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O significante para a Análise de Discurso e para a Psicanálise

2.9 O que fisga o sentido?

2.9.4 O significante para a Análise de Discurso e para a Psicanálise

Se a questão da significação é uma constante para a ciência da linguagem, uma de suas faces fundamentais é a questão semântica. Afirmamos isso porque, para firmar-se, a linguística inaugurada por Saussure, ao se ocupar especificamente do sistema linguístico, teve que colocar a semântica de lado. O que não significa que Saussure a tenha desconsiderado79. Foi justamente por deixar o terreno tabu80 da semântica à borda, consoante Pêcheux ([1975] 2009), que a linguística era constantemente requerida para fora dos limites saussurianos, a fim de dar conta de ‘problemas’ de construção dos sentidos. Ou seja, a semântica insistia.

Isso indica, de alguma maneira, que os problemas de semântica se encontram no próprio interior do domínio da ciência linguística. Pêcheux ([1975] 2009), ao se dedicar amplamente sobre o percurso da semântica na linguística para fundar sua teoria materialista do discurso, nos diz que Saussure instituíra uma ciência cujas bases haviam sido possibilitadas pela filosofia idealista (a se considerar a conjuntura da época). Nesse ponto nodal é que Pêcheux (ibidem) diz residir uma tentativa de banir a questão do sentido de seu cerne, ao mesmo tempo que coloca em jogo as contradições no interior do campo científico da linguística. Sinal de que o problema (r)existe no próprio interior deste domínio.

A proposta teórica e metodológica da Análise de Discurso de Pêcheux, por sua vez, investe na forma como se dá a intervenção da filosofia materialista no domínio da linguística, apontando como “os frios espaços da semântica exalam um sujeito ardente” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 29). E a forma como isso se dá é pela via do materialismo histórico e da Psicanálise (tal como vimos nos capítulos 2.7 e 2.8). O campo da teoria do discurso, para Pêcheux (ibidem) se dá no ponto onde se unem objetos linguísticos e objetos da ciência das formações sociais. Ao mostrar a

79 No CLG, a questão do sentido – “dos signos no seio da vida social” ([1916] 1989, p. 24) – constituiria

um outro ‘caminho’: uma parte da Psicologia social a que o autor chamaria de Semiologia.

84 articulação de ambos, o autor chega a uma formulação indispensável: a de que, ainda que se considere o sistema linguístico o mesmo (seja para idealistas, seja para materialistas, alfineta o autor), não se compreende o mesmo processo discursivo para ambos.

Para Pêcheux ([1975] 2009), a língua, portanto, seria uma base relativamente autônoma sobre a qual se levantariam processos discursivos mediados pelos processos ideológicos, rompendo com uma concepção de linguagem inteira por meio da qual se daria a pura transmissão de pensamento.

Nesse entremeio, o materialismo histórico incide fortemente sobre a língua. E dessa articulação a língua dobra-se em discurso. Retomando Balibar, Pêcheux ([1975] 2009) escreve que, embora a língua seja indiferente à divisão de classes, a divisão de classes não é indiferente à língua, haja vista que as classes a utilizam de maneira determinada, como na política. Retomamos daí o comentário de Pêcheux (ibidem) de que todo processo discursivo – nessa relação entre a língua e a luta de classes, isto é, as classes não indiferentes à língua – se inscreve numa luta ideológica entre as classes. A linguagem, então, estaria tanto para comunicar quanto para não comunicar (sentidos), de acordo com os antagonismos entre as classes e com as posições de sujeitos assumidas.

Ora, reintroduzir a questão do sentido no interior da própria linguística, articulando este campo de saber aos do materialismo histórico e da Psicanálise, fez com que, a partir dos anos 1960, Pêcheux recobrasse o lugar e a importância do sentido, da semântica, tomando a luta de classes como uma determinante. A propósito, na “Conclusão” de seu Semântica e discurso, Pêcheux ([1975] 2009) constata como uma necessidade a associação entre semântica e materialismo histórico, a fim de permitir avançar em relação aos limites que a semântica impunha à linguística. Tratava-se de romper o frio espaço que apagava o sujeito e as contradições da história.

Além disso, o autor constata também que a oposição entre língua e fala (e lógica e retórica) da qual “vive a Linguística desde Saussure” (ibidem, p. 221) não propõe a questão de como o conhecimento – e, por conseguinte, o sentido – é produzido. Daí as surpresas de que fala Pêcheux: ao desvelar a filosofia dominante, os linguistas ora se sentem confortados por ouvirem a base de sua evidência e ora se sentem “secretamente decepcionados” por perceberem o desvio político.

85 Outra constatação de Pêcheux (ibidem) é a de que a “filosofia dos filósofos” reproduz a filosofia espontânea dos linguistas, não permitindo a superação da oposição língua (sistema) e fala (sujeito-falante) na qual a linguística tem sua base e daí sobrevive. Nesse sentido é que o materialismo histórico atua sobre a contradição: Pêcheux ([1975] 2009) propõe a questão do processo sem sujeito e do estudo materialista do discurso, isto é, de um estudo que leve em consideração o político (ver p. 73).

Se até aqui vimos de que modo Pêcheux constrói sua teoria materialista do discurso, uma questão que é colocada nos “Anexos” de Semântica e discurso é importante: Pêcheux ([1975] 2009) comenta que ele havia caracterizado os aparelhos ideológicos de Estado (cf. ALTHUSSER, 1985) como “sede e motivo de uma luta de classes”, também caracterizando a luta ideológica de classes “como um processo de reprodução-transformação das relações de produção” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 274). Esclarece, também, que investigara como “‘o sujeito é produzido’ como historicamente capaz [...] de se voltar contra causas que o determinam, porque ele as apreende teórica e praticamente”, fato que o levou a ver “um sujeito materialista que efetua a ‘apropriação subjetiva da política do proletariado’” (ibidem, p. 274-275). É nesse ponto que algo estaria inadequado, pois haveria um retorno idealista do primado da teoria sobre a prática, e uma valorização do sujeito-de-direito, que constituiria a ilusão de uma total consciência sobre os seus atos e pensamentos; isso seria levar a sério um “ego-sujeito-pleno em que nada falha” (ibidem, p. 276). Isto significa que haveria, aqui, uma retomada de um sujeito plenamente consciente, indiviso, “inteiro”. Um retorno ao sujeito empírico da linguística.

Pêcheux ([1975] 2009) busca resolver esta questão recuperando justamente a noção de inconsciente, o que nos remete à citação de Lacan ([1966] 1998) que trouxemos no início do capítulo 2.9 (p. 74). Pêcheux ([1975] 2009) diz que o inconsciente não pode ser apagado ou esquecido, pois trabalha continuamente retornando ao sujeito e ao sentido, os quais são produzidos pelo deslizamento do significante (daí o primado da metáfora81 sobre o sentido), embora, continua Pêcheux

81 A metáfora, segundo Pêcheux ([1969] 2010), é a possibilidade de substituição de sentidos:

“Chamaremos efeito metafórico o fenômeno semântico produzido por uma substituição contextual, para lembrar que esse ‘deslizamento de sentido’ entre x e y é constitutivo do “sentido” designado por x e y” (ibidem, p. 96, itálicos e aspas do autor). Em Pêcheux ([1975] 2009, p. 277), o autor diz, ainda, que “‘o sentido’ é produzido no ‘non-sens’ pelo deslizamento sem origem do significante [...] esse deslizamento

86 (ibidem), esse deslizamento não desapareça sem deixar marcas no sujeito-ego da forma-sujeito ideológica82, fazendo com que o sentido pareça evidente.

É, de fato, essa característica que atravessa a ideologia dominante e que pode ser a “origem não detectável da resistência e da revolta”; o lapso, o ato falho, o sonho são formas de “aparição fugidias” que mostram que alguma coisa de outra ordem (que fala mais forte: o inconsciente) coloca em questão a ideologia dominante. Ademais, desfaz o mito platônico de uma sucessão na produção de sentidos; com Pêcheux ([1975] 2009, p. 276), sujeito e sentido se constituem mutuamente: trata-se “de uma ‘pulsação’ pela qual o non-sens inconsciente não pára de voltar no sujeito e no sentido que nele pretende se instalar”. Magalhães e Mariani (2013, p. 104) comentam, a esse respeito, que “é fundamental compreender o conceito de inconsciente como manifestação na cadeia significante de algo que se revela a despeito do suposto ‘querer dizer’ de quem enuncia”.

Pêcheux (ibidem) diz, porém, que isto não significa fazer do inconsciente a ideologia da classe dominada, haja vista que inconsciente e ideologia não coincidem. O que não significa, também, que a ideologia deva ser pensada destacada do inconsciente. A condição da disjunção inconsciente-ideologias dominadas-ideologias dominantes estaria na luta de classes como contradição histórica.

Acreditamos ter chegado num ponto importante desta nossa discussão: a do encontro entre sujeito e sentido. Isto posto, encaminhemo-nos a uma tentativa de conclusão, retomando a questão do significante.