição não lhe é acessível. Esse é o efeito ideológico elementar.”. Baseado em Althusser, Pêcheux ([1975] 2009, p. 141) teoriza com primazia esse efeito ao dizer: “Na verdade, o que a tese ‘a Ideologia interpela os indivíduos em sujeitos’ designa é exatamente que o ‘não-sujeito’ é interpelado- constituído em sujeito pela Ideologia”.

Esse não saber-se sujeito permite, dadas as nossas condições históricas materiais, que o Estado capitalista individu(aliz)e os sujeitos. Isto quer dizer que, enquanto efeito, o Estado os torna responsáveis e senhores de seus dizeres. Consoante Orlandi (2012b, p. 228):

As formas de individu(aliz)ação do sujeito, pelo Estado, estabelecidas pelas instituições e discursividades, resultam, assim, em um indivíduo ao mesmo tempo responsável e dono de suas vontades, com direitos e deveres e direito de ir e vir. Esse indivíduo funciona, por assim dizer, como um pré-requisito nos processos de identificação do sujeito, ou seja, uma vez individuado, este indivíduo (sujeito individuado) é que vai estabelecer uma relação de identificação com esta ou aquela formação discursiva. E assim se constitui em uma posição-sujeito na sociedade. E isto deriva de seus modos de individuação pelo Estado (ou pela falha do Estado), pela articulação simbólico-política através das instituições e discursos, daí resultando sua inscrição em uma formação discursiva e sua posição sujeito que se inscreve então na formação social (posição-sujeito patrão, traficante, Falcão etc) com os sentidos que o identificam em sua posição sujeito na sociedade.

As formas como o sujeito é tocado pelas evidências dos sentidos que circulam na sociedade estão sempre em relação a. Em primeiro lugar, precisamos considerar que há uma forma-sujeito histórica – que é, hoje, a capitalista, mas que já foi religiosa,

73 por exemplo – com todas as suas implicações. É Orlandi (2012b) quem nos esclarece este ponto, ao pensar o político enquanto “divisão entre sujeitos e divisão do sujeito”:

nossa formação social é dividida e a interpelação do indivíduo em sujeito produz uma forma histórica que é a capitalista de que resulta um sujeito dividido, ao mesmo tempo determinado e determinador. Se pensarmos o sujeito da língua, constituído por essa contradição: um sujeito completamente livre e, ao mesmo tempo, incapaz de falhas. (ibidem, p. 72-73).

Se concordamos com Orlandi, assumimos que a forma-sujeito de nossa contemporaneidade é a capitalista, assim determinada historicamente mas igualmente pela história (isto é, pela ideologia), em seu funcionamento, apagada. Por outro lado, não se pode ignorar que, justamente por ser descentrado, o sujeito não é uma máquina66 que mecanicamente se ajusta a esta forma-sujeito. Dentro das possibilidades de repetição e de ruptura dadas numa certa conjuntura, o sujeito se movimenta. Há disputa pelos sentidos dentro das formações discursivas que ele habita.

Ao nos propormos analisar o discurso de portais de notícias on-line sobre os espaços ditos como destinados a sujeitos homossexuais em nossa contemporaneidade, consideramos que esses sujeitos envolvidos na cena enunciativa assumem a forma-sujeito histórica capitalista, uma vez que inseridos neste (e não em outro) determinado momento histórico são afetados por ele e assujeitados a seus efeitos. O que disso nos importa, por conseguinte, é pensarmos de que modos se produzem essas subjetivações, ou seja, sentidos sobre o que é ser sujeito homossexual na mídia on-line em portais de notícias, em como esses sujeitos são fisgados pelos sentidos em circulação.

66 Em um capítulo sobre a relação de Michel Pêcheux com a informática e a tecnologia, dediquei-me a

trilhar os passos de Pêcheux em suas construções teóricas levando em consideração a sua paixão pelas máquinas (ZANELLA, 2016). Ao longo de suas formulações, no que concerne ao sujeito, o autor irá mostrar como passa de uma posição i) que considerava o sujeito como “sujeito-estrutura” ([1983b] 2010a, p. 307), isto é, um sujeito fechado num espaço discursivo estabilizado e com condições de produção supostamente homogêneas, cujo funcionamento seria maquínico (fase conhecidamente denominada AD-1), para uma posição ii) que, considerando as relações de força e de sentido desiguais, entendiam o sujeito como interpelado pela ideologia e atravessado por uma teoria da subjetividade (AD-2). Aqui também há uma concepção de sujeito como efeito de um assujeitamento a uma formação discursiva com a qual se identifica. Acrescentamos, aqui, que Pêcheux, a partir do Anexo III de

Semântica e discurso ([1975] 2009), retifica e recoloca algumas questões sobre o sujeito, sobretudo

em relação ao atravessamento da Psicanálise lacaniana; abre-se, pois, para uma escuta do equívoco, da falha, dos deslizamentos de sentidos.

74 A propósito, Orlandi (2012b), ao teorizar sobre as políticas públicas urbanas, coloca que existem duas formas ideológicas na contemporaneidade que se destacam no que a autora chama de “imaginário citadino”:

1. O mito da completude (a sociedade como um todo organizado e coeso) criando a interpretação da desagregação (aquilo que fica fora dela) e 2. em uma perspectiva neoliberal, o fato de que a reciprocidade, a solidariedade cedem lugar à rivalidade, à competição, à marginalidade.

Da relação dessas duas formas ideológicas resulta certa declinação da noção de cidadania (direito) e civilidade (pluralidade) – relação entre o jurídico e o administrativo – que coloca à margem, marginaliza. Práticas sociais de segregação, ligadas a ações individuais. Apoiando-nos, então, em uma visão tópica da cidade[67] com seus sítios (lugares) de significação, procuramos

compreender a confluência de dois movimentos – o da expansão e o da inserção (agrupamento) [...]. (ORLANDI, 2012b, p. 226, itálicos da autora).

Ao longo de nosso trabalho de análise, iremos aludir às formas como esse imaginário citadino rege o discurso jornalístico on-line que configura nosso corpus, determinando as subjetividades homossexuais que falam e que são faladas nos portais de notícias.

Feita essa reflexão, podemos avançar em nosso desenvolvimento teórico para a noção de significante, haja vista que ela também diz do sujeito.